terça-feira, 24 de maio de 2011

O Pai Goriot (setembro de 1834) - 1ª parte

Volume IV: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Privada (lido entre 4 de abril e 22 de julho de 2010).

Personagens: senhora Vauquer, senhora Couture, Victorina Taillefer, senhorita Michonneau, pai Goriot, Vautrin (Jacques Collin), cozinheira Sílvia, Eugênio de Rastignac, criado Cristóvão, senhor Poitet, Horácio Bianchon, Conde de Restaud, Anastácia (condessa de Restaud, née Goriot), conde Máximo de Trailles (amante de Anastácia), senhora de Beauséant, Marquês d´Ajuda Pinto, senhorita de Rochefilde, Delfina (baronesa de Nuncigen, née Goriot), barão de Nuncigen, senhor de Marsay (ex-amante de Delfina).

A história se passa entre novembro de 1819 e 21 de fevereiro de 1820.

O Pai Goriot é a “joia da coroa”. Balzac começou a escrever bons romances por volta de 1830. Em 1833, teve seu primeiro sucesso de público e crítica com Eugênia Grandet. Um ano depois, apresentou, com O Pai Goriot, a grande inovação da Comédia Humana - a recorrência de personagens. É sobre ela que falaremos nesse primeiro post.
Existe uma espécie de lenda sobre a forma como Balzac teve a ideia de fazer seus personagens retornarem nos romances. Laure Surville, irmã de Balzac, escreveu uma biografia do escritor em 1858. Laure conta que em um ocasião Balzac chegou à sua casa no faubourg Poissonnière com o rosto iluminado e declarou: “Me dêem as boas vindas, pois estou prestes a me tornar um gênio”. Balzac teria tido uma epifania enquanto caminhava para a casa de Laure: “Por que não ligar os personagens entre si para formar uma sociedade completa?”. Segundo Stéphane Vachon, tal relato é pouco crível. A “trouvaille” ocorreu em 1833. E Balzac somente a utilizou em meados de 1834 em O Pai Goriot. Com tamanho entusiasmo, Balzac iria esperar um ano para impressionar seu público?
Vachon comenta que a ideia balzaquiana que consiste em fazer circular os personagens de um romance a outro de modo que a justaposição de narrativas constitua a história de uma sociedade inteira foi elaborada progressivamente, por aproximações sucessivas, por tentativas parciais, locais e isoladas, por tentativas pontuais e não premeditadas. “Foi verdadeiramente em O Pai Goriot que Balzac começa a aplicar sistematicamente o procedimento que faz reaparecerem os personagens dos romances anteriores. Essa “invenção” não foi uma simples epifania: ela acompanha uma concepção metódica, ambiciosa e nítida da obra ao mesmo tempo que uma visão global, lógica e precisa da sociedade. Momento decisivo, com efeito, na história e na gênese do grande empreendimento balzaquiano e na história de todo o gênero romanesco, O Pai Goriot une com força e autoridade uma experiência (do mundo), uma técnica (romanesca) e um pensamento (sobre a literatura e seus poderes)”.
São 48 personagens da Comédia Humana que aparecem e reaparecem em O Pai Goriot. A técnica não foi bem recebida pela crítica ao tempo da publicação. O crítico do L´Impartial em 8 de março de 1835 caracterizou a inovação como um “capricho de um homem convencido do valor de suas criações”. Em 21 de outubro de 1838, na Revue de Paris, Amédée Pichot declarou: “ Ah, se M. de Balzac soubesse a imensa chatice que é ver o tempo todo reaparecerem as mesmas figuras com as mesmas manias, os mesmos nomes próprios, seguidos dos mesmos sobrenomes, ele arrancaria de um só golpe a cabeça de todos esses personagens que, depois de sete anos, caminham sem cessar para chegar a lugar algum, discutem o tempo todo sem nada concluir”. Alguns anos depois foi Sainte-Beuve que criticou o achado balzaquiano: “Os personagens que retornam nos romances já figuraram pelo menos uma vez em outros textos de M de Balzac. Quando são personagens interessantes e verdadeiros, creio que reproduzi-los é uma ideia falsa e contrária ao mistério que sempre envolve um romance. (...) Graças a essa multidão de biografias secundárias que se prolongam, retornam e se intercruzam sem cessar, a série de Estudos de Costumes de M. de Balzac parece uma rede de corredores de certas minas ou catacumbas. Ou nos perdemos e não mais nos achamos, ou, se nos achamos, não reconhecemos mais nada”.
Foi outro painelista da sociedade francesa, Marcel Proust, que respondeu à crítica de Sainte-Beuve. Para Proust o crítico não entendeu a “idéia de gênio” de Balzac. “Lançando sobre suas obras um olhar a um só tempo de um estrangeiro e de um pai, dando a esse a pureza de Rafael, a esse outro a simplicidade do Evangelho, Balzac projeta sobre eles uma iluminação retrospectiva de modo que eles estarão melhor representados em um ciclo no qual os mesmos personagens retornam.”.
Houve contemporaneamente a Balzac alguns entusiastas da sua ideia, como Félix Davin, que compreendeu a intenção de Balzac de criar um “afresco social”. É o próprio escritor, contudo, de dá sua explicação em um prefácio à primeira parte das Ilusões Perdidas escrito em fevereiro de 1837: “Cada romance não é nada mais do que um capítulo do grande romance da sociedade. Os personagens de cada história se movem em uma esfera que não possui outra circunspecção que não a da sociedade “.
Claro que isso não era mágico. Balzac, ao começar a por em prática a sua ideia, trocou personagens de seus romances iniciais por outros que figuravam em seus trabalhos mais recentes. Às vezes, bastava mudar o nome, em outras, alterava dados biográficos. Eugênio de Rastignac, por exemplo, era Eugênio de Massiac. Ficaram, naturalmente, incoerências nos textos
O resultado, como já comentamos em outros posts, é que, às vezes, conhecemos um personagem sem que conheçamos seu passado, que nós é apresentado posteriormente. Conhecemos por exemplo o destino de Anastácia de Restaud em Gobseck, mas só descobrimos seu passado em O Pai Goriot. Em A Mulher Abandonada acompanhamos a resistência de Clara de Beausant a Gastão de Nueil, mas é em O Pai Goriot que entendemos seu comportamento pela traição de d´Ajuda Pinto. Em Uma Filha de Eva assistimos a atitude compreensiva de Felix de Vandenesse para com a esposa Maria Angélica, prestes a o trair. A explicação virá em Lírio do Vale. Por sua vez a imaturidade de Maria Angélica é em parte explicada pela história de seus pais em Uma Dupla Família. Há, naturalmente falhas, como o caso de Lady Brandon, de O Romeiral, cujo infeliz destino ficou sem explicação. Mas é digno de nota que os erros e imprecisões temporais sejam muito poucos para um escritor que escrevia freneticamente, não tinha ajudantes e dispunha apenas de sua pena.

As citações foram retiradas do dossiê de Stéphane Vachon da edição de Le Père Goriot da Librairie Générale Française - Le Livre de Poche de 1995 com tradução minha.

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