quarta-feira, 26 de junho de 2013

Memorial de Aires, Machado na sua melhor forma

Já comentei aqui que os audiolivros e os engarrafamentos de Porto Alegre têm me permitido rever clássicos da literatura brasileira que li quando ainda era muito jovem. Entre o ano passado e este ano "ouvi" Dom Casmurro, Quincas Borba e Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos lidos quando eu era ainda adolescente e não tinha a vivência ( e a leitura) necessária para apreciar completamente essas obras. 
Memorial de Aires foi diferente. Eu não o havia lido. Li os menos valorizados Ressurreição, Helena e Iaíá Garcia e não li o último livro escrito por Machado. A culpa foi, em parte dos meus professores, que comentaram que Memorial de Aires era um livro menor, não apresentando Machado na sua melhor forma. Pois, discordo. Tendo "ouvido" O Memorial de Aires duas vezes e o lido uma, nos últimos meses, creio que a obra apresenta tudo de melhor do gênio de Machado de Assis. 
O Memorial de Aires é a o diário escrito pelo Conselheiro Aires, personagem que já aparecera em outros livros de Machado (especula-se se é ele ou não o narrador de Esaú e Jacó), durante os anos de 1888 e 1889. A narrativa começa em janeiro de 1888, quando já fazia um ano que o Conselheiro se aposentara da diplomacia e retornara ao Brasil. Nos seus trinta anos na ativa, Aires vivera no exterior, vindo esporadicamente ao país. 
Visitando o cemitério com sua irmã , Rita, Aires avistou uma bela mulher rezando em um túmulo. Soube por Rita que se tratava da viúva Noronha, Fidélia, que fora muito feliz no casamento, mas que esse durará muito pouco pelo precoce falecimento do esposo: 

"Nesse momento, a viúva descruzava as mãos, e fazia gesto de ir embora. Primeiramente espraiou os olhos, como a ver se estava só. Talvez quisesse beijar a sepultura, o próprio nome do marido, mas havia gente perto, sem contar dous coveiros que levavam um regador e uma enxada, e iam falando de um enterro daquela manhã."

Os irmãos então fizeram uma aposta a respeito da possibilidade da viúva vir a casar novamente. Aires sustentou que era possível que casasse, inclusive com ele próprio. Rita foi firme no sentido de que Fidélia não casava. 
Fidélia era conhecida de Rita da residencia do casal Aguiar. O "velho" Aguiar, gerente do Banco do Sul, e sua esposa, Dona Carmo, eram um casal de idade, sem filhos, que praticamente "adotara" Fidélia como filha postiça, em virtude do seu desentendimento com os pais por conta do casamento com o falecido Eduardo. Sabemos então que a história de Fidélia e Eduardo foi uma caso de Romeu e Julieta do Vale do Paraíba. Os pais dos jovens eram inimigos políticos e não permitiram o casamento, que ocorreu mesmo assim com o afastamento das respectivas famílias. Eles se conhecerem em um teatro no Rio de Janeiro e se apaixonaram. Depois do casamento, foram passar uma temporada em Lisboa, onde o rapaz faleceu. 
A ausência de filhos parecia ser a única mácula na vida do casal Aguiar, que aparece como exemplo de união conjugal, principalmente pelo caráter de Carmo, que alguns críticos sugerem ser inspirada em Carolina, esposa de Machado.  Eles supriam essa falta através de Fidélia e de outro "filho postiço" que, no início da narrativa estava desaparecido, mas logo anuncia seu retorno de Lisboa. 
Tristão, jovem médico, foi criado com duas mães, a sua e Carmo. O rapaz estava destinado pela família a ser comerciante, mas cedo demostrou o desejo de estudar Direito. No início da adolescência, sua família decidiu mudar-se para Lisboa, para a tristeza de Carmo. No princípio, as cartas e notícias eram abundantes. mas logo cessaram. Em maio de 1888 chegou carta de Tristão de Lisboa, anunciando a vinda próxima para o Brasil para visitar os pais adotivos. 
Em julho, o rapaz chegou da Europa para visita por tempo indeterminado e com propósitos incertos. Nesse meio tempo, falecera o Barão de Santa Pia, pai de Fidélia, deixando a ela a fazenda e os libertos, já que a abolição ocorrera em 13 de maio. 
Estabelece-se, então, uma rotina familiar entre o casal Aguiar, que hospedava Tristão, e Fidélia que estava sempre na casa dos pais adotivos. Reforçando o lado de Rita, Fidélia dispensou um pretendente, Osório. Tristão vai adiando o seu retorno à Lisboa, apesar dos chamados dos seus correligionários políticos. 
No início de novembro, pela primeira vez, Aires registra em seu diário que Tristão estava enamorado de Fidélia e ouve a confissão do jovem no dia 30. A partir daí foi tudo muito rápido. Em janeiro de 1899, os namorados estavam declarados e o casamento ocorreu em 15 de maio. 
Tristão, candidato a deputado pelas Cortes de Lisboa, decidiu partir para Portugal com a esposa. Tentaram convencer o casal Aguiar a ir junto. Diante da negativa, ocultaram dos velhos que a ida era definitiva. Em julho, o jovem casal partiu, deixando os Aguiares "com saudades de si mesmos". 
Apesar da aparência de narrativa de fatos do cotidiano, o Memorial de Aires é um livro cheio de facetas. Há muitos estudos literários a respeito da obra de Machado em geral e do Memorial em particular. Pretendo aqui apenas destacar as minhas impressões. 
Quando ouvi pela primeira vez a narrativa, tive um grande estranhamento, pois ouvira há pouco Memórias Póstumas de Brás Cubas e a diferença é muito grande. Foi na segunda vez que comecei a juntar as pistas de Machado. Destaco dois aspectos da obra, reconhecendo que há muitos mais a serem explorados: a relação de Tristão com Fidélia e a exploração por Machado da abolição da escravatura na narrativa. 
O que Aires conta não é a realidade, mas a sua visão da realidade. E em várias passagens Machado sugere que nem o que ele escreve corresponde realmente ao que ele pensa:

"Quando eu era do corpo diplomático efetivo não acreditava em tanta cousa junta, era  inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos  outros. Que os efetivos desconfiem!”

Aires está dizendo que suspendeu a desconfiança assim que se aposentou, sugerindo que não acreditemos no que ele conta. Ele não diz em nenhum momento, mas sugere em vários momentos, que já havia alguma relação anterior entre Tristão e Fidélia. 
Com respeito à Fidélia, sabemos que ela tem algo de atriz. Na primeira vez que Aires a vê no cemitério, ela olha para os lados para ver se alguém a estava mirando. No jantar de núpcias dos Aguiares, ela disse que não iria, pois estava com dor de cabeça e acabou indo e chegando quando todos já estavam sentados, estilo entrada triunfal. Ela conheceu Eduardo, o primeiro marido, num teatro. 

“Mas Fidélia? Não conheço santa com tal nome, ou sequer mulher pagã. Terá sido dado à filha do barão, como em forma feminina de Fidélio, em homenagem a Beethoven?” 

Na ópera Fidélio, de Beethoven (1808), Leonora utiliza uma máscara, a de Fidélio, para salvar Florestan, seu marido aprisionado pelo malvado Dom Pizzaro. Fidélia é, portanto, uma viúva fiel ao falecido, mas usa uma máscara.
Tristão também não é o que parece. O jovem passou anos sem dar notícias aos país adotivos e apareceu, de uma hora para outra no Rio, sem objetivo definido para uma visita longa. Deixou de ser comerciante, para estudar Direito, mas acabou se tornando médico. Todavia, não se dedicava à medicina, mas à política. 
Na interação dos dois a maior pista dada por Machado é a comparação de dois encontros presenciados por Aires. Em 12 de setembro, ao chegar de bonde ao centro, Aires encontrou a viúva Noronha que iria tomar o carro. Ao ver o bonde partir, o Conselheiro percebeu Osório, contemplando a viúva:

"Entrei nesta dúvida — se teriam estado juntos na rua ou na loja a que ela veio, ou no banco, ou no inferno, que também é lugar de namorados, é certo que de namorados viciosos, del mal perverso. Achei que não, e compreendi que ele, se acaso a cumprimentou na rua, não ousou falar-lhe, apenas a acompanhou de longe, até que a viu meter-se no bonde e partir."

Poucos dias depois,  em 22 de setembro, outro encontro. Aires encontrou Fidélia na rua. Conversaram um pouco e se despediram. Aires, por amor aos encantos da viúva, resolveu segui-la: 

"No Largo de S. Francisco estava um carro dela, perto da igreja. Íamos da Rua do Ouvidor, a  dez passos de distância ou pouco mais. Parei na esquina, vi-a caminhar, parar, falar ao cocheiro, entrar no carro, que partiu logo pela travessa, naturalmente para os lados de Botafogo. Quando ia a voltar dei  com o moço Tristão, que ainda olhava para o carro, no meio do largo, como se a tivesse visto entrar.  Ele vinha agora para a Rua do Ouvidor, e também me viu; detive-me à espera. Tristão trazia os olhos  deslumbrados, e esta palavra na boca: 
— Grande talento! "

Aires deduziu que a estranha frase dizia respeito ao talento musical da viúva. Mas não está Machado a sugerir ter Aires presenciado um encontro íntimo dos dois frustrado pelo aparecimento do Conselheiro? Por que no primeiro encontro Fidélia tomou um bonde e no segundo um carro particular? 
Quando o casal já estava noivo, Aires escreve:

“Sabiam tudo. Parecia  incrível como duas pessoas que não se viram nunca, ou só de passagem e sem maior 
interesse, parece incrível como agora se conhecem textualmente e de cor". 

Outro ponto fica por conta da epígrafe, a qual somente dei atenção quando li o texto: 

"Em Lisboa sobre o mar, marcas novas mandei lavrar" (Cantiga de Joham Zorro)
"Para ver meu amigo
Que talhou peito comigo
Lá vou madre
para ver meu amado
Que miga peito talhado,
Lá vou madre" (Cantiga do rei Dom Dinis). 

São cantigas portuguesas dos séculos XIII. Por que Machado teria escolhido essas epígrafes? Talvez para sugerir que algo ocorreu em Lisboa, ou seja, os namorados já se conheciam e já tinham uma relação quando Tristão chegou ao Rio de Janeiro. 
Finalmente, o modo como o casal procedeu no final com respeito aos pais postiços, também levanta uma sombra sobre seu caráter, embora Aires sublinhe a tristeza de Fidélia e o esforço de ambos para que os Aguiares os acompanhasse até a Europa. 
A narrativa inicia alguns meses antes da abolição da escravidão no Brasil. O Barão de Santa Pia, antes de falecer, foi ao Rio com o objetivo de libertar seus escravos não por ser abolicionista, pelo contrário, mas para não ter o desgosto de ver o governo interferir na sua propriedade. Em 13 de maio, Aires descreve as comemorações nas ruas do Rio de Janeiro e disse estar satisfeito com o ato da Regente. É no dia seguinte, contudo, que Aires faz a ligação entre a abolição e a narrativa. Ao chegar na casa do casal Aguiar e ver que havia uma reunião e alegria geral, julgou se tratar de uma comemoração pelo fim da escravidão. Não era. O casal comemorava a chegada de uma carta de Tristão anunciando a sua breve chegada. 
"Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular". É essa, uma das grandes frases da literatura brasileira, que dá o tom pelo qual Machado tratou a abolição. Ela pouco afetou a vida das elites, mesmo os que, como Santa Pia, eram donos de escravos. Num segundo momento, já Fidélia proprietária da fazenda ela pensa em vender a propriedade, apesar do apego dos libertos pela sinhá-moça. Um vez acertado o casamento com Tristão, os noivos decidem doar Santa Pia aos libertos para afastar as suspeitas de interesse do rapaz no casamento (mais uma sombra sobre o caráter de Tristão). 

"— Lá se foi Santa Pia para os libertos, que a receberão provavelmente com danças e com lágrimas; mas
também pode ser que esta responsabilidade nova ou primeira..." 

Essa frase incompleta encerra o assunto, demostrando o descaso da elite para com o destino dos negros após a abolição. Não era mais problema deles, nem mesmo de Fidélia, que havia "cativado" os escravos - Machado brinca aqui com os significados da palavra cativar. 
Haveria muito mais para falar dessa obra tão rica: o amor sensual do ancião Aires pela viúva, a reflexão sobre a velhice e a morte, os possíveis paralelos biográficos Aires-Machado. Mas deixo isso para os especialistas. 
O post tem por objetivo fazer justiça a um livro  menos conhecido do mestre de Cosme Velho, encoberto por sua genialidade.