quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pierrete - primeira história de Os Celibatários (novembro de 1839)

Personagens:  Jacques Brigaut, Pierrete Lorrain, Rogron, Sílvia Rogron, senhor Tiphaine, senhora Tiphaine, senhora. Lesourd, senhora Martener, senhor Martener (médico),senhora Auffray, senhor Auffray (tabelião), senhor Galardon, senhor e senhoraJulliard, Julliard (filho), senhor Desfrondrilles (arqueólogo), coronel Gouraud, Vinet (advogado), senhora Vinet (née Chargeboeuf), Adélia (criada), viúva Lorrain (avó de Pierrete) , senhora Celeste Habert (irmã do vigário), padre Habert, Frappier (empregador de Brigaut), Bathilde de Chargeboeuf, senhora de Chargeboeuf (mãe de Bathilde).

A história se passa entre 1827 e 1830.

Pierrete é, assim como Pai Goriot,  uma análise do mal. Nessa história, Balzac usou sua experiência na advocacia e em um tabelionato. Ele relatou em cartas a enorme quantidade de injustiças que presenciou em contato com o sistema legal. Há um processo na história. E Pierrete reflete também, pois foi escrita na mesma época, o envolvimento de Balzac na defesa de um advogado conhecido seu, Sébastien Peytel, que fora acusado de assassinar a esposa e um criado. Apesar dos esforços de Balzac, que chegou a escrever a Lettre sur le procés de Peytel,  o acusado foi condenado e executado. É um Balzac sombrio, portanto, que escreveu a história, caracterizada por ele, em carta para a condessa Hanska como “uma pérola suada no meio das minhas dores”.
Pierrete Lorrain era uma órfã bretã que após a morte precoce dos pais ficou aos cuidados dos avós em um asilo. Seus únicos parentes eram os primos Rogron, filhos de um hoteleiro de Provins, que, ainda bem jovens, foram enviados a Paris para trabalhar no comércio. Depois de alguns anos de trabalho, Sílvia e Rogron receberam a herança do pai e resolveram retornar a Provins e viver como burgueses. Nesse meio tempo, receberam uma carta questionando se não queriam ficar com Pierrete, já que a prima não tinha meios e estava vivendo com os avós em situação precária. Os Rogron, ao chegarem em Provins, reformaram a casa e fizeram esforços no sentido de integração com a sociedade local, dominada pelos Tiphaines. Considerados pouco refinados e desagradáveis, foram repelidos pelas famílias mais importantes. Isolados e levando uma vida vazia, resolveram “adotar” a prima. O coronel Gouraud e Vinet, liberais interessados no dinheiro dos Rogron, se aproximaram dos irmãos. Conseguiram convencer Rogron a financiar um jornal liberal para fazer oposição aos Tiphaine, que apoiavam os Bourbon. Pierrete chegou e logo percebeu que o motivo de sua adoção não fora afetivo. Os irmãos, e especialmente a solteirona Sílvia, a tratavam com frieza. A frieza logo se transformou  em crueldade. A criada Adélia foi despedida e Pierrete passou a fazer todo o serviço da casa. A menina já não era muito saudável e, aos poucos, ficava mais doente. A certa altura, Sílvia, que estava pretendendo casar com o coronel Gouraud, começou a desconfiar que ele estava interessado em Pierrete. Numa ocasião, surpreendeu um homem tentando se comunicar com Pierrete pela janela. Era o jovem Brigaut, companheiro de infância de Pierrete que viera da Bretanha. Mas a solteirona julgou que era o coronel e passou a perseguir e maltratar ainda mais a menina. A doença de Pierrete já era notada por todos. Mas Sílvia se recusava a chamar o médico. Vinet, querendo dominar os Rogron, arranjou o casamento de Bathilde de Chargeboeuf, prima de sua mulher, com o solteirão.
Brigaut, ao notar o estado lastimável de Pierrete, foi atrás de sua avó. A viúva Lorrain havia recebido um dinheiro que havia sido furtado de seu marido. Foi para Provins e retirou Pierrete da casa dos Rogrons. O caso se transformou numa disputa política. Os Tiphaine promoveram um processo contra Sílvia. Vinet, atuando como advogado, utilizava todos os subterfúgios do mundo jurídico (diligências, adiamentos, consignações, tudo bem conhecido de Balzac) para tornar o processo inútil. Pierrete morreu, apesar da vinda de Paris do nosso conhecido doutor Horácio Bianchon.
Em 1830, Vinet foi eleito deputado e os Tiphaine aderiram a Luís Felipe, passando então a frequentar o mesmo grupo. O processo não resultou em nada. O caso Pierrete foi esquecido e a história deturpada. Somente o Major Jacques Brigaut e o doutor Martener, que cuidou da menina, ainda lembravam da órfã.
Balzac mostrou em Pierrete novamente o seu talento de desenhar o caráter pela descrição. A descrição da decoração da casa dos Rogron em Provins evidencia a sua estupidez, a sua falta de personalidade e o vazio de sua existência. Igualmente se destacam na obra as intrincadas intrigas provincianas que Balzac conhecia tão bem.
O autor utiliza, além de sua experiência no mundo jurídico, uma dolorosa experiência pessoal. Os burgueses, nos séculos XVIII e XIX, enviavam seus filhos recém-nascidos para serem amamentados por camponesas. As crianças ficavam por vários anos morando nas casas de suas amas, algumas em outras cidades. Balzac explica isso como uma hábito das mulheres durante o Império: “As mulheres disputavam os heróis do império, e 99% da mães entregavam os filhos às amas-de-leite”. Balzac passou os primeiros anos da infância no povoado de Saint-Cyr, do outro lado do rio Loire, na cidade de Tours. Retornou à casa dos pais com quatro anos.  Ele escreve sobre os Rogron: “Amamentados no campo mediante baixa remuneração, as infelizes crianças voltaram para casa com a terrível educação aldeã: habituadas a gritar demoradamente, muitas vezes pelo seio da ama, que saía para o campo e os deixava encerrados num desses quartos escuros, úmidos e baixos que servem de moradia ao camponês francês”. Ele estava familiarizado com esses quartos.
Ao que tudo indica, Pierrete deveria ter um final feliz. A recuperação da fortuna pela avó encaminhava um desfecho favorável com a órfã vivendo ao lado dela e futuramente desposando Brigaut. Além disso, a história era um presente de Balzac para a menina Anna Hanska, filha de Eveline. Foi  a morte de Peytel na guilhotina em 28 de outubro de 1839 que conferiu ao romance o acento pessimista.
Todavia, não esqueçamos que o pessimismo é uma característica de Balzac. Os bons e inocentes sofrendo e os maus e interesseiros triunfando aparecem em toda a Comédia Humana. É a justiça maniqueísta, como em Alberto Savarus,  que parece sempre forçada vindo da pena de Balzac.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Adolphe

Adolphe (French Edition) Benjamin Constant. [Kindle Edition].

 

Lido em junho de 2011.

Meu conhecimento sobre Benjamin Constant se limitava à leitura, na época da faculdade, do ensaio Sobre a liberdade dos antigos comparada a dos modernos. Foi Balzac quem me levou ao Benjamin Constant escritor de ficção.
Na obra A Musa do Departamento, Balzac cita diversas vezes a novela Adolphe. Ele faz do romance entre Diná e Losteau uma reedição do caso de Adolphe e Ellenore.  A obra me interessou e, graças ao Kindle, obtive o texto original na hora em que decidi lê-lo.
Me surpreendi com a riqueza e profundidade da novela que trabalha um tema difícil: o fim do amor -  não o fim abrupto, mas o fim gradual, durativo, cansado.
Adolphe era um jovem de 22 anos que havia terminado seus estudos na Universidade de  Gotinghan. Ele então instalou-se no principado de D. Levando uma vida frívola, sem um objetivo definido, Adolphe tornou-se confidente de um jovem que, depois de idas e vindas, conquistou uma dama da sociedade. Os relatos do amigo aguçaram a curiosidade de Adolphe. Neste meio tempo, ele travou conhecimento com o conde de P, um homem de quarenta anos conhecido de seu pai. O conde vivia com sua amante, uma bela polonesa, há dez anos, e tinha com ela dois filhos. Adolphe considerou Ellenore “digna” de ser por ele conquistada. Depois de lutar contra a própria timidez, o jovem, aproveitando uma viagem do conde de P, escreveu uma carta se declarando para Ellenore. Recebeu uma resposta amável, mas negativa. Ellenore viajou deixando Adolphe desesperado e excitado por sua recusa. Com o retorno da amada, ele conseguiu marcar um encontro. “Eu me sentia, pela primeira vez, realmente apaixonado. Não era a esperança de sucesso que me fazia agir: a vontade de ver a minha amada, de desfrutar de sua presença, me dominava exclusivamente” 1 . Adolphe se submeteu às exigências de Ellenore - somente visitá-la em companhia de outros, nunca falar de amor - exigências que, já nos primeiros dias, foram fexibilizadas. Logo, os dois estavam apaixonados. “O amor é nada mais que um ponto luminoso, e, apesar disso, parece se apoderar do tempo. Em alguns dias ele ainda não existia, logo, ele não mais existirá; mas, enquanto existe ele reflete sua claridade sobre a época que o precede, bem como sobre a que o segue”2. Ellenore se entregou. “Triste o homem que, nos primeiros momentos de uma ligação amorosa, não acredita que essa ligação será eterna!” 3.
O conde de P teve de se ausentar durante seis semanas, tempo que os amantes passaram inteiramente juntos. Adolphe então começou a se incomodar com a insistência de Ellenore em controlar seus passos e temer comprometê-la. “Ellenore era, sem dúvida, um grande prazer em minha existência, mas ela não era mais um objetivo: ela se tornou um lugar” 4. Começou a ficar claro para o jovem que a ligação não poderia durar. No momento em que o conde de P já começava a suspeitar, o pai de Adolphe pediu que ele retornasse à França. Ele conseguiu, depois de Ellenore implorar, permanecer por mais seis meses. Nesse momento, eles tiveram a primeira de muitas discussões raivosas e graves. Finalmente, Ellenore deixou o Conde de P e seus dois filhos. Adolphe retornou para a França, com a promessa de se reunir a Ellenore dois meses depois. Nesse ponto, ele já estava seriamente arrependido. Ellenore foi ao seu encontro e o casal foi viver em uma pequena cidade da Boêmia. Nesse momento, Adolphe já tinha consciência de que não mais amava Ellenore. Além disso percebia que estava perdendo seu tempo, deixando de investir em uma carreira e de levar a vida de um jovem de sua idade e posição social. Mas consumia-se pela culpa, já que a amante deixara tudo por ele. O rapaz chegou a escrever uma carta revelando a verdade. Mas, diante de uma cena de Ellenore, ele disse que o que escrevera não era verdadeiro. O casal então foi morar em uma das propriedades do pai de Ellenore perto de Varsóvia. Lá, Adolphe encontrou o barão de T, amigo de seu pai, que o convenceu a romper a incômoda relação. Ellenore interceptou uma carta de Adolphe para o barão, revelando seus planos e sua decisão de deixá-la. Ellenore, então, adoeceu e, depois de uma longa agonia, faleceu. Antes, pediu a Adolphe que queimasse uma carta sua sem ler.  Adolphe prometeu, mas rompeu a promessa. “Por qual piedade bizarra você não ousa romper uma ligação que lhe pesa, e decidiu ser infeliz enquanto sua pena o retém? (...) O que exige? Que eu lhe deixe? Não vê que não tenho força? Ah! É você, que não ama mais, é você que tem de encontrar essa força (...)”5.
É impressionante que este texto já tenha quase duzentos anos. Uma das razões para esta atualidade é a remoção de todas as circunstâncias irrelevantes e a manipulação do essencial com o objetivo de dar relevo ao problema principal. Nesse sentido, Constant é um anti-Balzac. Balzac apresentaria Ellenore descrevendo a sua casa, o seu quarto. Em Adolphe, não há cenários, as personagens coadjuvantes são quase somente nomes, poucos dados informam que estamos no início do século XIX.
Ellenore é uma mulher de posição social insegura: é amante de um nobre, mas ele mesmo a faz lembrar de que é menos que uma esposa. E aqui, representando todas as mulheres, está em busca de segurança, de solidez. Adolphe é um jovem que perdeu a mãe quando criança e foi criado por um pai distante e cínico. E, no lugar de todos os homens, busca uma conquista fácil: uma mulher mais velha (uma mãe) de situação irregular. O conflito se instala, uma vez que Adolphe, uma vez tendo obtido a sua presa, se cansa: Ellenore deixou de ser um objetivo para ser um lugar. E Ellenore, depois de resistir, acha que encontrou o homem de sua vida. Assim ela tenta prendê-lo com sua doçura, com seus sacrifícios - ela perdeu o companheiro, deixou os filhos, abriu mão de bens. Ele fica cada vez mais incomodado com o seu assédio, com ela controlando seus horários, seus passos. Ao mesmo tempo se sente culpado: ele nada pediu, mas ela tudo deu. A solução do conflito é a morte de Ellenore. E sua carta deixa implícito que ela estaria pronta a aceitar a separação de Adolphe se este tivesse sido honesto com ela.
Pesquisando sobre Adolphe, descobri que no tempo em que a novela foi publicada, houve grande especulação para saber quem era quem na história. Constant até publicou um prefácio destacando o caráter fictício do texto.
Adolphe foi publicado em 1816 quase simultaneamente em Paris e Londres. Benajmin Constant tinha uma vida amorosa conturbada e discutida nos círculos mais elegantes.
Ao que tudo indica, a mulher mais velha  a que Adolphe se refere no início do texto, que faleceu, foi Madame de Charrière, com quem Constant teve um caso aos 19 anos - ela tinha 46. Em 1788, Constant casou-se com Minna von Cramm. O casamento não deu certo e eles se separaram por volta de 1788. Em 1793, ele conheceu Charlotte von Marenholz. Sua história com Charlotte, com quem se casaria em 1811, foi contada na novela Cecile. Foi em 1894 que Constant conheceu a mulher cuja biografia ficou para sempre ligada à dele: Germaine de Staël. Entre idas e vindas, eles estiveram juntos até 1811, quando ele casou com Charlotte. Além do romance, eles tiveram uma fecunda parceria intelectual, tendo escrito vários textos juntos. Acredita-se que Albertine, filha de Staël que nasceu em 1797, fosse filha de Constant.  Staël era uma mulher de personalidade forte e muito dominadora. Quando Constant estava em sua propriedade, Germaine controlava os horários de saída e chegada do amante e muitas vezes saía de carruagem à procura dele, cena descrita em Adolphe.
Houve ainda Anna Lindsay, que o escritor conheceu em 1800. Ela era cinco anos mais velha que ele (tinha 38 anos) e vivia com um amante há onze anos com que tivera dois filhos. Anna quis deixar o companheiro e filhos para viver com Constant.
Percebemos assim que Ellenore é uma amálgama de Anna, Charlotte e Staël. Sua biografia era a de Anna. A história da aproximação e do idílio amoroso correspondia ao seu romance com Charlotte. E as brigas, as reconciliações passionais, as promessas, correspondiam ao seu relacionamento conturbado com Staël.  Ele de fato quis deixar Germaine muitas vezes e até teve oportunidades, mas acabava voltando atrás.
A obra de Bejnamin Constant me recordou uma outra paixão trágica da literatura: Anna Kariênina e o conde Vrónski. A história da crise que levou Anna ao suicídio é muito semelhante à de Adolphe e Ellenore. A diferença é que Tólstoi trabalha com o contexto e com uma galeria extensa de personagens, ao passo que Constant isola o problema.
Depois que Anna deixou o marido, ela e o conde foram viajar pela Europa juntos. “Vrónski (...) apesar da plena realização daquilo que tanto havia desejado, não era inteiramente feliz. (...) Nos primeiros tempos, logo depois de se unir a Anna e adotar trajes civis, sentiu todo o encanto da liberdade em geral, que antes não conhecia, e também da liberdade do amor, e ficou satisfeito, mas não por muito tempo. Logo sentiu que em sua alma se esguiam os desejos de desejos: o tédio”. Anna percebeu e logo começou a angústia pelo medo que Vrónski deixasse da amá-la. “E, embora estivesse convencida de que a frieza começava, mesmo assim ela nada podia fazer, era impossível alterar por pouco que fosse suas relações com Vrónski. Exatamente como antes, só por meio do amor e do encanto ela podia segurá-lo. E, assim como antes, graças aos afazeres durante o dia e à morfina durante a noite, ela conseguia abafar os pensamentos terríveis sobre o que aconteceria se ele deixasse de amar”. A sequência foram as cenas de ciúmes, as reconciliações, o arrependimento de Vrónski simultâneo ao seu sentimento de culpa e o suicídio. Será que Tólstoi conhecia Adolphe?
O encanto de Adolphe está justamente em descrever tão bem uma situação que não é muito explorada pela literatura - como é não estar apaixonado numa situação de romance. Benjamin Constat, ao que parece, entendia do assunto. 

As citações de Tólstoi são da edição da Cosac Naify de 2005, com tradução de Rubens Figueiredo. 

Je me sentais, de la meilleure foi du monde, véritablement amoreaux. Ce n’était plus l’espoir du succês qui me faisait agir: le besoin de voir celle que j’amais, de joir de sa prësence, me dominait exclusivement.
L’amour n’est qu’un point lumineux, et néanmoins il semble s’emparer du temps. Il  y a peu de jours qu’il n’existait pas, bientôt il n’existera plus; mais, tant qu’il exist il répand sa clairté sur l’époque que l’a précédé, comme sur celle qui doit le suivre.
3 Malheur à l’homme qui, dans les premiers moments d’une liason d’amour, ne croit pas que cet liason doit être éternelle!
4 Ellenore était sans doute um vif palisir dans mon existence, mais elle n’était plus un but: elle était devenue un lien. 
5 Par quelle pitié bizarre n’osez-vous rompre un lien qui vous pêse, et déchirez vous l’être malheureux près qui votre pitié vous retient? (,,,) Qu’exigez vous? Que je vous quitte? Ne voyez-vous pas que je n’en ai pas la force? Ah! c’est à vous, qui n’aimez pas, c’est à vous à la trouver, cette force (...). 


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Eugênia Grandet (setembro de 1833)


Personagens: Grandet, Senhora Grandet (née Bertellière); Eugênia; C. de Boufons (sobrinho do senhor Cruchot); senhor Cruchot (notário); Padre Cruchot; senhor de Grassins; senhora de Grassins; Adolfo de Grassins; Nanon (senhora Cornoiller depois de casar); Carlos Grandet; Anete (amante de Carlos); senhorita d'Aubrion (noiva de Carlos).

A história começa em 1819 e termina por volta de 1829.

Paulo Rónai nos conta que Eugênia Grandet foi o primeiro sucesso de público e crítica de Balzac. Foi escrito em um período especial: entre o primeiro encontro com Eveline Hanska em Lausanne, quando se conheceram pessoalmente, e o segundo, em Genebra, quando se tornaram amantes. Foi, portanto, um apaixonado Balzac que escreveu a história do amor fiel e exaltado da provinciana Eugênia Grandet.
A fórmula do início é tipicamente balzaquiana e nossa conhecida: um retrato da família Grandet na cidade de Samur. A descrição da sala da casa Grandet nos conta quase tudo sobre a família que a habita. E aí aparece o personagem que ofusca a heroína: o tanoeiro Grandet. Ele passava os dias fazendo negócios lucrativos e as noites encerrado no quarto contando seus milhões. E apesar das vultosas quantias entesouradas, submetia esposa e filha a uma vida no limite da sobrevivência: “Durante quinze anos, todos os dias da mãe e da filha haviam decorrido placidamente naquele lugar, em constante trabalho, desde abril até novembro. No dia 1º deste último mês elas se transferiam para junto da lareira, a fim de passar o inverno. Somente nesse dia Grandet permitia que se acendesse o fogo na sala. E o fazia apagar a 31 de março, indiferente ao frio dos primeiros dias da primavera e do outono”.
A austera casa Grandet era frequentada por dois grupos: os Cruchots e os Grassins.  O sobrinho do senhor Cruchot, presidente do tribunal de primeira instância de Samur, o o jovem Adolfo de Grassins aspiravam à mão da rica Eugênia. Grandet, que não pretendia dar a filha a nenhum dos dois, jogava com esses interesses para obter favores e aumentar sua fortuna.
O equilíbrio foi rompido pela chegada de Paris do sobrinho de Grandet, o belo Carlos. O rapaz, um típico dândi parisiense, vestido na última moda e já dotado de uma amante casada, chegou a Samur, enviado pelo pai, irmão do velho avarento. Carlos trouxe uma carta fechada na qual o pai contava a Grandet a sua falência, a desgraça de seu nome na praça em Paris e anunciava o seu suicídio. Pedia a Grandet que ajudasse o sobrinho. Grandet conseguiu, utilizando os serviços de des Grassins, suspender a falência do irmão. E preparou a viagem de Carlos para as Índias. Nesse meio tempo, o romance. Eugênia e Carlos se apaixonaram: juraram amor eterno e a moça emprestou ao amado grande quantia de dinheiro que guardava. Carlos partiu. Grandet, ao descobrir o sumiço do tesouro da filha, ficou fora de si. Trancou-a no quarto a pão e água. O desentendimento entre pai e filha agravou a enfermidade da senhora Grandet, que veio a falecer. No final de 1827, aos oitenta e três anos,  foi a vez do velho Grandet.  Antes, iniciou Eugênia nos mistérios da enorme fortuna. Eugênia, já nas casa dos trinta, esperava por Carlos. Seus pretendentes continuavam a frequentar a casa, mas cada vez mais desanimados. Em 1828, Carlos retornou. Refizera a sua fortuna, mas esquecera a prima. Logo arranjou um casamento de conveniência com a senhorita d’ Aubrion, uma jovem sem fortuna e atrativos, mas com pais bem relacionados e com a partícula. Ao ser interpelado por des Grassins para pagar as dívidas do pai e reabilitar seu nome, recusou-se a fazer dizendo que adotaria o nome do sogro. Eugênia, ao saber de tudo, fez um acordo com o juiz Cruchot: se casaria com ele, mas seria um casamento de fachada. Em troca ele deveria procurar o primo, devolver seus pertences e quitar a dívida do tio. Carlos descobriu tarde demais o quão rica era a prima. E Cruchot, que utilizou seus conhecimentos jurídicos para fazer um acordo matrimonial desvantajoso para Eugênia, foi apanhado pela fortuna: faleceu pouco tempo depois do matrimônio. Eugênia, ao final, estava sozinha.
Entende-se o sucesso de Eugênia Grandet. Mesmo sem o toque de gênio de Pai Goriot, o romance tem tudo o que Balzac sabe de melhor fazer. Em primeiro lugar, os personagens. Grandet é um dos grandes avarentos da literatura. Balzac conseguiu criar um avarento humano, bem menos caricatural que Gobsek. Ele distribuía pela manhã os víveres para o dia, obrigando a criada, a mulher e a filha a contrabandear comida. Mas seu amor pela filha e sua devoção pela esposa eram reais e o faziam, muitas vezes, fraquejar.
Eugênia é mais uma versão da virgem francesa de Balzac, a jovem que passa a viver quando descobre o amor. Surpreende, contudo, ao casar com Cruchot e humilhar o primo, pagando suas dívidas. E é encantador ver como ela trazia o velho Grandet dentro de si. Depois da morte do pai, ela manteve os mesmos hábitos avarentos. Ela só não era considerada avara na comunidade por seus trabalhos e doações para caridade.
A criada Nanon é uma forte personagem de apoio. Humilde e orgulhosa, comparsa e opositora das rabugices de Grandet. Acabou casada, como uma boa burguesa, após a morte do patrão. São muitos exemplos da incoerência orgânica que é a prova inequívoca da vida real.
Um segundo ponto, são as intrigas que Balzac consegue articular tão bem, sobretudo na província. As visitas do cruchonistas e grassinistas à casa Grandet atrás do ouro de Eugênia garantem os momentos cômicos do romance. Só que aqui as tramoias não roubam a cena, como em Úrsula Mirouët. Elas fazem um bom pano de fundo para ação que começa com a chegada de Carlos.
Finalmente, o amor segundo Balzac. O amor de Eugênia é totalmente idealizado. Ela se apaixonou pelo primo, à primeira vista, e devotou sua vida a esperá-lo praticamente sem conhecê-lo. O Carlos que aparece em 1828, é bem diferente do rapaz que chorou por dias a morte do pai. Em duas deliciosas páginas que Rónai denomina de “educação sentimental” de Carlos, surge um homem frio, calculista, envolvido em negócios nada morais, como tráfico de escravos. Ele era, afinal, um Grandet. A solução de Balzac poderia ter sido um casamento infeliz com Carlos, como o de Augustina Guillaume.  Um final feliz com Carlos, como o de Adelaide, em A Bolsa. Um casamento feliz com Cruchot, como o de Modesta Mignon (que se apaixonou por Canalis, mas escolheu  la Brière). Balzac escolheu um fim pragmático. Um casamento de fachada com Cruchot, para contentar a comunidade, e a viuvez precoce. Balzac apaixonado parecia pensar que se ama somente uma vez na vida. Mas no final, ele diz que Eugênia ainda poderia vir a se casar.

domingo, 11 de setembro de 2011

A Pianista

A Pianista. Elfriede Jelinek. São Paulo: Tordesilhas, 2011. Tradução: Luis Krausz. 

Lido entre 11 e 23 de julho de 2011. 

Excluindo Balzac, grande parte da literatura estrangeira por mim comentada é de língua alemã. O motivo: estudo alemão e frequento a biblioteca do Instituto Goethe. Tudo de novo que se publica em literatura alemã, no original ou em português, chega cedo na estante de novidades dessa biblioteca que fica num dos meus lugares preferidos em Porto Alegre. Um dia vou poder me exibir aqui com o original, mas por enquanto me contento com as traduções. Elfriede Jelinek tem algumas coisas em comum com Herta Müller: era pouco conhecida fora dos países de língua alemã quando ganhou o Nobel de Literatura em 2004 e a tradução de seu livro mais conhecido, Die Klavierspielerin - A Pianista, saiu neste ano no Brasil. Mas as semelhanças param por aí. O tema é também a opressão, mas não a política - a opressão internalizada. 
Erika Kohut é uma professora da piano de um conservatório de Viena. Está próxima aos quarenta anos e mora com a mãe em um apartamento de dois quartos. Erika foi criada para ser uma grande pianista de carreira internacional, mas não passou pela rigorosa seleção que esse tipo de carreira implica. Sua mãe, um mulher frustrada que se realiza através da filha, a trata como uma criança: controla seus horários, suas compras e dorme junto com ela na cama. A vida social de Erika consiste em concertos particulares em casas de família, sempre junto com a mãe. De resto, as duas passeiam pelos arredores de Viena nos finais de semana e assistem à televisão. É uma relação de co-dependência típica. Numa passagem, logo no início da narrativa, Erika chegou um pouco atrasada. Sua mãe havia, em represália, cortado alguns vestidos novos que ela comprara. Ela agrediu a mãe, arrancando um chumaço de seus cabelos. Depois de se agredirem fisicamente, as duas se abraçaram e pediram desculpas. 
Erika não tem namorado. Já teve algumas relações no passado, frustrantes do ponto de vista sexual. A tensão aparece na narrativa quando um jovem de 24 anos, Walter Klemmer, belo e atlético, se aproxima da professora. Ele admira a competência de Erika ao piano, já que também toca o instrumento, com rara maestria para uma amador. Klemmer está francamente interessado em Erika. Quer ter uma experiência com um mulher mais velha. Erika repele as suas atenções, ao mesmo tempo que fica cada vez mais interessada no rapaz. A onipresença da mãe impede que a professora explore seu próprio corpo. Por vezes, ela se tranca no banheiro e corta com um aparelho de gilete que pertencia a seu pai os lábios vaginais. Inventa aulas particulares noturnas e vai a cabines de striptease ou ao Prater assistir aos casais tendo relações sexuais. Em uma ocasião, em um ensaio coletivo, Erika se vinga de uma estudante que se aproximou de Klemmer colocando cacos de vidro nos bolsos de seus casaco. A menina corta as mãos e fica fora do concerto anual. É nesse dia que Klemmer agarra Erika no banheiro do conservatório. Ela não deixa que ele consume a relação sexual. A partir daí Erika começa um jogo masoquista com Klemmer que culmina quando o rapaz dá-lhe uma surra e a estupra no quarto de sua casa. 
São muitos os temas explorados nesse romance. Um dos principais, até porque Elfriede também é formada em música, é o binômio beleza/sofrimento que encerra uma carreira musical. Uma disciplina de horas de estudo por dia para atingir a perfeição não é suficiente. É preciso aquele diferencial chamado talento que poucos têm. Assim, quem se dedica à música e não é um dos escolhidos, ou se entrega ao amadorismo ou estará fadado à frustração. Erika se sente frustrada por não ter atingido o que era dela esperado. Então, sua desforra é humilhar os alunos, chegando até a feri-los fisicamente. Mas para mim, o tema mais bem trabalhado e que aproxima Jelinek de Schnitzler é a opressão do cotidiano. A autora apresenta um dia a dia brutal, cheio de tristeza e violência, por detrás da fachada de uma existência de classe média. Erika, assim como Georg von Wergenthin, de O Caminho para a Liberdade, e como o doutor Gläser, de O médico das termas, não tem sentimento em sua vida. Sua técnica, como pianista, é perfeita, mas técnica somente produz uma boa professora de piano, não uma boa intérprete. 
O trecho em que Erika e sua mãe levam o pai, insano (mais um ponto em comum com Schnitzler, a loucura sempre à espreita), para ser internado em um hospital para doentes mentais numa cidade próxima a Viena é revelador dessa violência do dia a dia: “ O pai não compreende por que está ali, pois ali nunca foi a casa dele. Está proibido de fazer muitas coisas, e em todas as que faz, mesmo as que são proibidas, tampouco é bem visto. Tudo o que ele fizer está errado. Já está acostuma a isso, por sua esposa. Ele já não deve mais tomar nada nas mãos nem se mexer. deve lutar contra a sua agitação e permanecer deitado (...). Mas o pai continua a querer sair, mal acabou de ser colocado no depósito. Ele é apanhado e obrigado a ficar ali. De que outra maneira sua família haveria de se livrar da perturbação? De que outra maneira os proprietários da instituição haveriam de garantir suas riquezas? Para uns é necessário que ele fique longe. Para outros, é preciso que ele permaneça ali. Uns vivem de sua presença. Os outros, de sua ausência. De ele ter ido embora e de não precisarem mais olhar para ele. Aufwiedersehen. Até logo. Foi um prazer. Para tudo há um fim. Quando elas estiverem ido embora, o pai, apoiado num ajudante trajando um avental branco, com ar de má vontade, deverá dar tchauzinho para as duas senhoras.” 
É digno de nota que recentemente tenham sido descobertos casos aterradores de violência doméstica justamente na Áustria, por detrás dos muros de casas de classe média. 
Houve algo que interferiu na minha leitura: para mim Erika Kohut tem o rosto da talentosíssima atriz francesa Isabelle Huppert que a representou no filme A Pianista de Michael Haneke. Eu havia visto o filme em 2001, no cinema. Agora, o revi. É muito fiel ao livro e não fica devendo a ele como sói ocorrer com adaptações de livros para o cinema.