sábado, 4 de junho de 2011

Vida e Destino - o livro


Life and Fate. Vasily Grossman. New York: New York Review Books classics, 2006. Tradução de Robert Chandler.

O nome de Vasily Grossman foi um dos tantos nomes de escritores soviéticos que figuravam no livro Sussurros, por mim aqui resenhado. Mas somente me chamou atenção quando li um belíssimo texto de sua autoria na edição número 51 da revista Piauí denominado A Madona Sisitina. Nesse texto ele conta sua ida até o Museu Púchkin, em Moscou, para ver a Madona Sistina de Rafael. Era um dos quadros que fora trazido pelos russos de Dresden após a vitória aliada e que, dez anos após, retornaria à Alemanha. Antes da repatriação, porém, ficaria exposto três meses em Moscou. A pequena biografia apresentada pela revista dizia que Grossman havia escrito Vida e Destino, considerado por alguns o maior romance russo do século XX.
Como havia ganhado um Kindle de Natal, providenciei o livro, ávida por saborear as quase novecentas páginas.
Li o livro em dois meses. O inglês não é difícil e com o recurso do dicionário do Kindle fica fácil consultar as palavras desconhecidas que, afinal, se repetem. A maior dificuldade é o número enorme de personagens, todos com complicados nomes russos. No final do livro há uma divisão por núcleos de personagens que ajuda bastante.
Vida e Destino é um épico intimista. Vassily Grossman pretendeu retratar toda uma era. Cada personagem representa um grupo ou classe e seu destino exemplifica o destino daquele grupo ou classe. Victor Shtrum, o intelectual judeu, alter ego de Grossman; Getmanov, o cínico funcionário stalinista; Abarchuk e Krymov, dois velhos bolcheviques presos na década de 1930; Novikov, o oficial talentoso, cujas habilidades só foram reconhecidas depois dos desastres de 1941. Todavia, não foram tipos que Grossman construiu. São personagens complexos, cheios de contradições e humanidade. São enredos que apresentam um sutil entendimento das escolhas morais, da culpa, da duplicidade do ser humano. De acordo com Robert Chandler, essas características aproximam Grossman de um escritor que trabalhou em escala bem diversa: Anton Tchekov.
Ao final da leitura de Vida e Destino temos um painel de importância tanto literária como histórica da Rússia stalinista, a exemplo do que fez Liev Tolstói em Guerra e Paz. Mas cada um dos capítulos isolados funciona como um conto de Tchekov. Episódios como o da médica judia que deixa de salvar sua vida para ficar até a morte na câmara de gás com o menino abandonado; da mulher que, apesar de apaixonada pelo namorado com que poderá ter um futuro promissor, escolhe ficar com o ex-marido, um bolchevique que está preso na sinistra Lubianka; do jovem soldado soviético que entra em uma cratera para salvar-se de um bombardeio e lá dá a mão a um camarada e após vem a descobrir que o companheiro era um jovem soldado alemão; do motorista do Exército Vermelho, entusiasta das coletivizações da década de 1930, que é abandonado para morrer pelos alemães e é salvo por um velha camponesa ucraniana que é a única sobrevivente de um família da fome causada pela coletivização, têm um acento tão tchekoviano que traem a preferência literária de Grossmann : seus escritores favoritos eram Tolstói e Tchekov.
A estrutura de Vida e Destino é similar à de Guerra e Paz: a vida de uma país inteiro é evocada através de membros de uma única família e enredos secundários.
Aleksandra Vladimirovna Shaposhnikovna é uma idosa ligada à intelligentsia pré-revolucionária. Seus filhos e suas famílias são as figuras centrais da história.
Lyudmila, a filha mais velha de Aleksandra, é esposa do físico Victor Shtrum. Eles são pais da jovem Nadya. Victor tem um cargo importante em um instituto de Física em Moscou. No início do romance, o instituto havia sido transferido para Kazan por causa dos ataques alemães. Victor e Lyudmilla (Lyuba) estão em crise. O motivo principal foi a negativa da Lyuba em receber em Moscou a mãe de Victor, Anna Semyonovna, que estava na Ucrânia. Houve um grande massacre de judeus pelos alemães na região e Anna foi assassinada. Victor se sente culpado e culpa Lyuba pela morte da mãe. A carta de Anna, escrita do gueto para Victor, é uma das mais belas passagens do romance.
Em Kazan, Victor e seus colegas desfrutam de um certo clima de liberdade em função da guerra. Reúnem-se na casa de Pyotr Solokov com o historiador Madyrov, cunhado de Solokov, e com Karimov. Há discussões sobre política e, mais tarde, em Moscou, Victor se arrependerá dessas conversas. Ele começa a envolver-se emocionalmente com Marya Solokova, a esposa do colega.
O ex-marido de Lyuba, Abarchuk, é um bolchevique da época da revolução que fora preso na década de 1930. Está em um campo de trabalho. Com Abarchuk, Lyuba teve Anatoly, Tolya, um soldado que está no front. Lyuba recebe a notícia de que o filho foi ferido. Ela viaja para visitá-lo e, ao chegar ao hospital, é informada que que o rapaz já falecera. A dor pela morte do filho afasta ainda mais Lyuba de Victor.
A filha mais nova de Aleksandra, Yevgenia, Zhenya, é um bela mulher, artista plástica, dividida entre um amor por um homem e a fidelidade em relação ao outro. Ela está separada de Krymov, um comissário do Exército Vermelho, bolchevique de primeira hora e está apaixonada por Novikov, um talentoso oficial. No início da narrativa ela está morando em Kuibyshev, onde divide um quarto com Jenny Gerinkhovna, uma antiga governanta da casa dos Shaposhnikov, de origem alemã. Lá ela luta para obter um visto de permanência, que é negado sem justificativa pelo burocrata Grishin. Jenny termina sendo presa. Também convive com o princípe Valdimir Shargorodski, que esteve exilado entre 1926 e 1933 e retornou à Rússia espontaneamente e com Limonov, um literato de Moscou. No final, Zhenya é informada de que Krymov fora preso em Stalingrado e encontra-se na prisão Lubianka. Novikov a amava há muito, desde antes de seu casamento com Krymov. Mas ela julga que não pode abandonar o ex-marido, ao mesmo tempo que teme que confidências feitas a Novikov tenham motivado a prisão de Krymov.
Aleksandra tinha ainda outra filha, Marusya, que morreu afogada no Volga durante a evacuação de Stalingrado. O viúvo de Marusya, Spiridinov, é diretor de estação de força de Stalingrado e permanceu na cidade com a filha Vera. Vera se recusa a deixar o pai e aguarda o retorno do namorado, Viktorov, piloto de avião, de quem espera um filho. O bebê nasce e Spiridinov se ausenta de seu posto por um dia para ver a filha. Por isso, é chamado a depor pelas autoridades. Vera espera sem saber que o avião de seu amado caiu e ele faleceu.
Há ainda um filho de Aleksandra, Dmitry, que fora preso no final dos anos 1930. Ele tem um filho, Seryozha, que está lutando em Stalingrado. Seryozha acaba na Casa 6 ½, uma posição russa isolada pelos alemães na cidade. Quem comanda a casa é Grekov, uma espécie de anarquista. Na casa está também Katya Vengrova, uma operadora de rádio. Ela e Seryozha se apaixonam, o que é problemático, pois Grekov está interessado na moça. No final, ele dispensa o casal. O partido comunista envia Krymov, por um túnel secreto, para a casa. Lá o comissário fica chocado com a falta de disciplina e as ideias de Grekov. Durante a noite, Krymov é atingido por um golpe, presumidamente desferido por Grekov. O comissário é enviado para o hospital. A casa é bombardeada. Somente os soldados Polyakov e Klimov conseguem escapar pelo túnel. Durante o bombardeio, Klimov segura a mão de um soldado alemão julgando que é a de um companheiro russo. Provavelmente, é pelo ocorrido na casa que Krymov é preso e enviado à Lubianka.
Há um núcleo em um campo de concentração alemão. No campo, há vários oficiais soviéticos presos. Lá estão também Mikhail Mostovskoy, um velho bolchevique; Gardi, um padre italiano; Ikonnikov-Morzh, um tolstoiano, considerado insano; Chernetsov, um antigo menchevique. Mostovskoy e Chernetsov discutem o tempo todo questões da época da revolução. Ikonnikov-Morzh termina se suicidando para não ter de participar do extermínio de judeus. E, ao final, o SS Liss, comandante do campo, chama Mostovskoy para uma conversa na qual tenta demonstrar que ambos, apesar de em campos diferentes, têm posicionamentos políticos iguais. Um grupo começa organizar um levante contra os alemães.
Há outro núcleo no campo de trabalho russo, onde está Abarchuk, ex-marido de Lyuba. Além dos presos políticos, existem no campo criminosos comuns. São esses que mandam no local, pois ameaçam os presos políticos para que trabalhem ou façam tarefas por eles. Lá estão Nyeumolinov, um comandante da cavalaria durante a Guerra Civil; Monidze, ex membro da Juventude Comunista Internacional; Magar, um velho bolchevique, professor de Abarchuk; Stepanov, professor de economia.
Há o nucleo de Novikov e seu corpo de tanques. Aqui os personagens principais são o próprio Pyotr Novikov e o comissário Dementiy Getmanov, um funcionário cínico e oportunista.
Os dois núcleos que têm personagens reais são o alto comando do Exército Vermelho em Stalingrado e o o alto comando alemão na cidade. Lá estão Yeremenko, Zakharov, Chuykov, Krilov, Gurov, Pozharsky, Batyuk, Guryev e Rodimsev, todos reais. E do lado alemão, Friedrich Paulus, Schmidt e Adam.
Há ainda outros núcleos. Um grupo de judeus viajando de trem para um campo de extermínio onde está a médica Sofya Levinton, amiga de Zhenya. Um grupo de militares na estepe de Kalmyk. O grupo de pilotos ao qual pertence Viktorov, namorado de Vera. O círculo de amigos do comissário Getmanov.
Em Vida e Destino, Vasily Grossman utilizou tanto experiências pessoais, quanto os inúmeros relatos que ele colheu como repórter junto ao Exército Vermelho por quase quatro anos da Guerra. O episódio da mãe de Victor e do conflito com a esposa é autobiográfico. Yekatarina Savelievna, mãe de Grossman, morreu em um massacre de judeus em Berdichev, na Ucrânia em 1941. Ele culpava a esposa, Olga Mikhailovna, que pouco antes da guerra não concordou com a ida da sogra para Moscou, pois haveria pouco espaço no apartamento. O envolvimento com a esposa de um colega também é autobiográfico. Os conflitos morais de Victor são os mesmos vivenciados por Grossman como intelectual orgânico do stalinismo: assinar ou não uma carta que condenava um inocente? Assinar e sentir a consciência pesada ou não assinar e enfrentar o medo da prisão noturna? Ora a coragem, ora a covardia; ora a ousadia, ora o medo. As passagens referentes a Victor Shtrum são um verdadeiro tratado de psicologia sobre a vida em um estado totalitário e policial. São de Grossman também as lembranças do menino David, que viaja em um comboio para o campo de concentração, e a data do seu aniversário, 12 de dezembro. O personagem Novikov foi inspirado por Babadzhanyan, comandante de tanques que tornou-se marechal. O chefe de Victor, Chepyzin, que foi afastado, foi baseado no cientista Piotr Kapitsa, que se recusou a trabalhar no desenvolvimento da bomba atômica.
Não há nada extravagante em Vida e Destino, nem do ponto de vista estilístico, nem estrutural. Mas os questionamentos de Grossman e sua prática de mostrar a identidade entre comunismo e fascismo fazem de Vida e Destino uma obra extraordinária para a época em que foi escrita. Deve-se ter em conta que, nesse período, nem no Ocidente era feita essa identificação.
Vida e Destino foi escrito no final da década de 1950 e foi publicado na Rússia somente nos anos 1980.

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