quarta-feira, 24 de junho de 2020

Pedro Grassou

Pedro Grassou (dezembro de 1839)
Volume IX: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Parisiense



Personagens: Pedro Grassou (Fougères), Elias Magus, Servin (A Vendeta), Schinner (A BolsaModesta MignonA falsa amante) , Sommervieux (Ao "Chat-qui-pelote") José Bridau (Um conchego de solteirão), Leão de Lora (Um estreia na vida), François-Marius Granet (1775-1849), Pierre Duval Le Camus (1790-1854), Alexandre Gabriel Decamps (1803-1860), Cardot (Ao "chat-qui-pelote", Uma Estreia na Vida, A musa do departamento), Antenor Vervelle, senhora Vervelle e Virgínia Vervelle. 




A história começa em 1832, mas recua até 1819. 



Pedro Grassou é, nas palavras de Paulo Rónai, uma anedota. É interessante, contudo, pois é um dos textos no qual Balzac reflete a respeito da arte e do artista no seu tempo. 
O protagonista, também conhecido como Fougères, nome de sua cidade natal na Bretanha, é um pintor de quadros medíocre, que, embora tenha estudado com grandes nomes do seu tempo (alguns fictícios, como Servin, Schinner e Sommervieux, outros reais como Granet e Le Camus), não conseguia mais do que copiar o estilo de artistas consagrados. Foi inúmeras vezes desencorajado pelos seus pares, mas era humilde e persistente. Ao invés de buscar emprego em um escritório ou, ironia de Balzac, "experimentar a literatura", adotou um estilo modesto de vida e seguiu buscando o reconhecimento. Sobrevivia da venda de seus quadros a um comerciante de arte, usurário caricato, Elias Magus. Ele encomendava "interiores flamengos, uma lição de anatomia, uma paisagem" ao artista, e Grassou sobrevivia com renda minguada. Em 1829, dez anos após sua estreia na arte, seus amigos famosos, Schinner, Leão de Lora e Bridau, conseguiram que um quadro seu fosse admitido na exposição do grande Salão. Lá seu quadro, Os Preparativos de um chouan condenado à morte em 1801 , "embora medíocre, (...) teve um êxito extraordinário". Agradou  a Carlos X e a outros expoentes da realeza e lhe rendeu a cruz de cavaleiro da Legião de Honra. Foi sua consagração como artista. Passou a ter quadros aceitos no Salão. Mas seguiu vivendo com parcimônia e depositando suas economias no tabelião Cardot. 
Em dezembro de 1839, Magus traz a família Vervelle para que Fougerès lhe faça os retratos. O comerciante de garrafas Antenor Vervelle, sua esposa e filha, Virgínia, se afeiçoaram ao circunspecto e organizado artista. Descobrem ter em comum o mesmo Cardot como tabelião. Começam a considerará-lo um bom partido para a pouco atraente Virgínia. Grassou também pensa em casamento, julgando o dote e os bens do futuro sogro. 
Finalmente, Vervelle convida o artista para conhecer sua casa de campo, onde se gaba de ter uma galeria com quadros de grandes artistas, como Rubens, Rembrandt e Murilo. Ao ver a galeria, Fougerés descobre que metade das obras expostas eram suas, cópias por ele realizadas e compradas por pouco dinheiro por Magus, que as vendia caro para o burguês. Longe de ficar aborrecido, Vervelle reconheceu Grassou-Fougerès como um grande talento e deu a ele a mão de Virgínia. No final da história, ele mora com os sogros, ganha quinhentos francos por quadro e espera ingressar na Academia
O início do conto Pedro Grassou é ensaístico. Balzac critica a democratização do Salão de Pintura e Escultura ocorrida depois da Revolução de 1830:
"Uma experiência de dez anos demostrou a excelência da antiga instituição. Em vez de um torneio, tendes agora um motim; em vez de uma exposição gloriosa, um bazar tumultuoso; em vez do melhor, a totalidade . (...) Onde não há mais julgamento também não há mais coisa julgada". 
Grassou conseguiu colocar seu quadro Os Preparativos de um chouan condenado à morte em 1801, em 1829,  por empenho de seus amigos famosos. Já depois da Revolução de Julho, "vinha apresentando a cada exposição uma dezena de quadros, dos quais o júri admitia quatro ou cinco". Essa crítica nos situa no tema que Balzac explora no texto: o aburguesamento do gosto artístico. Pedro Grassou é o artista burguês por excelência. A descrição do seu ateliê, organizado e limpo como um quarto de moça, já nos afasta do esteriótipo do artista atormentado e genial. São seus hábitos, especialmente os econômicos, que promovem a sua ascensão, mais que sua habilidade. Gastar pouco, comer pouco, colocar os ganhos na mão do tabelião, escolher temas que, ou combinavam com a política do momento (Os Preparativos na época de Carlos X) ou que não a confrontavam (retratos, paisagens e interiores na Monarquia de Julho), escolher a noiva pelo dote. Tudo isso fez com que Grassou não saísse "de um círculo burguês onde é considerado um dos melhores artistas da época". Não tem o reconhecimento dos pares, "os artistas zombam dele, seu nome é uma palavra de desprezo nos ateliês, os folhetins não se ocupam de sua obra", mas a classe ascendente o compra, pois com ele se identifica. 
Por que Pedro Grassou era um artista medíocre? Segundo Balzac, porque ele não conseguia imaginar, somente copiar; e porque não mostrava a natureza como era, mas de forma estereotipada (José Bridau, ao ver Grassou pintando Virgínia, comentou que a face com tons róseos era adequada para um anúncio de perfumista. Era preciso uma cor vermelha para pintar a moça ruiva). Ele deixava de copiar a natureza, mas copiava as imagens da natureza feitas por outros artistas. 
O interessante é que Grassou-Fougères sabia a diferença entre a obra medíocre e a de qualidade, ao contrário dos seus clientes. No final, sabemos que ele usava seu dinheiro para comprar quadros de pintores célebres que se encontravam em dificuldades para substituir as cópias da galeria de seu sogro, substituir as más telas por "verdadeiras obras primas, que não são dele". 
Paulo Rónai, na introdução do conto, nos diz que Balzac foi um dia Grassou, "produzindo obras inconfessáveis". Esse texto foi escrito entre 1944 e 1955, época da tradução da Comédia Humana no Brasil, da qual Rónai foi organizador. No texto do Jornal do Brasil de 2 de dezembro de 1972, Rónai nos dá notícia da leitura de Balzac et Le Mal du Siecle. Contribuition a une Phisyologie du Monde Moderne de Pierre Barbéris publicado em 1970. Nele, Barbéris analisa minuciosamente a obra de Balzac até 1833, após o primeiro sucesso balzaquiano. E o resultado muito se afasta do que Rónai denomina "a tese do milagre", ou seja, que uma mudança teria ocorrido com Balzac após seu trigésimo ano que o transformou de autor irresponsável e mercenário das obras da mocidade em historiador imparcial e perfeito de sua época. Havia muito mais qualidade naquela obra inicial do que se conhecia. Não houve milagre. Balzac imaginava e mostrava a natureza tal qual era, apesar da inexperiência da juventude.  Balzac nunca foi Pedro Grassou. 



Observação: na edição em português que tenho, da Editora Globo de 1990, a data do quadro de Grassou Os Preparativos de um chouan condenado à morte em 1801 está com a data errada de 1809. Os chouans eram monarquistas da região da Bretanha que se rebelaram contra a Revolução Francesa. Com o início das guerras napoleônicas, houve uma espécie de trégua desse tipo de revolta em 1801. Por isso, a data de 1809 me pareceu estranha. Foi um erro de tradução que pode ser verificado no texto original de Pierre Grassou

O quadro que ilustra a postagem é La femme hydropique (1663) do pintor holandês Gerit Dou (1613-1675). Foi o quadro que Pedro Grassou plagiou ao fazer Os Preparativos de um chouan condenado à morte em 1801 . O original, de Dou, está no Louvre. O de Pedro Grassou talvez esteja também. 


sábado, 13 de junho de 2020

Sarrasine

Sarrasine (setembro de 1830)
Volume IX: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Parisiense

Personagens: narrador, senhora de Rochefide (Beatriz), conde de Lanty, condessa de Lanty, Marianina, Filipo, Ernesto João Sarrasine, Edme Bouchardon (1698-1762), Zambinella, Vitgliani, cardeal Cicognara, príncipe Chigi. 
A história ocorre no período em que foi escrita, 1830, mas remete a outra história iniciada em 1758.


Sarrasine está longe de ser o melhor de Balzac. A novela ganhou notoriedade em 1970, quando o crítico literário Roland Barthes publicou o ensaio S/Z no qual faz uma análise pós-estruturalista de Sarrasine. 
Na história, encontramos o narrador, no período da Restauração (o ano não está identificado) em uma festa, observando uma desoladora paisagem de inverno através da janela. Ao voltar-se para o salão, percebe o contraste entre os dois ambientes: 
"Tinha, assim, à minha direita, a sombria e silenciosa imagem da morte; à esquerda, comedidas bacanais da vida; de um lado, a natureza fria, tristonha, de luto; do outro os homens em festa". Sabemos que será uma narrativa marcada pela ambiguidade. 
Descobrimos estar na casa dos Lanty, uma família sui generis. Muito ricos e de admirável cultura - "Todos os seus membros falavam italiano, francês, espanhol, inglês e alemão com tal perfeição que faziam supor se houvessem demorado longos anos entre esses diversos povos" - não  se conhecia a origem de tamanha prosperidade. 
A beleza das mulheres, a condessa de Lanty e sua filha adolescente Marianina, era partilhada pelo filho Filipo ("a imagem viva de Antinoo"), mas não pelo conde que "era baixo, feio e magro, sombrio como um espanhol e fastidioso como um banqueiro". E havia um homem, figura misteriosa, que  aparecera pela primeira vez no salão durante um concerto, atraído pela bela voz de Marianina. Ele era tratado com todo o carinho e deferência pela família, embora ninguém esclarecesse qual era a relação entre eles. 
Na noite em questão, o velho apareceu justamente quando Marianina cantava uma ária da ópera Tancredi. Estava vestido como os homens de posses do século XVIII: calções de seda, rendas, peruca e maquiagem. E seu físico era frágil e decrépito: "Sua magreza excessiva,  a delicadeza de seus membros provavam que suas proporções haviam sido sempre esbeltas". 
A figura assustou a senhora de Rochefide, beldade que acompanhava na festa o narrador. O casal se retirou para uma quarto contíguo ao salão e observou quando Marianina passou com o exótico parente e o encaminhou para o interior da casa. A menina, ao se despedir, recebeu do velho um dos anéis que ele trazia no dedo. No quarto havia uma pintura  de Joseph-Marie Vien representando Adônis estendido sobre uma pele de leão. Beatriz ficou fascinada pela perfeição da imagem e soube pelo narrador que o artista teve por modelo a estátua de uma mulher, talvez um parente da senhora de Lanty. Prometeu, então, contar a história misteriosa à sua acompanhante em sua casa, no dia seguinte, numa negociação que deixa implícita a troca da narrativa por uma noite de amor. 
No dia seguinte, ao pé da amada, o narrador contou a história de João Sarrasine, filho de uma advogado de Besançon, que decepcionou o pai se tornando escultor. Talentoso e discípulo de Edmé Bouchardon, aos 22 anos ganhou um prêmio e foi estudar em Roma. O ano era 1758. Lá, no Teatro Argentina, conheceu uma cantora lírica belíssima chamada Zambinella. Nela o narrador "via reunidas, bem vivas e delicadas, as raras proporções do corpo feminino tão ardentemente desejadas e das quais o escultor é , ao mesmo tempo, o juiz mais severo e mais apaixonado". Foi tomado de amores pela jovem, que passou a cortejar. Passou a desenhá-la e a esculpiu em argila. Dias depois, foi convidado pelo pessoal do teatro a finalmente conhecê-la pessoalmente. O encontro foi em uma alegre ceia com os artistas. O escultor estava confuso, pois a moça, embora estivesse em um ambiente bastante liberal quanto aos costumes, se comportava de forma recatada. No dia seguinte, o grupo foi fazer uma excursão aos arredores de Roma. Zambinella estava ainda mais arredia, e ao ouvir a declaração de amor de Sarrasine, disse não poder ser amada e que logo ela a odiaria. À reiteração do amor de Sarrasine, Zambinella retrucou: "E se eu não fosse mulher?".
No dia seguinte, o escultor preparou-se para raptar a amada que estaria em uma festa. Lá a encontrou cantando vestida de homem. Ao indagar a um ouvinte o motivo da indumentária, veio a verdade:
"De onde vem cavalheiro? Desde quando uma mulher subiu aos palcos em Roma? Não sabe, por acaso, por que criaturas são desempenhados os papéis femininos nos Estados Pontifícios?" 
Chocado, Sarrasine conseguiu que os amigos levassem Zambinella até ele. Com medo de ser morta (morto, Balzac passa a narrar agora no masculino), chorando, ele declara "Só consenti a enganá-lo para satisfazer aos camaradas, que desejavam rir". O escultor, furioso, foi interrompido por homens do cardeal Cicognara, protetor de Zambinella, que o mataram.
Ingenuamente, Beatriz perguntou o que tinha essa história a ver com os Lanty. Ora, Zambinella era o velho parente e sua carreira bem sucedida de cantora era a origem da fortuna da família. A estátua feita por Sarrasine foi modelo para o Adônis. Beatriz ficou desapontada e mandou o narrador embora. Ele não teve o esperado prêmio.
Ao pesquisar um pouco sobre Sarrasine, encontrei muito material em função do já mencionado ensaio de Roland Barthes. Encontrei uma parte inicial do ensaio. Achei chato e pouco elucidativo do texto. Me defendo aqui com a opinião de Paulo Rónai no texto introdutório ao conto de Balzac:
"O resultado de sua investigação [de Barthes] é uma construção mental em que utiliza os materiais mais heterogêneos, às vezes sem ligação nenhuma com a obra escolhida como pretexto. [É] um exemplo típico de certa espécie de crítica universitária extremamente arbitrária e vazada numa linguagem excessivamente artificial". 
No texto de introdução, Rónai nos diz  que o narrador é um personagem da Comédia Humana que Balzac esqueceu de nomear. Mas em um texto de 1972, o próprio Rónai aponta para a onisciência do autor. Como ele saberia o conteúdo das conversas de Zambinella com Sarrasine, que ele reproduz? Mas será que quem conta a história de Sarrasine à marquesa o mesmo que dialoga com ela? Não fica claro. 
Há também o fato do narrador não ser confiável. Ele diz, quando está na festa, que o velho/Zambinella é surdo. Mas diz também que ele foi à sala atraído pela voz de Marianina. Assim, ficamos em dúvida sobre a veracidade da história. 
De resto, a história é um tanto artificial. A riqueza e a beleza dos Lanty, o amor louco e descontrolado, à primeira vista, de Sarrasine por Zambinella, o fato de ele não perceber que ela não é uma mulher, depois de tantas indicações, a ideia do rapto, tudo classifica Sarrasine como uma obra menor. 
Deixo aqui um link sobre os castrati, os meninos que eram castrados para preservar a voz para o canto. A autora Yvonne Noble nos ensina que os castrati, que apareceram no ocidente no século XVI, estavam inseridos numa cultura na qual capacidade sexual não era algo tão valorizado. Afinal, era normal as famílias dedicarem os filhos e filhas à Igreja e ao, pelo menos oficialmente, celibato. E que os castrati vinham, via de regra, de famílias muito pobres. Com uma boa voz, um rapaz poderia ter e proporcionar à família uma vida melhor. E exatamente o caso de Zambinella. Noble também afirma que Balzac (ou seu narrador não confiável) estava pouco informado sobre o assunto. Havia castrati e papéis para eles na época em que Balzac escrevia. Somente em 1870 a castração foi proibida dos Estados Papais e havia um coral deles na Capela Sistina até 1898. 
O desconhecimento de Balzac ocorre, pois os castrati foram mais cedo banidos na França do que em outros países. 
Enfim, Sarrasine não é um grande Balzac, mas é Balzac.

A imagem é o famoso castrato Carlo Scalzi em quadro de Joseph Filipart (1737).
A matéria citada de Paulo Rónai é do Jornal do Brasil. Dossier. Balzac Pretexto e Texto. 2 de dezembro de 1972. Tem digitalizada na hemeroteca da Biblioteca Nacional.