sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Fora de Mim - Martha Medeiros


Lido entre as 13:47 e as 15:54 hs. do dia 16 de dezembro de 2010.

Embora leia com frequência os textos de Martha Medeiros no jornal Zero Hora, nunca havia lido um livro dela. Martha e Cláudia Laitano são as minhas cronistas preferidas de Zero Hora. Ambas fazem uma abordagem inteligente do universo feminino, sem se limitar a ele.
Fora de Mim é um relato em primeira pessoa dividido em três partes. A narradora escreve se dirigindo a um homem com quem teve um relacionamento que acabou dolorosamente. É como se fosse uma carta. Aqui lembrei do belíssimo Fazes me Falta de Inês Pedrosa. O tom confessional é o mesmo, embora Inês trabalhe com maior densidade.
O tema é o amor insano. Não o amor tranquilo dos casais casados ou dos separados que se unem por afinidade. Este está presente no casamento da narradora que acabou com um abraço e um afago na cabeça do ex-marido e no relacionamento que ela teve depois que terminou com Ele. Escrevo Ele com letra maiúscula, pois a ideia é essa. A narradora que aprendeu na infância que só amamos uma vez, logo percebeu que isso não era verdade. Só no livro ela nos conta quatro relacionamentos: com o ex-marido, com Ele, com o que conheceu depois d´Ele e com o atual. Mas ela, mesmo relutante, admite que Ele foi o homem mais importante de sua vida: “por que logo você? Se eu tantas vezes te neguei o título de ´homem da minha vida` pelos motivos mais variados, se por sua causa tantas vezes me sinto menos do que eu media de fato, se afinidade era algo que jamais nos uniu, por que você seguia sendo, contrariando todas as apostas e à revelia do que eu afirmasse por mim mesma, o homem mais importante da minha vida?”.
A primeira parte narra a ruptura, depois de um prólogo em que a narradora compara o fim de um amor com um acidente de avião. Toda a mulher que já amou muito, desse jeito, vai se reconhecer na voz de Martha. O choro contraído, a ausência de fome, a sensação levar um autômato para passear e algumas reflexões: “ A morte tem me visitado em horas diversas do dia, a ideia dela surge em conta-gotas, e muitas vezes não é a morte minha, mas a sua, o que facilitaria muito as coisas, você morto não me trai, você morto não me dá esperança de retorno, você morto não me enviará o e-mail que tanto aguardo, você morto é a tranquilidade certa da minha alma. Morrendo você, eu é que descansaria em paz”.
Na segunda parte, ela conta como o casal se conheceu, os altos, altíssimos, e baixos, sombrios, do relacionamento. No final da primeira parte, ela revelara um dado que vai sendo preenchido de sentido. A irmã d´Ele, conversando com ela ao telefone, “deixou escapar algo que eu já suspeitava, mas não tinha certeza”. À medida que esse segundo capítulo avança, fica claro que o Homem da narradora sofria de distúrbio bipolar. O início afoito e intenso, as alterações súbitas de humor, o ciúme paranoico, a tendência de se aborrecer com coisas pouco importantes formam um quadro quase clássico da doença. Mas apesar das brigas, rupturas e voltas, Ele valia a pena. “Você me tirava do sério de um jeito que nunca havia me acontecido, eu parecia estar endoidecendo, mas eu não ia embora porque acreditava que você ainda valia a pena, e nunca entendi tão perfeitamente o significado dessa expressão, valer a pena. Era um castigo”. A narradora descobriu, analisando a forma repentina e precoce com que disse a Ele “eu te amo” pela primeira vez, que ela estava se amando pela primeira vez. Um amor assim não é passível de ser explicado, e buscar explicação é infrutífero. Entender é limitado, não entender é libertador. Mas a narradora encontrou uma pista: é a pessoa que nós somos quando estamos junto àquela pessoa que amamos, é essa pessoa que não connhecíamos ainda, mesmo que já tenhámos passado dos 40 anos, que produz tamanho abalo em nossas vidas.
A relação declinou quando a narradora percebeu que para manter seu amor, teria que desistir de si mesma, teria de ser “uma mulher que procurava não tocar em assuntos que pudessem resultar em atrito. Uma mulher que evitava ser espirituosa com receio de não ser compreendida."
Na última parte, a narradora conta o o que aconteceu depois do fim. O Homem casou com uma mulher com quem ele passou a se relacionar pouco tempo depois da ruptura. Teve filhos com ela. Elas acabaram se encontrando e estabelecendo uma relação de amizade. Tudo indica que o novo relacionamento d´Ele era igualmente conturbado, mas sua parceira era mais passiva. A narrradora conheceu um homem interessante e tranquilo. Esse relacionamento nota 7 (“os três pontos que faltavam para alcançar o sublime eram os que conferiam espaço para a minha liberdade”) não avançou, pois o moço queria casar. E ela termina revelando que está novamente em um relacionamento que tem tudo para não dar certo. A pulsão da entrega é mais forte do que a razão e o comedimento. No final ela declara: “Preciso que saiba: nunca deixarei de pensar em você, por que você foi o amor menos elaborado que tive, menos politicamente correto, menos ´o cara certo na hora certa`, menos criado no cativeiro da idealização, e essa impossibilidade de intelectualizar o que senti me faz pensar que talvez eu não estivesse enganada sobre aquela ideia romântica de que só se ama assim uma vez .“

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Estudo de Mulher (fevereiro de 1830)

Personagens: Marquês e Marquesa de Listomère, Eugênio de Rastignac, Horácio Bianchon.

A história se passa em 1828.

Aqui temos um pequeno texto que Balzac chama de “estudo”. A mulher objeto desse estudo é a marquesa de Listomère retratada por Balzac como a encarnação do espírito da Restauração: “Tem princípios, jejua, comunga, e vai muito enfeitada aos bailes, aos Bouffons, à Opera; seu diretor espiritual permite-lhe aliar o profano ao sagrado. Sempre em dia com a Igreja e com o mundo, ela oferece uma imagem do tempo presente, que parece ter tomado a palavra Legalidade por epígrafe. (...) Na hora presente ela é virtuosa por cálculo, ou talvez, por inclinação”. Eis que essa dama, casada com o Marquês de Listomère, dançou uma noite com Eugênio de Rastignac, personagem de primeiro plano da Comédia Humana. Na manhã seguinte, Rastignac escreveu duas cartas, uma para seu advogado e outra para a senhora de Nuncigen, sua amante. Endereçou a segunda, de forma equivocada, à Marquesa de Listomère. Era uma carta com declarações de amor. A Marquesa, ao recebê-la, ficou indignada. Contudo, Eugênio só percebeu o engano quatro dias depois. Nesse meio tempo, a Marquesa havia migrado da indignação para o interesse e do interesse para a paixão. Rastignac foi então à casa da Marquesa desfazer o equívoco. Essa, sonhando com o romance, ao saber que não era destinatária da missiva ficou profundamente ofendida.
O interessante nesse texto é a narrativa. Até quase a metade da história, julgamos que é Balzac quem está narrando. Então a surpresa: “Foi nesse instante que penetrei na sala de Eugênio. Ele teve um sobressalto e disse. -- Ah! com que então aqui estás, meu caro Horácio! Desde quando?” Descobrimos que o narrador é Horácio Bianchon, um dos personagens mais queridos da Comédia Humana. Ele aparece em vários romances, nunca como protagonista, mas como arguto observador. Diz-se que Balzac, em sua agonia, antes de morrer, chamou por Horário Bianchon.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

A Senhora Firminani (fevereiro de 1834 - data correta fevereiro de 1832)

Personagens: Senhora Firmiani, Otávio de Camps, senhor de Bourbonne (Rouxellay).

A história se passa em 1825.


A Senhora Firmiani é um pequeníssimo texto não muito interessante de Balzac.
O senhor de Bourbonne ouviu falar que seu sobrinho Otávio arruinou-se financeiramente por causa da senhora Firmiani. Julgando estar o sobrinho sob o domínio de uma aproveitadora, vai, .às ocultas, investigar. Ao conhecê-la, julga-a encantadora. Descobre, então, que Otávio, inspirado pela senhora Firmiani, desfez-se da fortuna por razões morais, já que essa fora indevidamente adquirida pelo pai.
O mais interessante desse texto é o início no qual Balzac nos apresenta a personagem através da fala de representantes de diversas espécies sociais: os positivos, os flanadores, os colegiais, os amadores, os originais, os observadores, os fátuos, etc. Essa classificação está no prefácio de Balzac à Comédia Humana.
De resto, a história é insossa e inverossímil, embora Balzac nos afirme que é real.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Falsa Amante (janeiro de 1842)

Personagens: Clementina du Rouvre, Conde Adão Langinski, Tadeu Paz, Málaga (Margarida Turquet), senhor e senhora Chapuzot, conde de Palférine.

A história se passa entre 1835 e 1842.

Nessa novela, Balzac nos apresenta personagens poloneses, abundantes em Paris na época, em virtude da situação política da Polônia. Além de ter vários amigos poloneses, o escritor também convivia com os parentes de Eveline Hanska.
Porém, se trata de uma história de amor impossível. Tadeu Paz, polonês, apaixonou-se por Clementina, esposa de seus melhor amigo, Adão. Ao notar que Clementina percebeu seus sentimentos, Paz inventou ter como amante uma trapezista de circo chamada Málaga. Assim, Clementina passou a desprezá-lo. Ao final, Clementina descobriu que a história da amante era falsa. E Tadeu foi embora, dizendo que iria se alistar no exército russo. Mas, na verdade, continuava em Paris, velando por Clementina.
Paulo Rónai destaca na introdução como a habilidade de Balzac para criar personagens desprezíveis é superior à sua habilidade para criar tipos honestos. Isso fica claro nesse A Falsa Amante. Tadeu não só não parece real, como suas ações parecem ingênuas e inverossímeis. Criou complexas tramas para sustentar a história da falsa amante, quando bastaria ele dizer que estava apaixonado por outra mulher. E dizer que iria para guerra e ficar em Paris às escondidas, espiando à amada para protegê-la dos sedutores? E isso quando era óbvio que Clementina estava apaixonada por ele?
Pelo menos, Balzac deixou uma porta aberta. A última frase do romance é: “A todo momento, Clementina espera rever Paz”. E conhecendo a lógica da Comédia Humana, sabemos que eles podem ter se reencontrado e sido felizes. Não para sempre, contudo.

Ressurreição - Liev Tolstói


Lido entre 29 de outubro e 21 de novembro de 2010.

Tolstói escreveu Ressurreição entre 1887 e 1899. Tudo começou em uma conversa com o advogado e escritor Anatóli Koni. Koni contou-lhe que fora procurado por um jovem da nobreza que precisava de um advogado. O caso era o seguinte: convocado para atuar em um júri, o jovem reconheceu em uma acusada uma criada que seduzira e engravidara em casa de uma tia. Grávida e solteira, a moça foi mandada embora pela patroa e tornou-se prostituta. Foi acusada de roubo e presa. O jovem nobre, sentindo-se culpado, quis ajudá-la e até casar-se com ela. Mas a moça morreu de tifo na prisão.
A história trouxe lembranças a Tostói. Ele também seduzira uma criada em casa de uma parente, o que motivara a demissão da moça. E ele possuía um filho bastardo que morava em sua propriedade. Tolstói pediu autorização a Koni para utilizar a história e começou a escrever. Logo abandonou o texto. A motivação para a sua conclusão veio somente em 1898. Tolstói negociou os direitos autorais de uma obra ainda não escrita para auxiliar os membros da seita dos dukhobors a emigrarem para o Canadá. Tratava-se de uma seita que pregava ideias simpáticas ao escritor: negação da propriedade, do governo, do dinheiro, da Igreja, assim como o vegetarianismo e a não violência. O grupo era naturalmente perseguido pelo governo russo. Após a intervenção de Tolstói, já mundialmente famoso na época, o caso teve grande repercussão na imprensa internacional. O governo, então, para evitar o desgaste, concordou com a emigração para o Canadá, que aceitou o grupo. Mas era necessário o dinheiro do transporte. Tolstói, então, que abrira mão dos direitos autorais de sua obra em 1881, vendeu Ressurreição por preço elevado. E finalmente o concluiu.
O princípe Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov é um nobre despreocupado que vive das rendas das terras de sua família. Após servir ao exército, retornou a Moscou, onde vive uma vida típica da nobreza da época: jantares, jogos, teatros. Corteja uma moça moça nobre, com quem pensa em se casar. Um dia, Nekhliúdov é convocado para servir como jurado no tribunal. Em um dos processos, reconhece na acusada, a prostituta Máslova, Katiucha: moça que trabalhava para suas tias e que ele seduzira, dez anos antes. Descobre, então, que Máslova, acusada de envenenamento, havia engravidado dele, fora mandada embora pelas tias e tornou-se meretriz. Começa, então, a “ressurreição” de Nekhliúdov.
Por um erro judiciário, Máslova é condenada aos trabalhos forçados. O príncipe então procura um advogado para tentar corrigir a situação. Ele acredita-se culpado pelos infortúnios de Máslova. A partir daí, Nekhliúdov começa a rever a sua vida. Tudo o que era natural passa a ser questionado. Ele decide que a única forma de reparar o erro é casar-se com Máslova. Ele a procura na prisão e declara as suas intenções. Ela o rejeita, ao mesmo tempo em que parece nutrir sentimentos por ele. Ao mesmo tempo, Nekhliúdov entra em contato com a realidade paralela das prisões. Vários prisioneiros, percebendo a sua condição de fidalgo, pedem a sua ajuda. E ele descobre inúmeras injustiças. Da mesma forma, descobre a indiferença dos diretores das prisões, oficiais de justiça, promotores, autoridades em geral, que, mesmo diante da mais flagrante injustiça, ateem-se aos protocolos e regulamentos, ainda que irracionais.
O príncipe resolve acompanhar Máslova-Katiucha para a Sibéria, para onde será deportada. Resolve, então, distribuir suas terras para os camponeses que lá trabalham. Passa a ser visto pela sociedade moscovita como um excêntrico.
Finalmente, com a partida de Máslova, Nekhliúdov acompanha o comboio de prisioneiros que vai para a Sibéria. Consegue com as autoridades que a moça possa acompanhar os presos políticos, que viajam em melhores condições. Durante a viagem, ela conhece Simonson, preso político que se interessa por ela. Simonson propõe-lhe casamento. Ela o aceita para liberar Nekhliúdov do compromisso que ele teima em cumprir. Nesse meio-tempo, Nekhliúdov recebe a resposta do apelo que fizera ao Czar sobre o caso: Máslova recebeu indulto, com a substituição dos trabalhos forçados pelo exílio na região siberiana.
Contar essa história é dizer muito pouco sobre Ressurreição. Assim como é dizer muito pouco, considerá-lo romance de tese, de caráter moral ou religioso.
Tolstói consegue, ao narrar o despertar de Nekhliúdov para a vida real, criar um estranhamento de cunho quase antropológico de quase todas as instituições do mundo ocidental às quais estamos acostumados. Sua descrição dos julgamentos, das prisões, do jantar em casa dos Kortcháguin, dos fidalgos embarcando na primeira classe do trem, nos dão a impressão de estar vendo essas coisas pela primeira vez.
Observemos a sua descrição da missa ortodoxa, muito semelhante à nossa familiar missa católica:
“A missa consistia em que o sacerdote, vestido numa roupa especial, estranha, bordada e muito desconfortável, cortava e arrumava uns pedacinhos de pão num pires e depois os colocava numa taça com vinho, enquanto pronunciava diversos nomes e algumas preces. Enquanto isso, o sacristão não parava de ler, primeiro, e depois começou a cantar, revezando com o coro dos prisioneiros, várias preces em eslavo eclesiástico, em si já quase incompreensíveis, e que se tornavam mais incompreensíveis ainda por causa da velocidade da leitura e do canto. (...) Além disso, o sacristão leu vários versículos dos Atos dos Apóstolos numa voz tão estranha e tensa que não se conseguia entender nada e o sacerdote leu com muita clareza um trecho do Evangelho de Marcos, em que se contava como Cristo, após ressuscitar e antes de subir aos céus e sentar-se à mão direita de seu pai, foi ver primeiro Maria Madalena, de quem expulsou sete demônios, e depois foi ter com os onze discípulos e ordenou-lhes que pregassem os Evangelhos a todas as criaturas, e também anunciou que quem não crê e é batizado será salvo e, além disso, vai expulsar os demônios, vai curar as pessoas com as mãos colocadas sobre elas, vai falar línguas novas, vai apanhar serpentes e, se beber veneno, não vai morrer, continuará sadio. A essência da missa consistia em supor que os pedacinhos de pão partidos pelo sacerdote e colocados no vinho, por efeito de certas manipulações e preces, transformavam-se no corpo e no sangue de Deus. As manipulações consistiam em que o sacerdote levantava igualmente os dois braços e mantinha-os erguidos, a despeito de assim embolar-se todo no saco bordado que vestia, depois cair de joelhos, beijava a mesa e o que estava sobre ela. A ação mais importante acontecia quando o sacerdote, com um guardanapo seguro nas duas mãos, sacudia-o de leve e num movimento ritmado, acima do pires e da taça dourada. Supunha-se que naquele exato instante o pão e o vinho transformavam-se em corpo e em sangue e, por tal motivo, aquele momento da missa era cercado de uma solenidade especial. (...). Depois disso considerava-se que a transformação estava concluída e o sacerdote, após retirar o guardanapo de cima do pires, partiu em quatro um pedaço do meio do pão, colocou primeiro no vinho e depois na boca. Supunha-se que ele comia um pedacinho do corpo de Deus e bebia um gole do seu sangue. Em seguida, o sacerdote puxou para o lado uma cortininha, abriu as portas no meio da cerquinha e, com a taça dourada nas mãos, saiu pelas portas do meio e convidou aos que quisessem também comer o corpo e o sangue de Deus e se aproximar da taça.”
O livro tem momentos de exasperação e denúncia, mas uma descrição como essa tem mais impacto do que qualquer arrazoado político ou filosófico. E são muitas. O leitor estranha o conhecido e a partir desse afastamento compreende e quase acompanha a transformação pela qual passa o personagem.
Sabe-se que Tolstói pesquisou muito para escrever Ressurreição. Leu diversos tratados jurídicos. Visitou prisões e campos de trabalho. Entrevistou prisioneiros, carcereiros, diretores de prisões. Nekhliúdov, depois de visitar Máslova na prisão e conhecer diversos prisioneiros chegou à conclusão que existiam cinco categorias de criminosos: a primeira era formada por pessoas totalmente inocentes, vítimas de erros judiciários; a segunda, formada por pessoas que cometeram crimes em situações excepcionais, como embriaguez, ciúmes, fúria; a terceira era formada por pessoas condenadas por ações que, no entender delas, eram costumeiras e boas, mas que eram criminalizadas, como vender bebida produzida artesanalmente ou pegar lenha em florestas do Estado; a quarta categoria era formada por presos políticos, condenados apenas por se oporem às autoridades constituídas; a quinta era a dos criminosos propriamente ditos. Temos uma discussão complexa sobre Criminogia aqui. Sobre o segundo grupo, por exemplo, Nekhliúdov argumenta a incoerência de prender um homem embriagado que mata outro em uma briga de bar, e não prender um nobre que mata seu oponente em um duelo. Qual seria a diferença entre as duas situações, fora a classe dos envolvidos? A terceira categoria é dos que incorrem no que chamamos de erro de proibição. Ao que parece, num país vasto e repleto de minorias como a Rússia czarista, era comum que pessoas fossem presas e condenadas por praticarem ações costumeiras que eram criminalizadas. O quarto grupo, o dos presos políticos, era enorme. Eram socialistas, líderes de minorias que reivindicavam independência, jornalistas, professores, indivíduos que se opunham à Igreja ortodoxa. O costume de prendê-los e deportá-los para a Sibéria não foi uma invenção dos soviéticos. Era uma tradição czarista. O último grupo, o dos criminosos de fato, Nekhliúdov considerava vítimas da negligência e da crueldade da sociedade. Em alguns, ele reconhece tipos repulsivos e desagradáveis, mas não vê diferença entre esses e outros igualmente desagradáveis que via na sociedade de “fraque, dragonas e rendas”. Ele chega então na questão mais importante: “por que todas aquelas pessoas tão variadas eram mantidas na prisão, enquanto outras pessoas iguais a elas andavam soltas e até as julgavam (...)”. Ele leu Lombroso, Garofalo, Ferri, Maudsley, Tarde e não encontrou a resposta. Achou digressões e debates que pareciam fugir do tema. “Com que direito alguns castigam os outros? Não só não havia essa resposta, como todos os raciocínios destinavam-se a esclarecer e justificar o castigo, cuja necessidade era reconhecida como um axioma”. A ideia da necessidade do monopólio da violência pelo Estado (que ele não menciona, aliás) não o satisfaria, já que ele percebe suas engrenagens - juízes, promotores, diretores, governadores - como autômatos preocupados somente com a manutenção de seus privilégios.
A solução do romance é apressada e pouco convincente. Nekhliúdov encontra as respostas no Evangelho. Estabelece cinco mandamentos a partir do Evangelho de Mateus: não matar, não praticar adultério, não jurar, oferecer a outra face ao agressor e amar os inimigos.
Uma palavra ainda sobre o herói. Nekhliúdov não conquista o leitor. Sua misantropia é irritante. No início do romance, antes do julgamento de Máslova, ele aparece como um egoísta que não se satisfaz com nada e com ninguém. A transformação pela qual ele passa poderia ter ficado muito artificial se Tolstói não tivesse dado a ele aquele toque de vida real que faz de um autor um mestre. Ele oscila. Fica tentado, em vários momentos, a dar para trás: esquecer Máslova e seguir a sua vida. Ele percebe, quando vai a São Petesburgo, o perigo representado pela casa da tia, cheia de luxos e comodidades, e pela beleza de Mariette, que flerta abertamente com ele. Ele luta o tempo todo para trazer à tona o Nekhliúdov que se apaixonou por Katiucha dez anos antes, enquanto o Nekhliúdov que ele se tornou aparece o tempo todo. Ele, apesar de acompanhar o comboio de prisioneiros, nas piores condições, nunca deixa de ser um fidalgo. É um alter-ego de Tolstói, sem dúvida. Mas a forma como Tolstói o retratou faz o leitor vislumbrar as contradições desse homem notável que fugiu de casa aos 82 anos.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A Paz Conjugal (julho de 1829)

Personagens: conde e condessa de Gondreville, coronel Montcornet, Barão Marcial de La Roche Hugon, conde e condessa de Soulanges, condessa de Lansac, senhora Vaudremont.

A história se passa em 1809.

A Paz Conjugal começa com um retrato delicioso do período do Império. “Nunca, no dizer dos contemporâneos, Paris vira festas mais belas do que as que precederam e se seguiram ao casamento desse soberano com uma arquiduquesa da casa da Áustria; nunca, nos mais faustosos dias da antiga monarquia, tantas cabeças coroadas se reuniram nas margens do Sena, e nunca a aristocracia francesa fora tão rica, nem tão brilhante como então. Os diamantes profusamente prodigados nos adornos, os bordados a ouro e prata dos uniformes contrastavam tão bem com a indigência republicana que se tinha a impressão de ver as riquezas do globo a rolar nos salões de Paris.Uma embriaguez geral como que se havia apoderado desse império de um dia”. A breve descrição revela o sentimento de efemeridade de quem viveu a época, bem como os costumes, através de tiradas como essa: “De um primeiro a um quinto Boletim do Grande Exército, uma mulher podia ser sucessivamente amante, esposa, mãe e viúva”.
Em seguida, estamos em um baile. E lá, Balzac dá início a uma complexa e bem articulada trama. No baile em casa dos Gondreville, o conde de Soulanges cortejava a senhora Vaudremont. A senhora Vaudremont, ao que tudo indica preferia Marcial. Marcial, por sua vez, observava uma bela desconhecida, enquanto ostentava um rico brilhante no dedo. Apostou com o coronel Montcornet que conseguiria dançar com a beldade. Afinal, conseguiu. A mulher, então, o provocou, pedindo que Marcial desse a ela o caro brilhante que exibia. Ele lhe deu a joia. Ela então revelou ser a condessa de Soulanges, cujo marido havia roubado o brilhante, que era dela, para dar a senhora Vaudremont que, por sua vez, o dera a Marcial. Enquanto isso, a condessa de Landsac, velha dama que armara tudo, explicava a trama à irritada senhora Vaudremont. Foi reestabelecida, então, a paz conjugal.
Colocar tudo isso em um texto claro e bem escrito não é tarefa nada fácil. Essa pequena joia, nas palavras de Paulo Rónai, nos mostra a enorme habilidade de Balzac como narrador. É mais um obra-prima que ficou desconhecida pela prodigalidade de Balzac em criar bons textos.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Uma Dupla Família (fevereiro de 1830 - janeiro de 1842)

Personagens: Carolina Crochard (senhorita Bellefeuille), sra. Crochard, Rogério (conde Granville), Carlos e Eugênia (filhos de Caroina e Rogério), Francisca (empregada da sra. Crochard), Angélica Bontemps, padre Fontanon, Horácio Bianchon, condessa da Vandenesse, sua irmã, visconde de Granville e Eugênio (filhos de Rogério e Angélica), Solvet (sedutor de Carolina).

A história se passa entre 1805 e 1833.

A história começa em 1815, quando Rogério, um cavalheiro, ao circular pela Rua do Torniquete de Sâo Joâo no Marais, observava diariamente uma jovem e bela costureira que trabalhava dia e noite ao lado da mãe. Rogério acabou travando conhecimento com Carolina. A narrativa pula para setembro de 1816, quando encontramos Rogério e Carolina morando juntos na Rua Taitbout. Após uma descrição da nova vida da moça, vamos para 1822, quando encontramos o casal, no mesmo endereço, com dois filhos, Carlos e Eugênia, ainda bebê. Carolina recebeu a notícia de que sua mãe, a senhora Crochard, estava doente. Foi vê-la e a velha disse-lhe que tomasse cuidado, pois revelara ao padre Fontanon, que havia sido chamado por sua enfermeira, o nome de seu benfeitor, no caso, Rogério. A história passa então para 1805, quando assistimos ao sr. de Granville fazendo a corte à Angèlica Bontemps, em Bayeux. Aproximou-se da moça, em virtude de sua fortuna, mas gostou dela e se casaram. Angélica era exageradamente devota. Rezava, assistia a diversas missas, fazia novenas. Recusava-se a ter uma vida social, julgando que ir a bailes e jantares era indecente. Era aconselhada pelo Padre Fontanon. Granville, após alumas discussões, resignou-se e o casamento transformou-se numa união de aparências. “A história didática desse lar infeliz não ofereceu, durante os quinze anos decorridos entre 1806 e 1821, nenhuma cena digna de ser referida. A sra. Granville permaneceu exatamente a mesma, a partir do momento em que perdeu o coração do marido, como fora nos tempos em que se dizia feliz “. Em 1822, o padre Fontanon contou à Angélica que Granville vivia com uma concubina e tinha com ela dois filhos. Angélica foi então à rua Taitbout e surpreendeu Eugênio-Granville com Carolina. Ocorreu então uma grande discussão entre Angélica e Rogério.
Passamos enfim para 1833, quando econtramos um Rogério envelhecido indo espiar, na Rua de Gaillon, a janela de Carolina. Lá encontrou Horácio Bianchon, o médico da Comédia Humana. Ele relatou a Bianchon que Carolina, nove anos antes, fora seduzida por Solvet. Havia dissipado sua fortuna e vivia com os filhos na miséria para sustentar o amante.
O interessante nessa história é a narrativa. Duas narrativas independentes convergem para a mesma cena. É claro que sabemos que Rogério é casado (embora de forma inverossímil, Carolina só fique sabendo em 1822) e, no início do segundo relato, já percebemos que Granville é Rogério. Balzac usa aqui, novamente, a descrição para evocar o caráter e o modo de vida das personagens. A probreza de Carolina e da mãe; o conforto burguês de sua nova vida; a austeridade e devoção de Angélica. Descobrimos tudo isso com a descrição dos cômodos e do mobiliário. O desfecho é o ponto fraco da novela. Para evocar o fracasso de Granville na busca da felicidade, Balzac não precisava criar um sedutor para Carolina. A sedução de Carolina e sua decadência dão à obra um acento moralista, que não é característico da maioria dos textos de Balzac. Mas não é a primeira (nem a última) trama bem feita com resolução apressada que vemos na Comédia Humana.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Do que eu falo quando eu falo de corrida


Os meus dois passatempos preferidos são ler e correr. Por isso foi uma bela surpresa descobrir esse Do que eu falo quando eu falo de corrida do escritor japonês Haruki Murakami.
Eu já sabia que corrida tem tudo a ver com leitura. Uma hora a sós comigo mesma, uma reta pela frente. É a hora em que penso no que leio, em que relaciono autores diferentes, em que planejo como vou passar a minha experiência de leitora para os outros. No ano retrasado, a Nike lançou uma campanha publicitária para promover seus tênis de corrida: Don't think. Run.Houve reclamações de corredores de todo o mundo. Quem corre sabe que essa é a hora para pensar.
Murakami, famoso no Japão e com livros traduzidos para 38 idiomas, ensina que corrida tem tudo a ver com literatura. Ele relaciona diretamente a sua atividade de escritor com a de corredor de longa distância. Como, após escrever uma novela e ter algum sucesso, abandonou sua rotina noturna de dono de um bar de jazz em Tóquio, e passou a dividir seus dias entre as ruas e o computador. Ele acentua como a atividade de escritor depende de disciplina. E como essa disciplina é semelhante à necessária para correr uma prova. "A maior parte do que sei sobre escrever, aprendi correndo todos os dias. São lições práticas, físicas. Até onde posso me forçar? Quanto descanso é apropriado - e quanto é demais? Até onde posso levar alguma coisa e ainda assim mantê-la decente e consistente? Quando uma coisa se torna tacanha e inflexível? Quanta consciência do mundo exterior devo ter, e quanto devo me concentrar em meu próprio mundo interior? Em que medida devo ter confiança em minhas capacidades, e quando devo começar a duvidar de mim mesmo? Sei que se eu não tivesse me tornado um corredor de longa distância, quando me tornei romancista minha obra seria vastamente diferente. Quão diferente? Difícil dizer. Mas alguma coisa definitivamente teria sido diferente."
Na verdade, correr, ler e escrever são atividades solitárias. Murakami, assim como eu, nunca gostou de esportes de equipe. Há em todo o mundo (diversos em Porto Alegre), grupos de corrida. Para mim isso é quase um contrasenso. Um dos maiores atrativo da corrida é a solidão. "Sou o tipo de sujeito que gosta de estar sozinho consigo mesmo. Para dizer de um modo mais agradável, sou o tipo de pessoa que não acha um sofrimento ficar só."
Murakami dá uma explicação interessante para a sua necessidade de levar uma vida saudável. Ele diz que a atividade literária é insalubre: "Quando paramos para escrever um romance, quando usamos a escrita para criar uma história, queiramos ou não, um tipo de toxina que jaz nas profundezas de toda a humanidade sobre à superfície. Todo o escritor precisa ficar cara a cara com essa toxina e, consciente do perigo envolvido, descobrir um jeito de lidar com ela, pois de outro modo, nenhuma atividade criativa no sentido real pode ter lugar." Assim, para encarar atividade tão insalubre, ele julga necessário ser o mais saudável possível. Correr uma hora por dia, participar de uma maratona por ano, ter uma alimentação equilibrada é uma forma de se manter são para encarar os demônios da criação.
A par das comparações entre escrever e correr, o livro traz ótimas dicas para quem corre. E com certeza me levará à obra literária de Murakami.
O título vem de uma coletânea de contos do americano Raymond Carver, traduzida para o japonês por Murakami: What We Talk About When We Talk About Love.
A única coisa que não dá para entender é por que a tradução é feita do inglês e não do original em japonês. Não é possível que um país como o Brasil, com tantos japoneses, não disponha de bons tradutores desse idioma.

A Vendeta (janeiro de 1830)

Personagens: Bartolomeu di Piombo, Elisa di Piombo, Ginevra di Piombo, Napoleão Bonaparte, Luciano Bonaparte, Servin, senhora Servin, Amélia Therion, Mathilde Roguin, Laura, Luigi Porta, senhor Roguin (notário).

A história se passa entre 1800 e 1819.
A Vendeta possui como pano de fundo a Córsega e suas rígidas tradições. A história é de um amor impossível entre filhos de famílias inimigas. E entre os personagens estão o próprio Napoleão, Luciano Bonaparte, Murat, Lannes e Jean Rapp.
Ginevra Piombo apaixonou-se por um jovem que se escondia no ateliê de pintura que ela frequentava. Luigi estava se escondendo por ter participado de uma rebelião bonapartista. Ginevra então descobriu que Luigi, além de ser bonapartista como seu pai, era, como ela, da Córsega. Depois de muita insistência, a moça convenceu o severo Bartolomeu di Piombo a receber o namorado. Bartolomeu descobriu, horrorizado, que Luigi era o único sobrevivente da família Porta, cujos membros assassinara em 1800 em uma vendeta. Ginevra teimou com pai e casou-se com Luigi sem seu consentimento. Após um curto período de felicidade, o casal sucumbiu à miséria. Bartolomeu, embora muito rico, não perdoava a traição da filha. Em 1819, Ginevra e Luigi tiveram um bebê. No final, quando o pai resolveu aceitar a filha de volta, era tarde: Ginevra, o bebê e Luigi morreram.
Balzac esteve na Córsega em 1836, depois, portanto, de escrever esse conto. Além da vendeta entre as famílias, ele destaca a rigidez do pai, que não perdoou a filha nem na iminência de sua morte e a camaradagem entre os conterrâneos, ilustrada nas cena do encontro de Bartolomeu com os Bonaparte.
Nessa história de personagens não franceses, o mais balzaqueano é o ambiente do ateliê de Servin, para onde as famílias abastadas enviavam as moças para que aprendessem arte num ambiente de respeito. Balzac deixa claro que o objetivo do ateliê era ensinar noções de arte suficientes para que a donzela fizesse boa figura num salão: “chegava mesmo a recusar as moças que queriam ser artistas e às quais teria sido preciso subministrar certos conhecimentos sem os quais não há talento possível em pintura”. Eis um ambiente típico de Balzac, onde a nobreza decadente e a burguesia próspera se defrontavam entre uma pincelada e outra.
Meu trecho favorito, contudo, é a abertura. A chegada às Tulherias da família corsa, com aquele toque de suspense que Balzac consegue dar a uma descrição comum. E depois o encontro de Bartolomeu com o mais famoso dos corsos

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sussurros


Estamos familiarizados com os horrores e atrocidades nazistas. Sessenta e cinco anos se passaram desde o final da Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, todos os anos há filmes, livros, documentários, exposições - no momento há uma grande exposição no Museu Histórico Alemão em Berlim intitulada “Hitler e os Alemães” - alusivos aos horrores do holocausto. Os nazistas documentaram muito bem os seus feitos e, desde a sua derrota em 1945, estudiosos de diversas nacionalidades se dedicaram a estudar o Terceiro Reich sob os mais diversos aspectos. Mais contundente, todavia, foi a publicação de relatos de sobreviventes de campos de concentração. Há milhares de relatos. Me marcaram especialmente os do italiano Primo Levi, É isso um homem?, Afogados e Sobreviventes e o belíssimo A Trégua, no qual conta seu retorno de Auschwitz para a Itália.
Nossa familiaridade com o que ocorreu na Alemanha durante a guerra contrasta com o desconhecimento a respeito da União Soviética. A União Soviética foi a maior responsável pela vitória dos aliados. No cinema vemos sempre o heroísmo norte-americano. Mas quando eles chegaram à Europa em junho de 1944, os soviéticos encaravam os nazistas desde junho de 1941, com seu território invadido, cidades sitiadas e tudo que isso envolve. Sabemos que foram vinte milhões de mortos, um número tão grande que soa vazio. Poderiam ser trinta, quarenta, oitenta milhões.
Esse panorama está mudando. Com o final da União Soviética, em 1991, e a abertura dos arquivos do governo e da polícia política novas fontes históricas foram disponibilizadas para estudo.
Sussurros, do historiador britânico Orlando Figes, trabalha com um tipo muito especial de fonte: arquivos privados, raros num estado policial, e relatos orais. O tema está no subtítulo: a vida privada na Rússia de Stalin. “O livro explora como as famílias reagiam às várias pressões do regime soviético. Como preservavam tradições e crenças e as transmitiam aos filhos se seus valores conflitavam com os objetivos públicos e com a moral do sistema soviético inculcados na geração mais nova por meio de escolas e de instituições como a Komsomol [instituição de jovens comunistas? Como viver em um sistema regido pelo terror que afetava os relacionamentos íntimos? O que as pessoas pensavam quando um marido ou uma esposa, um pai ou uma mãe eram presos de repente como ‘inimigos do povo’ ? Na condição de cidadãos soviéticos leais, como resolviam na própria mente o conflito entre confiar nas pessoas que amavam e acreditar no governo que temiam? Como poderiam os sentimentos e as emoções humanas ter qualquer tipo de força no vácuo moral do regime stalinista? Quais foram as estratégias de sobrevivência, os silêncios, as mentiras, as amizades e as traições, as concessões e acomodações morais que moldaram milhões de vidas?”.
Assim, acompanhamos as histórias de diversas pessoas, desde 1917, até a década de 1990: Antonina Golovina, Konstantin Simonov, a família Laskin, Elizaveta Drabkina, Inna Gaisser e muitos outtros.
No primeiro capítulo “Crianças de 1917 (1917-1928)” nossos personagens reais ainda estão na primeira infância. O autor mostra como a ideia bolchevique a respeito da família modificou a vida de milhões de pessoas. A ideia inicial era de que a família burguesa era um obstáculo ao comunismo e devia ser substituída por uma família social na qual os pais, ao invés de se ocuparem somente dos seus filhos, se ocupassem de todas as crianças. Daí a modificação do espaço privado, com as famílias ocupando quartos voltados para o corredor (o sistema de corredor) e partilhando banheiros e cozinhas (lógico que isso não valia para os altos quadros do partido, que mantinham suas casas e apartamentos e até possuíam “dachas” de verão).
Os ativistas do partido, tanto homens, quanto mulheres levavam a sério a ideia de dedicar-se totalmente à causa, deixando a vida privada em segundo plano. As crianças eram tratadas como pequenos adultos e não recebiam atenção dos pais (não podemos esquecer que no ocidente, até o final do século XVIII, as crianças eram tratadas como pequenos adultos e que, até o século XX, as famílias abastadas pouco se ocupavam dos filhos, deixando-os aos cuidados de babás, governantas e colégios internos). Os bolcheviques, com frequência, abandonavam mulheres (e maridos) e filhos para cumprir as exigências partidárias.
Algo interessante, que irá mudar após com a ascensão da União Soviética como potência industrial, é o asceticismo em relação à decoração doméstica e a aparência pessoal. Mesmo quem tinha condições de possuir mais bens materiais, era encorajado a viver muito modestamente e a se envergonhar de qualquer manifestação de riqueza (isso mudou completamente na era Stálin). O segundo capitulo, “A gande ruptura (1928-1932)”, explora as consequências da chegada de Stalin ao poder. A grande ruptura foi fim da NEP - Nova Política Econômica - implantada por Lênin, que incentivava a economia de mercado para promover a recuperação da guerra civil, e a adoção dos Planos Quinquenais, a partir de 1928. Foi o período da coletivização forçada e da perseguição aos kulacks.
Quando estudei a revolução russa na faculdade de história, aprendi que os kulacks eram camponeses ricos, ou seja, fazendeiros, que não queriam abrir mão da propriedade privada e que, portanto, se opunham aos comunistas. Agora aprendi que tudo isso era bem menos racional. Kulacks eram camponeses que possuíam quase qualquer coisa. Alguns tinham pequenas faixas de terra e, graças ao trabalho familiar, obtinham algum conforto material. Outros tinham apenas uma vaca ou alguns instrumentos de trabalho agrícola. Outros não tinham nada. O governo enviava uma ordem para que, em determinada vila, dez famílias kulacks fossem expropriadas e enviadas para campos de trabalho. Se não havia nenhuma família que possuísse propriedade no local, eles sorteavam entre as famílias quais as dez que seriam deportadas.
As terras e os bens que eram confiscados iram para as fazendas coletivas, os kolkozes. Foi um dos maiores fracassos do sistema comunista. É simples entender. Os agricultores mais qualificados eram justamente os kulacks, que foram enviados para gulags. Sobraram os que nada entendiam de agricultura e que pouco trabalhavam. Além disso, os camponeses, acostumados por séculos com o trabalho nas suas porções de terra como referência, não conseguiam estabelecer nenhuma ligação com uma terra que não lhes pertencia, que não tinha sido trabalhada pelos seus pais, pelos seus avôs. A produtividade dos kolkozes era ínfima perto das das pequenas propriedades. .
Os filhos de kulacks receberam uma marca que lhes acompanhou até a velhice. O rótulo de filhos de “inimigos do povo”. Assim, eles eram humilhados publicamente nas escolas, impedidos de participar de associações de jovens como os “pioneiros” e o Komsomol, e tinham sua matrícula vedada nas melhores universidades e escolas técnicas. Por uma reação psicológica, muitos destes jovens tornaram-se comunistas exemplares. Queriam provar para as autoridades e para eles mesmos que eles tinham valor. .
Outro aspecto sinistro desse período era o encorajamento que o Estado às delações. Um jovem chamado Pavlik Morozov tornou-se um herói nacional por ter denunciado o seu próprio pai como kulack. Milhares de crianças cresceram temendo serem punidas por não delatarem seus pais. E milhares de pais viviam com medo dos filhos.
“A busca da felicidade (1932-1936)” mostra como um sistema desse tipo não se sustenta somente com coerção. Consenso é fundamental. Na década de 1930, a União Soviética começava a colher os frutos da industrialização acelerada. Os russos passaram a ter acesso a alguns bens de consumo e as grandes cidades, como Moscou, tornaram-se vitrines da prosperidade comunista. Nesse período, foi construído o luxuoso metrô de Moscou. Do ponto de vista social, um novo guio emergiu: os “vydvizhentsy”, técnicos formados durante o primeiro plano quinquenal, que tornaram-se o principal apoio do regime stalinista. Esse grupo, ao contrário da maioria do povo soviético, vivia muito bem. Tinha acesso a apartamentos particulares, carros e casas de veraneio. O asceticismo dos primeiros anos foi abandonado. As mulheres voltaram ao lar.
Em “o Grande Medo (1937-1938)” conhecemos a parte mais negra da história da Rússia de Stalin: os expurgos. Já conhecia algo sobre os expurgos de grandes figuras do partido comunista, alguns companheiros de Lênin. Aqui conhecemos o expurgo do soviético comum. Milhares de pessoas passaram a dormir com a mala pronta, esperando que viessem prendê-las. Milhares foram presos sem terem feito absolutamente nada. Alguns eram comunistas exemplares. Qualquer denúncia, mesmo que francamente falsa, levava à prisão. Na melhor das hipóteses, o prisioneiro era enviado a um campo de trabalho na Sibéria. Na pior, era fuzilado, sem direito a julgamento. Muitos ficaram sabendo somente na década de 1990 que seus pais, mães ou maridos havia sido fuzilados.
Os expurgos passaram a ser fundamentais para a economia soviética. O crescimento previsto pelos planos quinquenais só era possível com o trabalho escravo. Milhares de prisioneiros eram enviados para abrir estradas, trabalhar em minas, construir barragens em lugares inabitáveis, com temperaturas de 30 graus abaixo de zero. Muitos eram largados nesses locais sem comida, roupas, nada. Tinham que cavar buracos no chão. Morriam aos milhares.
Havia informantes em toda a parte. Nos apartamentos comunais era perigoso falar, pois a proximidade eliminava a privacidade. As crianças eram ensinadas a ficar de boca fechada. Muitos pais não revelavam aos filhos suas ideias, com medo de prejudicá-los. Quem tinha crenças religiosas, escondia os ícones nas gavetas. Muitos vizinhos faziam denúncias falsas para ficar com os móveis ou quarto do denunciado.
“Resquícios do Terror (1938-1941)” relata a desestruturação das famílias pelos expurgos. Quando um homem era preso, sua esposa era enviada para um campo especial para esposas de traidores. Os filhos, se menores, eram encaminhados para orfanatos. Em geral, separados, pois era uma política de Estado separar as famílias. Muitas pessoas nunca mais viram seus pais, filhos, irmãos. Nas famílias, existia uma grande angústia, pois, em geral, as pessoas acreditavam que quem fora preso havia feito algo errado. Muitos dos presos julgavam que houvera algum engano. Muitos escreviam para Stalin relatando que houvera um equívoco e esperavam que o grande homem desfizesse a injustiça. A maioria só soube muitos anos depois que sua família fora vítima de uma injustiça.
“Espere por mim (1941-1945)” conta os sacrifícios da União Soviética durante a Guerra. Um período de imensas perdas e sofrimentos, mas que, paradoxalmente, é lembrado por muitos soviéticos como um período de ouro. Em razão do esforço de guerra, houve uma desestalinização forçada, já que o Estado não podia exercer vigilância nesse período. Da mesma forma, a lealdade do povo era fundamental, pois havia uma invasão estrangeira. O afrouxamento dos controles criou mais liberdade e até o renascimento do mercado, com pequenas plantações e feiras nas cidades.
O trabalho escravo nos gulags foi fundamental para o esforço de guerra. Muito interessante é que os prisioneiros se sentiam orgulhosos por estarem participando da vitória da União Soviética.
Espere por mim foi um poema de Konstatin Simonov que tornou-o famoso no período da Segunda Guerra.
“Stalinistas Comuns (1945-1953)” narra as dificuldades do pós-guerra. O afrouxamento do controle durante às guerra produziu ondas de descontentamentos. O controle da economia retornou com força total. Houve novas prisões e expurgos. E, para apoiar tudo isso, consolidava-se a criação de uma nova classe média educada baseada na ampliação da educação superior nos anos 1940 e 1950. Essa nova bruguesia era recompensada por empregos seguros, bem pagos e por alguns luxos, como apartamento privados e bens de consumo. “ A capacidade profissional começava a tomar o lugar dos valores proletários nos princípios dominantes da elite soviética. “
Esse capítulo comenta também uma enorme campanha antijudaica que iniciou em 1948. Os judeus eram denominados “cosmopolitas”. Tudo começou com a perseguição de intelectuais. Mas isso ressuscitou o antissemitismo que era secular na Rússia. Os judeus passaram a ser acusados de serem aliados do recém formado Estado de Israel e dos Estados Unidos. “Entre 1948 e 1953, milhares de judeus soviéticos foram presos, demitidos do trabalho, expulsos das universidades ou tirados à força de casa. No entanto, nunca eram informados (e isso jamais era mencionado na papelada) de que a razão para esses atos tinha a ver com suas origens étnicas”. Muitos desses judeus eram assimilados e mal se reconheciam como judeus. Tinham uma identidade soviética urbana e não obedeciam tradições religiosas judaicas.
O irônico é foi justamente a perseguição dos judeus (a conspiração de médicos, que eram, em grande parte judeus), que impediu que Stalin fosse socorrido quando teve um derrame no inicio de março de 1953. O medo de que alguém fosse acusado de espião ou traidor fez com que o Czar Vermelho ficasse cinco dias inconsciente e sem atendimento, até falecer em 5 de março de 1953. O capítulo “Retorno (1953-1956)” conta basicamente o retorno dos soviéticos do campo de trabalho. A alegria do retorno esbarrou na realidade. Muitos homens retornaram casados com outras mulheres. Muitos encontraram suas mulheres casadas com outros homens. As crianças que idealizaram por anos uma mãe amorosa ou um pai amigo encontraram, já adultos, desconhecidos destruídos por anos de trabalho em condições subumanas. Muitos não conseguiram sequer deixar os campos, pois já não sabiam mais como ter uma vida normal. E ocorria com os egressos dos gulags o mesmo que ocorrera com os sobreviventes dos campos de concetração nazistas: a impossibilidade de comunicar aos outros a sua experiência.
“Memória (1956-2006)” dedica-se ao que sobrou desde que Khrushchev revelou, em 1956, os crimes de Stalin (dos quais, aliás, ele participou ativamente). Muitos somente então tiveram certeza da inocência de seus parentes, de que não foram vítimas de nenhum erro. De que, ao contrário do que julgavam, Stalin não era um homem bom que fora enganado por aliados mal intencionados (embora alguns tenham falecido na década de 1990 ou 2000 pensando isso). Nesse capítulo, o mais interessante é a reavaliação de Simonov sobre a sua vida e sua atuação como intelectual orgânico do stalinismo.
Há muito mais. São mais de 800 páginas. E, ao contrário dos números impessoais que estudamos na escola ou na universidade, lá estão os nomes e eles próprios nos olhando das fotografias. É um belo trabalho de pesquisa.
O nome
Sussurros vem do hábito de sussurrar que os soviéticos aprenderam a cultivar nesses anos. “ A língua russa possui duas palavras para um ‘sussurrador - uma para quem sussurra por temer ser ouvido (shepchushchii) e outra para a pessoa que informa ou sussurra pelas costas das pessoas para as autoridades (sheptun). A origem da distinção está no idioma da época de Stalin, quando toda a sociedade soviética era formada por um tipo ou outro de sussurrador”.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Alberto Savarus (maio de 1842)

Personagens: Baronesa de Watteville (Clotilde), barão de Watteville, Abade de Grancey, Amadeu de Soulas, Babylas (criado de Amadeu), Rosália de Watteville, Alberto Savaron, Duquesa de Argaiolo, Jerônimo, Marieta, Leopoldo.

A história se passa entre 1834 e 1841.

Alberto Savarus é um romance um tanto confuso de Balzac. Contribui para a confusão, além das idas e vindas do enredo, a existência de um romance dentro do romance. O personagem Alberto Savaron é romancista e sua novela, Ambicioso por Amor, é transcrita na íntegra por Balzac.
Alberto Savaron chegou a Besançon, no Franco Condado, com o objetivo de eleger-se deputado. Há onze anos, ele está apaixonado pela Duquesa de Argaiolo, italiana casada, que aguarda a morte do duque para desposar Alberto. Resolveu tentar a deputação depois de diversas empresas malogradas. Alberto atraiu, então, a atenção de Rosália de Watteville. A senhorita de Watteville descobriu que Alberto publicara uma novela em uma revista e convenceu seu pai a assiná-la. Assim, leu Ambicioso por Amor, novela de A. S.

Ambicioso por amor.
Personagens: Leopoldo, Rodolfo, casal Safter, Fanny Lovelace- Francesca Colonna- princesa Gandolphini, pai de Fanny-esposo de Francesca-princípe Gandolphini, Tito, Gina..A história se passa entre 1823 e 1830.
Rodolfo, indo excursionar na Suíça com o amigo Leopoldo, apaixonou-se por uma desconhecida que assumiu três identidades, Fanny Lovelace, Francesca Colonna e princesa Gandolphini. No final, os namorados esperavam a morte do príncipe Gandolphini para se casarem.

Rosalia apaixonou-se perdidamente por Alberto e, aproveitando o namoro de sua criada com Jerônimo, criado de Alberto, passou a interceptar cartas de Alberto para a Duquesa Argaiolo e as respostas. A duquesa, ao ficar viúva, recebeu, então, uma falsa carta de Alberto (escrita por Rosália), na qual ele declarava que iria se casar com a senhorita Watteville. A duquesa, magoada, casou-se com o duque de Rethoré. Alberto, arrasado, tornou-se monge. Rosália se indispôs com a mãe ao recusar o casamento com Amadeu. A senhora de Watteville, ao ficar viúva, desposou Amadeu, com quem teve mais dois filhos. Rosália, em 1838, foi a Paris e revelou à duquesa de Rethoré a trama que destruiu seu romance com Alberto. Em 1841, sofreu um terrível acidente: estava em um vapor cuja caldeira explodiu e perdeu um braço e uma perna.
O resumo da história já é suficiente para que se perceba que não estamos diante do melhor de Balzac.
Aqui Balzac, sempre tão indiferente a qualquer tipo de maniqueísmo - vemos em seus romances os bons sofrerem e, muitas vezes, os maus prosperarem - pune Rosália no último parágrafo, com um acidente totalmente artificial. Seria tão mais balzaqueano ver Rosália casada com um Alberto feliz e ignorante da trama que o levou ao matrimônio!
Pois, a diferença, apontada por Paulo Rónai e perceptível por qualquer um que conhece um pouco a biografia de Balzac é que Alberto é um alter ego de Balzac. Advogado. Vários anos de empresas malogradas. Três anos perdidos em Paris. Romancista (contudo, tivemos uma amostra medíocre do seu talento como o enfadonho Ambicioso por Amor). “(...) o senhor Savaron apareceu de robe-de-chambre de merinó preto, com um cordão encarnado, chinelos encarnados, um colete de flanela encarnado (...)”. “(...) uma cabeça soberba; cabelos negros, já entremeados com fios brancos, cabelos como os de São Pedro e dos São Paulo dos nossos quadros, com caracóis bastos e luzídios, cabelos duros como crinas, pescoço branco e redondo como o de uma mulher, uma fronte magnífica dividida pelo sulco poderoso que os grandes projetos, os grandes pensamentos, as fortes meditações imprimem na fronte dos grandes homens (...)”. Como se não bastasse, Savaron namora uma estrangeira com quem troca cartas e aguarda a morte do seu marido para desposá-la. Alberto Savarus. mostra, de certa forma, o poder da ficção. Balzac cria um personagem totalmente insosso com as suas características. Em nenhum momento o consideramos interessante como o narrador nos diz que ele é. Em compensação, Rosália, sua criação, é uma das deliciosas vilãs de Balzac. É ela que mantém nosso interesse pelo romance.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Uma Estreia na Vida (fevereiro de 1842)

Volume II: Estudos de Costumes – Cenas da Vida Privada (lido entre 5 e 27 de outubro de 2009)

Um Estreia na Vida (fevereiro de 1842)

Personagens: Pierrotin, sr. Moreau (intendente de Presles), sra. Moreau (Estela), conde de Sérisy, Léger (granjeiro), sr. Clapard, sra. Clapard, Oscar Clapard (Husson), Jorge Marset (ajudante do sra. Crottat - notário), José Bridau (falso Shinner), Mistigris (Leão de Lora), sr. e sra Raybert (novos intendentes), Grindot (arquiteto), Jacques Moreau (filho de Moreau), sr. Cardot (tio de Oscar), Camusot (genro de Cardot), sr. Desroches (advogado), Godeschal (aprendiz de Desroches), Marieta (irmã de Godeschal), F. Marset (irmão de Jorge).

A história se passa entre 1822 até “bem depois de 1835”.

Uma Estreia na Vida é uma pequena obra prima. Pequena porque curta. Obra prima, pois nela Balzac empregou toda a sua habilidade. Aqui ele é, como se denominava, um “historiador de costumes”, narrando, em 1842, para a posteridade a França das diligências que morrera com a chegada da estrada de ferro. E é também o hábil contador de histórias, quando extrai de um episódio cômico, que poderia se esgotar em si mesmo, toda a história de uma vida.
Em 1822, o conde de Sérisy, desconfiado de que seu intendente, Moreau, estava lhe roubando, apanhou, incógnito, o coucou de Pierrotin em Paris rumo a Presles. No carro, estavam os pintores José Bridau, que se fazia passar pelo famoso e já nosso conhecido Schinner; seu ajudante, Mistigris (que fazia trocadilhos o tempo inteiro); Jorge Marset, simples aprendiz de notário que se fazia passar por nobre militar cheio de honrarias; e nosso herói, Oscar Husson. Oscar, protegido de Moreau, sentindo-se inferiorizado pela aparente grandeza de seus companheiros de viagem, passou a revelar segredos do conde que conhecia pelas indiscrições de Moreau, que era amante de sua mãe, a senhora Clapard. As fofocas diziam respeito à relação do conde com a sua esposa. O nobre, furioso, despediu Moreau, e Oscar perdeu seu protetor. A senhora Clapard pediu, então, ajuda ao tio Cardot, ancião que aparentava austeridade, mas que, na verdade, era um pândego e amante de dançarinas. Cardot obteve posição para Oscar no escritório de Desroches e passou a custear-lhe a faculdade de Direito. Sob a proteção do sério Godeschal, tudo ia bem para o jovem Oscar. Até que ingressou no escritório o irmão de Jorge Marset, e Oscar o reencontrou. Depois de uma comemoração, Oscar perdeu dinheiro do patrão no jogo e, embriagado, adormeceu, deixando de cumprir um compromisso do escritório. Desroches não perdoou e Oscar foi despedido. Restou a ele o serviço militar. Moreau melhorou a situação de seu protegido, conseguindo que ele ficasse sob às ordens do filho do conde de Sérisy. Em uma batalha na África, Oscar salvou a vida do jovem de Sérisy e perdeu um braço.
Anos depois, os mesmos personagens se encontraram em um carro rumo a Presles. José Bridau, já pintor famoso; Pierrotin, empresário rico; Léger, também rico; Jorge Marset, decadente; e Oscar, um circunspecto burguês que acabou casando com a senhorita Pierrotin. Descobrimos também que o senhor de Canalis, pretendente de Modesta Mignon, desposou a filha de Moreau.
O que faz de Uma Estreia na Vida uma história tão deliciosa? Muitas coisas, mas julgo que a principal é o toque de vida real dos persongens. Oscar é um herói que, a princípio, não provoca nenhuma empatia. A gafe que compromete seu futuro é fruto de sua vaidade e mediocridade. Tempos depois, cai na armadilha de Jorge e, novamente, desperdiça uma oportunidade. O que se espera, a partir daí, é a decadência. Contudo, ele se torna um ótimo militar, com caráter suficiente para arriscar a vida e salvar o filho do homem que o prejudicou. E assim são as pessoas reais, capazes do tolo e do sublime, capazes de cometerem erros e de os corrigirem. No princípio, estranhamos um herói tão infantil e antipático. Contudo, eis nós leitores, algumas páginas depois, lamentando as suas desventuras e torcendo por ele.
Os outros personagens também são deliciosamente reais. Moreau, que rouba descaradamente o patrão, não mede esforços para ajudar o filho da amante. A senhora Clapard cega, como todas as mães, à nulidade do filho. Desroches, justo e reto advogado, que acaba sendo injusto com o jovem herói. O tio Cardot, que salva Oscar por amor à sua dançarina. Como diz Rónai, “em cada um deles encontraremos essa incoerência orgânica que é a prova mais inequívoca da vida real”.
Em Uma Estreia na Vida Balzac utilizou uma experiência pessoal que irá aparecer em outros romances: sua vivência forense. A partir de novembro de 1816, Balzac passou a frequentar aulas de direito na Sorbonne. Porém, naquela época, não era na faculdade que se aprendia ciência jurídica, mas na posição de aprendiz em um escritório de advocacia ou tabelionato. Entre 1816 e abril de 1818, ele trabalhou no escritório de Guillonet-Merville, que ele viria a homenagear com o personagem Derville. Entre 1818 e meados de 1819, Balzac trabalhou para o tabelião Victor Passez. É esse o ambiente que ele descreve no escritório de Desroches. A vida de um aprendiz forense era muito diferente da dos estagiários de hoje em dia. Era uma vida monástica. Eles moravam no emprego, onde também se alimentavam e eram vigiados pelo patrão. Havia uma rígida hierarquia - primeiro, segundo, terceiro ajudante, primeiro, segundo, terceiro escriturário - e ascender nela era uma questão de mérito. Também há relatos das pilhérias e brincadeiras, como os jantares consignados em ata, em um dos quais nosso herói se perdeu. Aqui, mais um oportunidade para conhecer Balzac “historiador de costumes”.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Modesta Mignon (julho de 1844)

Personagens: Simão Babylas Latournelle (notário), senhora Latournelle, Exupério Latournelle, João Butscha, Dumay, senhora Dumay, Carlos Mignon (duque de La Bastie), sra. Mignon (Betina Wallenrod), Modesta Mignon, Betina Carolina Mignon (falecida em 1827), Jorge d´Estourny (sedutor de Betina), Vilquin, Gobenheim (banqueiro), Canalis (Constante Ciro Melchior), Ernesto de la Brière, Duque d´ Herouville.
A história se passa em 1829.
Modesta Mignon encerra o volume I da Comédia Humana. Aqui somos apresentados a uma das especialidades de Balzac: fazer retratos minuciosos da vida provinciana. Balzac ambientava suas histórias em diferentes locais da França para cultivar leitores em toda parte. Modesta Mignon se passa no Havre na região da Bretanha.
Antes de comentar a história, é preciso conhecer o aporte autobiográfico do romance. Balzac recebia centenas de cartas de seus leitores e, especialmente, de suas leitoras. No início de 1832, o escritor recebeu uma carta postada em Odessa e assinada por "Estrangeira". Assim, iniciou a sua correspondência com a condessa polonesa Eveline Hanska que se tornaria sua amante e, depois, sua esposa. Em 1844, Eveline, já viúva e noiva de Balzac, escreveu de Wierzchownia na Ucrânia uma carta em que sugeria ao noivo a ideia para a historia de Modesta Mignon. Uma jovem envia cartas ao seu poeta favorito. Todavia, quem responde é seu secretário e a moça se apaixona pelo secretário julgando ser ele o célebre artista. Detalhe: as primeiras cartas de Eveline foram respondidas por Zulma Carraud, amiga de Balzac. Ele só passou a escrever para Hanska após a terceira carta. E, não por acaso, Modesta Mignon, era um pouco estrangeira: sua mãe era alemã.
Já no início, Balzac põe o leitor a prova com uma descrição longa e minuciosa. Estamos em 1829 e Carlos Mignon, rico comerciante do Havre que perdera a fortuna, estava em viagem procurando reconstruir seu patrimônio. Deixou no Havre a esposa, alemã, e as duas filhas, Betina e Modesta. Betina fora seduzida por um corsário e abandonada, tendo falecido logo após. Modesta, filha preferida de Carlos, era, portanto, vigiada e guardada com a vida pelo fiel amigo de seu pai, Dumay. A vigilância, contudo, era física e não intelectual. Modesta lia avidamente literatura inglesa, francesa e alemã. Balzac, lido principalmente por mulheres, julgava a literatura perigosa para moças. Lembram-se de Augustina Guillaume? Foram as leituras às escondidas que a guiaram à paixão desastrada. Um dia, Modesta resolveu escrever uma carta ao seu poeta preferido, o senhor de Canalis. Quem recebeu e respondeu a missiva foi seu secretário, Ernesto de La Brière. Passaram a trocar cartas. Assim, Modesta se apaixonou por La Brière julgando ser ele Canalis. Nesse meio tempo, Carlos Mignon retornou com fortuna maior do que antes possuía. Modesta tornou-se uma rica herdeira. A impostura de Ernesto foi descoberta pelo dedicado pai. Canalis, por seu lado, ao saber que sua admiradora era muito rica, ficou interessado. Carlos Mignon resolveu então que Modesta deveria conviver com Canalis e La Brière para ver qual dos dois mais lhe agradava. O Duque d´Herouville também participaria da corte. Após um começo no qual Canalis levou a melhor, ficou evidente para Modesta as diferenças de caráter entre os pretendentes. La Brière era um jovem inteligente, esforçado e estava muito apaixonado, ao passo que Canalis era um dândi, um tanto pedante, em busca de uma esposa rica que sustentasse seus luxos em Paris. Modesta fez, então, a escolha certa.
O desfecho de Modesta Mignon contrasta com o de Ao Chat-qui-Pelote e Memórias de Duas Jovens Esposas. Por que Balzac não fez Modesta casar com Canalis e amargar a infelicidade como Augustina e Luísa de Chaulieu? Segundo Paulo Rónai, porque Modesta é, de certa forma, Eveline Hanska. Mas julgo que haveria contradição se Modesta casasse com Canalis e fosse feliz com ele. Modesta apaixonou-se pela poesia de Canalis, mas escolheu racionalmente La Brière. Talvez Balzac não fosse exatamente contra o amor romântico, mas favorável a escolhas racionais para a vida a dois.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Bolsa (maio de 1832)

Personagens: Hipólito Schinner, Adelaide de Leisegneur, Baronesa de Rouville, cavaleiro Du Halga, conde de Kergaroüet, Francisco Souchet.

A história se passa no reinado de Luís XVIII, ou seja, entre 1815 e 1824.

A Bolsa é um conto mal acabado de Balzac. Longas descrições, uma situação de suspense e um final feliz muito forçado.

O jovem e promissor pintor de quadros Hipólito Schinner instala seu ateliê no último andar de um velho prédio. Distraído, caí de uma escada e desmaia. Ao acordar, está na presença de suas vizinhas que, ao ouvir o barulho da queda, o socorrem. Trata-se de uma bela jovem, Adelaide de Leisegneur, e de sua mãe, a baronesa de Rouville. No dia seguinte, Schinner vai ao apartamento das vizinhas agradecer pela ajuda. Eis o ponto alto do livro, a descrição do apartamento: "Para um observador, havia um não sei quê de desolador no espetáculo daquela miséria, que se assemelhava a maquilagem duma mulher velha que ainda quer se dar ares de moça". É a descrição que lança a ambiguidade sobre a vida de Adelaide e de sua mãe: eram elas simples mulheres que viviam em uma pobreza decente após um passado de riquezas? Ou eram mulheres de caráter duvidoso? Balzac aponta o tempo todo para a segunda hipótese. O nome da filha diferente do da mãe. Os cavalheiros idosos, Du Halga e conde de Kergaroüet, que frequentavam o apartamento, e as liberdades que tomavam com Adelaide que para Hipólito ora pareciam as de um pai, ora não. A avidez da baronesa pelo jogo. E, finalmente, o desaparecimento da bolsa de Hipólito com quantia considerável de dinheiro. O desfecho é decepcionante. Após alguns dias de dúvidas e sofrimento, Schinner descobre que Adelaide subtraíra sua bolsa para substituí-la por outra feita por ela. E o pintor é informado de que o conde de Kergaroüet, apiedado da difícil situação financeira da baronesa, perdia voluntariamente no jogo para ajudá-la, já que ela se recusava a aceitar dinheiro.

Balzac poderia ter deixado alguma ambiguidade no conto. Paulo Rónai chama a atenção, na introdução, para o alinhavo da história do jogo. O autor lança tantas sombras sobre o caráter da heroína, que o desenlace é totalmente insatisfatório. No início da história ele diz: "Nenhum pintor de costumes se animou, talvez por pudor, a nos iniciar na intimidade de certas existências parisienses, no segredo dessas moradias de onde saem tão frescas, tão elegantes toilletes, mulheres tão brilhantes que, exteriormente ricas, deixam em tudo os sinais de uma fortuna equívoca". Eis uma tema que Balzac trabalharia com maestria. Mas em A Bolsa ficamos só com a expectativa.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Revolução de 1989 – A queda do Império Soviético


Lido entre 4 e 21 de setembro de 2010

Existe uma enorme diferença entre estudar episódios históricos dos quais temos lembranças e, dos quais não temos. Explico: Victor Sebestyen, jornalista húngaro que escreveu A Revolução de 1989 – A queda do Império Soviético, situou o seu relato entre 1978 e 1989. Assim, tenho memórias relacionadas aos personagens ou fatos dessa história. Ter a história relacionada a nossa memória pessoal faz muita diferença.

Como quase a totalidade das crianças da minha geração, cresci com medo de uma guerra nuclear. Quando tinha sete ou oito anos e estudava numa escola católica, pedia nas minhas orações antes de dormir que os presidentes dos Estados Unidos e da União Soviética não apertassem o botão. O mundo comunista, ou o pouco que chegava dele para nós, era objeto de medo e fascínio. Lembro das Olimpíadas de Moscou em 1980. Víamos pela televisão as ginastas perfeitas dos países comunistas. Os adultos nos diziam que aqueles jovem vencedores eram separados dos pais ao nascerem e o Estado definia o que eles deveriam fazer. O que poderia ser mais aterrorizante para uma criança do que a perspectiva de ser separada dos pais? Nós morríamos de medo. Lembro do funeral de Leonid Brejnev em 1982. Da beleza sinistra dos soldados marchando em passo de ganso.

Victor Sebestyen faz uma reportagem histórica, ou seja, ele não analisamuito os fatos: narrou em ordem cronológica os acontecimentos mais importantes. E se ate maos países da famosa cortina de ferro: Polônia, Hungria, Tchecoeslováquia, Romênia, Bulgária, Alemanha Oriental e, naturalmente, a União Soviética. Ele sublinhou as diferenças entre o comunismo implantado nos países e como essas diferenças se refletiram na sua queda.

Também há uma ênfase nas biografias. O Papa Joâo Paulo II, Ronald Reagan, Lech Walesa, Mikhail Gorbachev, Nicolai Ceuscescu, Vaclav Havel são protagonistas, com uma queda explícita do autor por Reagan e Gorbachev. Reagan é apresentado como um idealista, um homem cujo maior desejo era acabar com a guerra fria. Sebestyen diz que ele não revelava o que realmente pensava e que tinha ferrenhos embates com seus assessores linha-dura. Chega a dizer que Reagan não revidaria em caso de ataque soviético, o que é muito difícil de acreditar. Gorbachev é apresentado como um inteligente soldado do comunismo que ocultou por muito tempo suas ideias liberalizantes para colocá-las em prática ao chegar ao poder. Não queria, de forma alguma, acabar com o comunismo, mas reformá-lo. Por outro lado, não pretendia manter mais a zona de influência soviética, de modo que nem cogitou intervir em nenhuma das revoluções de 1989. Aparece como uma personalidade cativante, inspirada, mas um pouco inseguro e nada organizado. Selbestyen revelou algo que pode ser adivinhado por aqueles que conhecem o que aconteceu com a União Soviética após 1989: Perstroika e Glasnost eram só palavras, não havia um plano por trás.

O ano de 1989 é narrado praticamente mês a mês. Um dos destaques é para a queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 que foi motivada por um erro de Günter Schabowski em uma entrevista coletiva. O funcionário do partido comunista foi anunciar uma lei que permitia a saída dos alemães orientais pelos postos de fronteira. Era uma medida de urgência para solucionar o êxodo de alemães pela Hungria e Techecoeslováquia que vinha ocorrendo. Peguntado por um jornalista americano quando a regra passaria a valer, Schabowski respondeu "imediatamente". Isso gerou a enorme aglomeração nos postos junto ao muro que provocou a sua queda no início da madrugada.

Os eventos na Romênia dão o tom dramático. Lá, praticamente não havia oposição organizada. O ditador Nicolai Ceuscescu era temido e reverenciado, embora odiado pela maioria da população. A revolução foi desencadeada por incidentes na cidade de Timisoara, na Transilvânia. A repressão e os boatos espalhados levaram o ditador a organizar um comício em Bucareste para mostrar que estava no poder e que nada iria mudar. Quando discursava, as vaias começaram e Ceuscescu saiu dali praticamente em fuga. Foi formada uma frente de Salvação Nacional. Em todo país, oficiais da Securitate, polícia secreta do regime, passaram a atacar: foram 1104 mortes em toda a Romênia. A solução foi o julgamento e a condenação a morte de Ceuscescu e de sua esposa, Elena. Em 25 de dezembro de 1989, o casal mais temido do país foi julgado, de forma totalmente irregular, e enfrentou o pelotão de fuzilamento.

Victor Sebestyen não esconde seu profundo ódio ao comunismo. Sua análise das personalidades é um tanto maniqueísta: comunistas maus/anti-comunistas bons. Figuras como Vaclav Havel e Lech Walesa aparecem somente com qualidades. Ele chega a dizer que as acusações de infidelidade conjugal contra Walesa eram fofocas, que ele era fiel a sua esposa Danuta! Como Sebestyen sabe?

Mas o autor consegue, com um relato cronológico, prender a atenção do leitor do início ao fim. É uma leitura obrigatória para quem gosta de história recente ou quer testar sua memória afetiva.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Memórias de Duas Jovens Esposas (1841)

Personagens: Luísa de Chaulieu, Renata de Maucombe, Miss Griffith (governanta de Luísa), Filipe (criado de Luísa), duque e duquesa de Chaulieu, senhor de l´Estorade, Luís de l´Estorade, Barão de Macumer (Felipe Henarez), senhor de Canalis, duque de Rethore (Afonso, irmão de Luísa), dançarina Túlia, Duque de Sória, Maria Herédia, duquesa de Mafrigneuse, Henrique de Marsay, Maria-Gastão, Daniel D´Arthez, José Bridau.
A história inicia-se em 1822 e termina em 1839
Em Memórias de Duas Jovens Esposas, Balzac utiliza a forma espistolar para narrar a evolução da amizade de Luísa de Chaulieu e e Renata de Maucombe depois que elas saem do convento. Após uma adolescência de sonhos compartilhados, cada amiga seguirá seu caminho. E Balzac usa esses caminhos, totalmente distintos, para trabalhar um tema que já havia aparecido em Ao "Chat-qui-pelote": o casamento por amor versus o casamento de conveniência, com o segundo levando a melhor.
Renata sai do convento diretamente para o casamento com Luís de l´Estorade, um ex-prisioneiro das guerras napoleônicas, precocemente envelhecido e muito circunspecto. Luísa vai brilhar na sociedade de Paris. Lá conhece Felipe Henarez, professor de espanhol, por quem sei apaixona. Após um namoro cavalheiresco, quase medieval, ela descobre que Felipe é uma exilado político e Barão de Macumer. Se casam em estado de profunda paixão. Enquanto isso, Renata tem três filhos com Luís: Armando, Atenais e Renato. Luís torna-se nobre e, com a ajuda de Renata, obtém bons cargos no governo. Luísa não engravida e, após alguns anos de felicidade, Macumer morre. Cinco anos depois, Luísa, viúva, casa-se com o jovem e pobre poeta Maria-Gastão. Para proteger seu amor excessivo e ciumento, isola-se com Gastão em um chalé fora de Paris. Depois de um tempo, desconfia da fidelidade do marido que surpreende com uma mulher em Paris. Antes de saber por Renata que a mulher era a cunhada viúva que Gastão ajudava em segredo, Luísa, desesperada, provoca uma tuberculose e morre.
Há aqui dois contrastes: a vida escolhida por Renata e a vida escolhida por Luísa, e o primeiro e o segundo casamento de Luísa. Assim como Virgínia foi melhor sucedida que Augustina em Ao"Chat-qui-pelote", Renata, que parece vítima no início da história, termina feliz, mãe de três lindas crianças e ao lado de um homem de quem se orgulha. Luísa, após um romance de livro, com um homem belo e rico, termina, como sugere Balzac, "causando" a morte do marido pelo enfado produzido pelo amor. Em uma carta, escreve-lhe Renata: "(...) tu não o amas. Antes de dois anos te cansarás dessa adoração. Nunca verás em Felipe um marido, e sim um amante, do qual sem a menor preocupação farás teu brinquedo (...). Não, ele não se impõe a ti, não lhe tens esse profundo respeito, esta ternura cheia de temor, que uma verdadeira amante dedica àquele que vê como um Deus". É, nas palavras de Paulo Rónai, um amor inspirado. E Balzac, ao acrescentar o segundo casamento de Luísa, o contrasta com o amor sentido. Luísa ama Maria-Gastão muito mais do que ele a ama. Ela está aqui no lugar de Felipe de Macumer. Mas o romance é igualmente mal sucedido. É a tese muito repetida por Balzac de que o casamento exclui o amor e a paixão destrói o casamento.
Outro ponto interessante de Memórias de Duas Jovens Esposas são as descrições minuciosas das situações relacionadas à maternidade: o parto, a amamentação, as doenças dos filhos. Aqui Balzac utilizou sua vasta correspondência e longas estadas em casa de Zulma Carraud, que foi uma espécie de modelo de Renata. É impressionante que um homem do século XIX, que não teve filhos (ao que tudo indica, teve uma filha, mas não acompanhou seu crescimento), soubesse de tudo aquilo! Balzac, definitivamente, entendia de mulheres.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Na pior em Paris e Londres


Lido entre 28 de agosto de 3 de setembro de 2010.

Nunca mais vou entrar em um restaurante sem pensar em George Orwell.

Na Pior em Pais e Londres enquadra-se hoje na categoria jornalismo literário. Todavia, na época em que foi publicado, 1933, não se enquadrava em coisa nenhuma. Tanto que seu autor, Eric Arthur Blair, após ver seu manuscrito rejeitado por duas vezes, mandou que uma amiga o jogasse fora. Essa sábia mulher, a brasileira Mabel Sinclair Fierz, enviou o material a um agente literário e salvou Na Pior em Pais e Londres para a posteridade.

O jovem Blair, filho de um funcionário do império britânico na Índia, apesar de não ser rico, foi educado nos melhores colégios da Inglaterra. Aos 19 anos, ingressou na polícia colonial britânica na Birmânia. Tomado de ódio ao imperialismo, abandonou o emprego e resolveu conhecer a pobreza de perto. Viveu quase dois anos em Paris trabalhando como plongeur, lavador de pratos, em um hotel de alto padrão e, após, em um restaurante. Depois, rumou para Londres onde viveu como mendigo nas ruas e em albergues públicos.

É essa experiência que está relatada em Na Pior em Pais e Londres. Blair poderia somente contar suas desventuras e o livro já seria interessante. Mas ele é um analista, um pensador. Reflete sobre o que observa, busca o que está por trás da miséria, da fome, do desespero que vivenciou.

Para mim, o ponto alto do livro é a descrição do trabalho no Hotel X. Blair foi lavador de pratos lá e descreveu como um antropólogo o ambiente e as relações de trabalho. Havia uma hiererquia rígida entre os funcionários e um código não escrito seguido estritamente por todos. Da mesma forma, Blair identificou a dignidade ligada ao trabalho, mesmo aos pior remunerados e mais vis. " Não obstante, por mais que estejam por baixo, os plongeurs também demonstram um tipo de orgulho. É o orgulho do burro de carga – o homem que suporta qualquer quantidade de trabalho. Nesse nível, o mero poder de trabalhar como um boi é a única virtude alcançável".

A parte engraçada (e para quem vai a restaurantes, de humor negro) é a descrição da sujeira da cozinha e da falta de higiene com que as caras refeições servidas aos fidalgos no salão eram preparadas. Algumas passagens são nauseantes. "Por exemplo, quando um bife é levado para a inspeção do cozinheiro-chefe, ele não o manuseia com um garfo. Ele pega a carne com os dedos e joga-a de volta no prato, passa o polegar ao redor do prato e o lambe para experimentar o molho (...), depois o empurra carinhosamente para o lugar com seus dedos gordos e rosados, os quais já lambeu cem vezes naquela manhã. Quando se dá por satisfeito, pega um pano e limpa as suas digitais do prato e o passa para o garçom. E o garçom, claro, mergulha os seus dedos no molho – os dedos asquerosos e engordurados que está sempre passando pelos seus cabelos cheios de brilhantina. Sempre que alguém paga mais do que, digamos dez francos por um prato de carne em Paris, pode ter certeza de que ele foi manuseado dessa maneira". E há coisa piores. Blair diz que a sujeira é inerente aos hotéis e restaurantes, pois a comida saudável é sacrificada em nome da pontualidade e apresentação.

Na parte referente a Londres, é bastante interessante a descrição sobre a rotina dos mendigos que circulavam nos albergues públicos. As leis contra a vadiagem impediam que se pernoitasse dois dias seguidos no mesmo local, o que obrigava os indigentes a caminharem quilômetros em busca de outro local para dormir e receber uma reação que mal garantia a sobrevivência. E a óbvia observação sobre o desperdício de energia e dinheiro que a circulação de um exército de mendigos pelo país representava.

Há também no livro uma deliciosa galeria de tipos: o garçom russo, o culto grafiteiro inglês, o mendigo Paddy e muitos outros.

Ao final, diz Blair: "Ainda assim, posso apontar duas ou três coisas que definitivamente aprendi vivendo duro. Nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der uma esmola, nem ficar suspreso se homens desempregados carecem de energia, nem contribuir para o Exército da Salvação, nem empenhar minhas roupas, nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo."

Quando foi acertada a publicação do livro, Blair resolveu escolher um pseudônimo: "Não tenho uma reputação a zelar, e se o livro fizer sucesso, poderei usar o pseudônimo novamente". Eric Arthur Blair escolheu George Orwell.