sábado, 31 de dezembro de 2011

O mal que ronda a terra

O mal que ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. Tradução: Celso Nogueira.

Conheci Tony Judt quando encontrei em uma livraria a obra Reflexões sobre um século esquecido. É um livro que reproduz resenhas publicadas, em geral, na New York Rewiew of Books. É estranho ler resenhas longas de livros não lidos, pois não lera a maioria dos livros resenhados. Mas as obras eram quase pretextos para revisões excelentes de temas importantes do século XX: a guerra fria, o conflito entre Israel e Palestina, o leste europeu depois do fim do comunismo, a política nos Estados Unidos e na Europa, sem falar nas biografias de intelectuais que marcaram o século passado. Me apaixonei pela clareza do texto de Judt. E, claro, fui buscar outras obras.
Tenho lido muitos textos sobre o mundo depois da guerra fria. E percebo uma certa convergência entre autores que adotam perspectivas teóricas muito diversas. Erik Hobsbawm, Francis Fukuyama, Immanuel Wallerstein, Robert Gilpin consideram que é preciso fazer alguma coisa para controlar os efeitos deletérios da globalização.
Pois, Tony Judt, em O mal que ronda a terra, enfrenta justamente essa questão.
Judt inicia chamando a atenção para o fato de que "do final do século XIX até os anos 1970, as sociedades ocidentais avançadas estavam todas se tornando menos desiguais". Mas "no decorrer dos últimos trinta anos nós jogamos tudo isso fora." Apesar do aumento bruto da riqueza mundial, a desigualdade, ou seja, a distância entre ricos e pobres, aumenta mesmo nos países mais ricos. O autor destaca que a aceitação passiva dessa realidade, como se fosse natural, bem como o caráter materialista e egoísta da vida humana contemporânea datam da década de 1980.
A partir desse ponto, Judt passa a fazer uma revisão histórica para compreender como se chegou a esse ponto. Foram os efeitos da Grande Depressão e seus desdobramentos sinistros que fizeram com que conservadores anti-comunistas como Franklin Roosevelt, Charles de Gaulle e Clement Atlee aceitassem e patrocinassem a intervenção do estado na economia. "Em parte, por que todos temiam as implicações de um retorno aos horrores de um passado recente, e se mostravam dispostos a restringir a liberdade do mercado em nome do interesse público".
O economista que se dedicou a esse desafio foi John Maynard Keynes. Keynes viveu o final da pax britânica e viu o mundo em que vivia (nasceu em 1883) desmoronar, levando vidas, países, riqueza material, ideias em que se baseavam sua cultura e classe social. Ele começou a se dedicar ao estudo da incerteza. E percebeu que um dos maiores atrativos do nazismo e do fascismo eram a autoridade centralizada e o planejamento. Muitos que jamais apoiariam Hitler, o festejaram quando reduziu o desemprego na Alemanha. A grande questão para os políticos do pós segunda guerra era: como evitar uma nova grande depressão e o apelo ao autoritarismo que esse tipo de situação gera? Como evitar a atração do socialismo soviético?
O estado de bem estar social ou de seguridade social foi patrocinado por políticos de diversas orientações partidárias nos diversos países da Europa e dos Estados Unidos. A política do universalismo, que ofereceu à classe média o mesmo acesso a serviços públicos destinados aos pobres, comprometeu-as com as instituições liberais. Foram as classes médias desempregadas e empobrecidas que primeiro apoiaram o fascismo. Elas se tranformaram no esteio da democracia liberal (Francis Fukuyama em texto denominado The Future of History se pergunta se a democracia liberal sobreviverá com o declínio da classe média causado pela globalização).
Mas o tempo passou. E a geraçào que entrou na universidade na década de 1960 só conhecia os horrores do entre guerras de ouvir falar. Eles "só conheceram um mundo de chances maiores, serviços médicos e educacionais generosos, perspectivas otimistas de mobilidade social e - acima de tudo, talvez - uma sensação de segurança indefinível, mas onipresente." Para Judt, o conflito de gerações na década de 1960 transcendeu as questões de classe e nacionalidade. Em função da televisão, dos rádios portáteis e da internacionalização da cultura popular uma grande brecha se abriu entre a geração dos anos 1960 e a geração dos seus pais. A palavra de ordem da época era o individualismo: "a afirmação da exigência pessoal de liberdade privada maximizada e irrestrita para exprimir desejos autônomos, que fossem respeitados e institucionalizados pela sociedade como um todo". Os objetivos comuns da geração anterior foram substituídos por objetivos privados. "Na verdade, muitos radicais dos anos 1960 eram defensores entusiasmados de escolhas impostas, quando elas afetavam povos distantes que pouco conheciam. Em retrospecto, chama a atenção a imensa quantidade de pessoas, na Europa e nos Estados Unidos, que proclamavam seu entusiasmo pela revolução cultural de Mao Tse Tung, ditatorial e unificadora, enquanto definiam a reforma cultural doméstica como a maximização da autonomia e da iniciativa privada".
O autor julga que o marxismo, que era mais retórico do que real,  encobria uma postura egoísta da esquerda nessa época: o movimento estudantil estava mais preocupado com o horário do fechamento do portão das universiades e com usar roupas menos formais nas aulas do que com as condições sociais dos trabalhadores.
Judt esclarece de onde vêm as ideias econômicas que prosperam no mundo atual. Os economistas da Universidade de Chicago as retiraram dos textos de economistas da Europa central: Friedrich Hayek, Joseph Shumpeter, Karl Popper e Peter Drucker, entre outros. Esse teóricos se dedicaram a responder a mesma questão de Keynes - como a Europa liberal afundou, dando lugar ao fascismo. Mas deram uma resposta bastante diferente: o único caminho para defender o liberalismo e a sociedade aberta era manter o estado fora da vida econômica. Eles previram o fracasso do estado de bem estar social e, por muito tempo, seus pares (todos emigraram para o ocidente) julgavam que haviam cometido um erro de cálculo. Foi quando o estado social começou a enfrentar dificuldades que eles obtiveram uma plateia.
Na sequência, Judt analisa como essa geração, ao chegar ao poder na década de 1980, desmontou o estado de bem estar social. Fala da privatição descontrolada e usa como exemplo o sistema ferroviário inglês que foi privatizado na era Thatcher. O resutado é um sistema caro, ineficiente, que tem que ser subsidiado pelo Estado e é o mais inseguro da Europa ocidental. Aqui ele levanta a questão dos custos sociais, culturais e ambientais que devem ser levados em conta, juntamente com os econômicos.
O autor considera que uma das piores consequências da demolição do serviço público é a crescente dificuldade de compreender o que temos em comum com as outras pessoas. Por isso, a instituição ícone de nossa época é o condomínio fechado, "símbolo do reconhecimento descarado do desejo de se isolar de outros membros da sociedade, assim como reconhecimento formal da incapacidade ou omissão do Estado (ou do município) em impor sua autoridade sobre um espaço público contínuo".  Judt julga que essa perda do senso de interesses em comum não é restrita a propietários ricos: nos Estados Unidos estudantes judeus ou afro-americanos muitas vezes optam por morar em dormitórios exclusivos, comer sepradamente e se matricular em cursos étnicos.
O que fazer diante desse quadro? Tony Judt diz que não podemos esquecer o passado, viver como se o século XX não tivesse existido. Ele defende abertamente o fortalecimento do papel do Estado, ainda que reconheça a ineficiência do mesmo em diversas esferas. E  diz que temos que começar a falar sobre todas essas coisas. Por isso, escreveu o livro.
O mal que ronda a terra foi publicado em fevereiro de 2010. Tony Judt faleceu precocemente em agosto do mesmo ano. É uma pena não poder mais contar com seu texto lúcido e coerente. Felizmente, ele deixou uma vasta obra e, principalmente, ideias.

Feliz Ano Novo!

A musa do departamento

A musa do departamento (junho 1843-agosto 1844) segunda história de "Os parisienses da província".

Personagens: Milaud de La Baudraye; Diná Piédefer; Senhora Piédefer; senhor de Clagny (procurador do Rei); senhor Gravier; Visconde de Chargeboeuf (subprefeito); padre Duret; baronesa de Fontaine; Estevão Lousteau; Horácio Bianchon; Visconde de Chargeboeuf; senhor Cardot; Felícia Cardot; Senhora Cardot; Bixiou.

Nessa história acompanhamos a vida de Diná Piédefer, uma jovem bela e dotada de inteligência singular, mas desprovida de um dote atraente. Seu pai faleceu em 1819, deixando a mãe e Diná com 12 anos. O padre Duret ajudava a mãe e obter um noivo para filha, quando surgiu o bem mais velho e nada instigante senhor de La Baudraye, nobre recente, mas muito ambicioso da cidade de Sancerre. Casaram-se em 1824, Diná com 17 anos e La Baudraye com 44.
Diná logo organizou um salão, onde mostrava seus dotes culturais. Em torno dela, reuniu-se um círculo de admiradores: o senhor de Clagny, o senhor Gavier, o Visconde de Chargeboeuf e o jovem Visconde de Chargeboeuf.
Com o tempo, porém essa musa do departamento começou a se aborrecer com a mediocridade da vida provinciana. Teve um choque quando recebeu a visita de Ana, baronesa de Fontaine, colega da época do colégio. Viu a diferença entre ela, uma mulher provinciana, e a elegância da parisiense. Sob um pseudônimo, começou a escrever versos. Um poema, Paquita, a sevilhana, fez muito sucesso. Com o tempo, sua identidade foi descoberta.
Em 1836, Diná recebeu em seu castelo duas celebridades conterrâneas: o doutor Horácio Bianchon e o escritor e jornalista Estevão Lousteau. Depois de alguns dias, Diná e Estevão tornaram-se amantes. O cínico Lousteau, que havia armado a história com Bianchon, passou uma temporada em Sancerre e, após, retornou a Paris. Lá retomou a sua vida boêmia e suas atrizes. Em dificuldades financeiras, pensou em casar. Enquanto isso, Diná lhe escrevia cartas apaixonadas que ele sequer lia. Recebeu uma oferta para desposar a senhorita Felícia Cardot, que havia dado um mau passo e o pai, o tabelião Cardot, fez uma bela proposta para que Estevão aceitasse a moça. Nesse momento, Diná chegou à casa de Estevão em Paris e declarou que estava grávida. Havia deixado de La Baudraye e queria viver com o escritor, apesar das terríveis consequências. Estevão, num primeiro momento ficou apavorado. Após, pensando na idade avançada do marido de Diná e na bela herança, resolveu assumi-la. Viveram por seis anos e tiveram dois filhos.
Em 1842, de La Baudraye, muito mais rico, conde e par de França procurou a esposa e propôs que ela voltasse para Sancerre. Aceitando ou não sua oferta, ele levaria os “seus filhos” quando atingissem a idade de seis anos. Diná aceitou e deixou Estevão.
No final, em 1843, Diná esperava mais um filho.
Narrativa tipicamente balzaquiana, com abertura histórica - antecedentes familiares de de La Baudraye e Diná e muitas idas e vindas. Um escritor menos hábil se perderia facilmente. Não Balzac. Vamos do salão provinciano de Diná aos versos de Paquita, a sevilhana. Vamos do sarau de Diná com os “parisienses” à vida boêmia de Estevão de volta à capital. Vamos do crescimento da paixão de Diná por Lousteau ao seu lento, mas certo, declínio.
O ponto alto do romance é justamente o desvanecer da paixão. Balzac fez (é está expresso no texto) uma paródia do romance Adolfe de Benjamin Constant (por mim aqui resenhado).
Balzac aqui mostra aquela imparcialidade que o caracteriza (embora, por vezes, ele a abandone). A vida de Diná com de La Baudraye não a faz feliz, mas, com exceção de alguns momentos, tampouco a vida com Estevão. O retorno de Diná para Sancerre resolveu o problema social tornando-a, novamente, uma “mulher honesta”. Mas isso irá assegurar a felicidade? Ao final, temos a felicidade pragmática. Diná estava esperando mais um filho, mas não do marido. Seria de Estevão? Do fiel senhor de Clagny? Ou de outro?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Memórias de uma moça bem comportada

Memórias de uma moça bem comportada. Simone de Beauvoir. Rio de Janeiro: Nova Fonteira,1983. Tradução: Sérgio Milliet.

Lido em setembro de 2011.

Nunca pensei em ler uma biografia de Simone de Beauvoir. Mas duas coincidências me levaram a fazê-lo. Assisti, em agosto, a peça Viver sem Tempos Mortos na qual Fernanda Montenegro apresenta um monólogo a partir de textos das obras e a correspondência de Simone. Gostei muito de algumas passagens, a ponto de pensar como seria bom ter o texto da peça para ler. Algumas semanas depois, fui à biblioteca localizada no clube que frequento. É um biblioteca organizada com doações dos sócios, de modo que há muitos livros antigos. Encontrei o livro e abri na primeira página: “Nasci, às quatro horas da manhã, a 9 de janeiro de 1908, num quarto de móveis laqueados de branco e que dava para o Bulevar Raspali.” Quem resiste a esse início? 
Simone escreveu esse primeiro volume da sua autobiografia (houve diversos outros depois) aos quarenta e oito anos. Ouso dizer que se trata de uma biografia de “formação”. Como nos romances de formação, existe um ponto de partida e um ponto de chegada: esse último é a vida adulta., 
Os primeiros anos são dominados pela família: classe alta, mas não ricos; católicos, o pai , formalmente, a mãe, devota. Simone atribui muito mais influência ao pai do que à mãe em sua personalidade. Ele era um homem culto, gostava de literatura - organizava um caderno com recomendações de livros para Simone - e tinha uma paixão: representar. Simone comenta que ele não desprezaria os preconceitos do seu meio para abraçar uma carreira de ator. Desse modo, se realizava participando de montagens amadoras na casa dos amigos. A mãe era uma católica severa e devota. Simone dá  a impressão de viver um clima de animosidade com Françoise desde muito pequena. Ela atribui às diferenças entre seus pais a origem de seus pendores intelectuais: “(...)o individualismo de papai e sua ética profana contrastavam com a severa moral tradicionalista que mamãe me ensinava. Esse desequilíbrio que me impelia à contestação explica em grande parte que tenha me tornado uma intelectual.”
A religião católica ocupava um local importante na vida de Simone. Ela era devota e participava de todos os rituais: comunhão, novenas, retiros. Chegou a formular um plano secreto de se tornar freira. Mas um sermão do padre de sua igreja  que contava que uma menina que lera livros inadequados, ficou confusa e se suicidou perturbou sua fé.  Mais tarde ela relata a naturalidade da perda de sua fé. A Simone de quarenta e oito anos que escreveu, filosofou a respeito, mas a garota de quinze um dia deu-se conta de que deus não existia. 
A partir desse ponto, a vida de Simone vai se diferenciando da das mulheres de sua geração. Mas não sem percalços. O principal talvez tenha sido a paixão pelo primo Jacques e o sonho acalentado por anos de casar com ele. Aqui a Simone madura hesita em revelar que tenha cultivado tanto esse sonho. Mas a recorrência com que Jacques aparece no relato e o final demonstram que por pouco um dos casais mais famosos do século XX não teria existido. Na última parte do livro Simone declara querer tirar a limpo suas relações com Jacques. Quando ainda estava em um estranho namoro e após uma viagem de Jacques para a Argélia, Simone foi surpreendida pela notícia de que ele havia ficado noivo de uma moça que mal conhecia. Então ela conta que o casamento não deu certo e  que Jacques passou por uma enorme decadência financeira. Encontrou-o vinte anos depois, envelhecido, doente em função do alcoolismo, vestido como um mendigo e vivendo de favores. Ela nos conta que faleceu com quarenta e seis anos. 
Tudo bem que o leitor da biografia precisava saber do namoro de Simone com o primo e do desfecho. Mas a narrativa parece mais uma desforra: viram, ele casou com outra (não me quis) e vejam o que lhe aconteceu?! As feministas são mulheres como todas as outras. 
Teria muito para contar. A biografia é rica, densa. Há a decisão de estudar filosofia, a amiga Zaza, que faleceu aos vinte anos, uma incursão de nossa moça bem comportada pela vida boêmia na Paris dos anos 1920 e, bem no final, o encontro com Jean-Paul Sartre, que será desenvolvido no próximo volume. 
Gostei muito da leitura, pois me identifiquei com alguns pontos. Eu também tive uma educação católica e pensei em ser freira. E, por volta dos doze ou treze anos, deixei de acreditar em deus de uma forma natural. Não li nada, ninguém me falou nada, só passei a sentir que aquilo não fazia sentido. Eu também construí a minha identidade através da leitura e até hoje tenho uma paixão feroz por aprender. Muito do que ela falou sobre isso tem a ver comigo.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Ilustre Gaudissart

O Ilustre Gaudissart (Paris, 1837 *) - primeira história de "Os parisienses na província"

Personagens: Gaudissart, Jenny Courant, hospedeiro Mitouflet, senhor Vernier, senhora Vernier, senhor Margaritis, senhora Margaritis.

A história se passa em 1831.

O Ilustre Gaudissart é uma novela curta. Praticamente metade da narrativa é dedicada a fazer o retrato de Gaudissart, que é o de qualquer caixeiro-viajante, figura que surgiu na França na época em que Balzac escrevia a Comédia Humana. Um tipo superficial que possuía um simulacro de cultura, em geral, de acordo com o artigo que vendia e com seu público alvo.
Até 1830, Gaudissard comercializava apenas o Artigo-de Paris, ou seja, produtos industriais fabricados na cidade. Com a agitação política e financeira de 1830, resolveu diversificar seus negócios. Se dedicaria a vender seguros e assinaturas de jornais na província, sem deixar de lado o Artigo-de-Paris.
Os jornais eram Le Globe, fundado em 1824, que a partir de 1830 passou a divulgar as doutrinas de Saint-Simon; Le Movement, jornal republicano; e o Jornal dos Filhos, dedicado às crianças
A história propriamente dita se desenvolve em Tours. Gaudissart se despediu de sua namorada Jenny e ao chegar à capital da Touraine, local de pessoas desconfiadas e pouco dadas à novidade. Tentou, então, conquistar a confiança do senhor Vernier, figura importante da comunidade. Esse resolveu pregar-lhe uma peça, mandando-o conversar com o senhor Margaritis. Disse que Margaritis era uma pessoa muito influente na cidade e que, caso ele comprasse o seguro, todos comprariam. Ocorre que o italiano Margaritis era insano há muitos anos e era cuidado por sua mulher. Gaudissard foi até lá e entabulou uma conversa muito engraçada com o louco, não percebendo o engodo. Inclusive aceitou comprar dois barris de vinho de Margaritis, que na verdade ele nem possuía. Voltando à hospedaria de Mitouflet, descobriu que fora enganado e que toda a cidade estava rindo dele. Desafiou, então, Vernier para um duelo. No dia e hora de se baterem, fizeram as pazes e foram almoçar juntos.
Paulo Rónai diz na sua introdução que a história não é muito boa pela falta de talento de Balzac para o cômico. Apesar da conversa de Gaudissart com Margaritis ser engraçada, temos a impressão que ela poderia ter sido melhor trabalhada. Na verdade, o ponto alto da novela é o retrato de Gaudissad, o homem que, ao chegar em uma casa, deixava sua personalidade na porta de entrada.

Segundo o Visconde Spoelberch de Lovenjou, em Histoire des Ouvres de Balzac, essa data está incorreta. Deve ser substituída por 1833.

domingo, 27 de novembro de 2011

A Língua Absolvida

A Língua Absolvida. Elias Canetti. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução: Kurt Jahn.

Lido entre 17 de agosto e 12 de setembro de 2011.

Gosto muito de biografias. E não me importa muito se a história é da vida de alguém conhecido ou desconhecido. Sei, pois trabalho como historiadora, o quanto uma biografia pode ser distorcida, especialmente uma autobiografia. Mesmo assim gosto, ainda que reconheça que, via de regra, o que lemos é uma versão do que realmente aconteceu.
A Língua Absolvida me despertou a atenção, pois, além de uma biografia (é o primeiro volume de três), é originalmente escrito em alemão. Mas o que me fez levá-lo para casa, foi um detalhe: Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, era búlgaro de nascimento e sua língua materna não era o alemão, mas o ladino, língua dos judeus sefaradins. Considero um mistério um escritor tornar-se um mestre num idioma que não é o seu. Fiquei assombrada quando soube que Joseph Conrad aprendeu inglês depois dos vinte anos. Canetti aprendeu alemão ainda menino, mas, mesmo assim é algo fascinante A Língua Absolvida cobre o período de 1905, ano de nascimento de Canetti, a 1921.
O autor nasceu em Buschuk na Bulgária em uma grande família de judeus sefaradins. Da infância mais tenra se destacam as lembranças dos dois avós, o Canetti e o Arditti, a casa comunal com as empregadas búlgaras, a visão assustadora e irresistível dos ciganos e a “língua mágica”. Seus pais, quando não queriam ser compreendidos, falavam em alemão, que Canetti considerava uma língua mágica. Foi seu primeiro contato com a língua adotada que se tornaria a sua.
Quando tinha seis anos, seus pais se mudaram para Manchester na Inglaterra. Foi uma decisão de seu pai que queria escapar do jugo paterno. Resolveu ir tabalhar com um cunhado que tinha uma empresa na Inglaterra. O avô Canetti não aceitou a decisão e, ao perceber que era irreversível, amaldiçoou o filho diante de toda a família. O pai de Elias, Jacques, quando jovem, desejou tornar-se ator. Mas o velho Canetti impôs a ele um destino de comerciante. Eis que agora, aos trinta anos, com esposa e três filhos, ele iria viver por sua conta. Cerca de um ano depois, um dia, depois do café da manhã, Jacques Canetti teve um infarto e caiu morto na sala de jantar - a maldição se concretizara.
A família foi, então, residir em Viena. Na verdade, Elias ficou com a mãe, e os irmãos menores foram para um escola na Suíça. A mãe, Mathilde, que segundo Elias, até a morte do pai, não tinha muita importância, passou a ser a figura chave de sua infância. Ela ensinou-lhe alemão, a língua mágica, de forma brutal, mas funcionou. Eles passavam os serões discutindo obras literárias, especialmente teatrais. Elias relata algumas lembranças da guerra - os versinhos ofensivos que os colegas diziam sobre os russos e o quanto isso irritava sua mãe, uma pacifista ferrenha, o racionamento, as filas, o pão feito de estranhas mistura., um triste trem de refugiados.
Em 1916, foram para a Suíça. Lá a mãe trouxe os filhos para a casa e assumiu a rotina sem ajuda. Isso durou dois anos e então ela adoeceu - não tinha estrutura para criar três crianças sozinha.
Então, em 1919, Elias foi morar em uma pensão administrada por solteironas em Tiefenbrunnen na Suíça. Nesse período apaixonou-se por ciência e escreveu sua primeira obra literária. Faz um retrato riquíssimo de seus professores e de alguns colegas. Em maio de 1921, a mãe preocupada com o caráter do filho foi buscá-lo na escola para enviá-lo à Alemanha. Elias não queria ir, mas a mãe estava irredutível.
Se destaca nesse primeiro volume o retrato vívido e honesto de Mathilde. Ela aparece com todas as complexidades: como a mulher que despertava ciúme no marido; pacifista, extremamente afetada pela guerra, mãe recalcitrante, que queria, mas não conseguia cuidar dos filhos sozinha; leitora apaixonada e voraz; vaidosa; frustrada; agressiva. A passagem em que ele revela a fantasia de Mathilde de que um suposto famoso pintor que eles encontraram num hotel queria pintá-la faz com que mulher saia das páginas do livro e saia andando na nossa frente. O homem maduro que escreve a biografia compreendeu que a mulher que sua mãe foi abrira mão de uma vida própria pelos filhos - ela enviuvou jovem, poderia ter se casado novamente, se dedicado aos estudos. Ela se sacrificou, mas não conseguia esconder a frustração.
A história do pai que desejava ser ator, mas tornou-se comerciante, dá o tom do conflito vivido por Elias nesse período da vida. Ele estava se tornando um intelectual e a frase do pai ecoava em seu pensamento: “Você será aquilo que quiser ser. Você não precisará ser comerciante como eu e os tios. Você estudará e escolherá aquilo que mais lhe agradar”. Mas a mãe, também filha de comerciantes, após incentivar nele a leitura e a busca de conhecimento, o chama para a vida prática: “Quem lhe dará dinheiro para isso? (estudar)”. O conflito da vida do pai, chegou à do filho aos dezesseis anos

domingo, 20 de novembro de 2011

Um Conchego de Solteirão - terceira história de Os celibatários (novembro de 1842)

Volume VI: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Provinciana (lido entre 3 de dezembro de 2010 e 11 de julho de 2011).

Personagens: doutor Rouget, João-Jacques Rouget, Ágata Rouget, Bridau, Felipe Bridau, José Bridau, senhora Descoings (tia de Ágata), Florentina, Giroudeau, Maximiliana Hochon, senhor Hochon, Maxêncio Gilet, Francisco Hochon, Baruch Hochon, Fario, Flora Brazier, Fanchette, Horácio Bianchon, Bixiou.

Começo a falar sobre Um Conchego de Solteirão a me repetir. Se Balzac houvesse apenas produzido esse romance, ele já estaria entre os melhores. Temos aqui um romance em duas partes com núcleos diversos, tanto que Balzac mudou seu nome algumas vezes (pensou em A Gapuiadora e Os Dois Irmãos, mas optou por Um Conchego de Solteirão). A primeira parte discorre sobre a vida e o caráter dos irmãos Felipe e José Bridau. Felipe e José eram filhos de Ágata Rouget. Ágata e seu irmão, João-Jacques, eram filhos do doutor Rouget da cidade de Issoudun. O doutor, todavia, tinha sérias dúvidas sobre a paternidade de Ágata e enviou a filha a Paris para morar com os parentes da esposa, os Descoings. Ágata conheceu então Bridau, revolucionário girondino. Casaram-se, veio o Diretório e o Império e Bridau tornou-se homem de confiança de Napoleão. Tiveram dois filhos, Felipe e José, criados com facilidades no período napoleônico. Em 1808, Bridau faleceu precocemente. Ágata passou a morar com a tia Descoings e dedicar-se a criar os filhos. Felipe inclinou-se cedo às armas. Era belo e extrovertido, merecendo a preferência da mãe. José, o caçula, tinha pendores artísticos e cedo resolveu que seria pintor de quadros. A mãe desaprovava. Considerava a arte carreira pouco segura e desimportante. A comparação de José com o irmão era desvantajosa para o artista. José era feio, tímido e desajeitado. Desaprecia ao lado do solar Felipe. Enquanto José se instruía nas artes, Felipe ingressou no exército e foi ajudante-de-ordens de Napoleão na batalha de La Fère-Champenoise. Ao retornar à casa de mãe em 1814, depois da derrota de Waterloo, encontrou a família arruinada: a bolsa de estudos de José e a pensão da senhora Bridau haviam sido suprimidas: “Capitão aos dezenove anos e condecorado, Felipe, tendo servido como ajudante-de-ordens do imperador em dois campos de batalha, lisonjeava imensamente o amor próprio da mãe; assim, embora grosseiro, desordeiro, sem outro mérito além da vulgar bravura do soldado, parecia a seus olhos, um homem genial. Enquanto isso José, pequeno, magro, doentio, com uma fronte selvagem, amando a paz, a tranquilidade, sonhando com a glória artística, só lhe daria, segundo pensava, tormentos e inquietações”. Felipe então começou a mostrar seu caráter. Não trabalhava, passava nos cafés com outros oficiais bonapartistas e servia-se à larga da bolsa da mãe. Em 1817, convenceu Ágata a financiar uma desastrada viagem para os Estados Unidos para juntar-se ao Coronel Lallemand. Retornou em 1819 com dívidas que foram pagas pela estoica mãe. O coronel então entregou-se sem reservas a uma vida de farras. Tornou-se amante de uma dançarina e passou a roubar dinheiro da mãe, irmão e tia para gastar no jogo. Finalmente, roubou o dinheiro que a tia Descoings guardava para jogar na loteria. O número no qual a velha jogaria foi sorteado e ela morreu de desgosto. Ágata, então , o expulsou de casa. Ágata teve de arrumar um emprego e passou a viver modestamente com José, que trabalhava muito para dar à mãe uma existência mais leve. Felipe acabou preso, sob acusação de envolvimento em uma conspiração. Para libertá-lo, seria necessária uma quantia da qual Ágata não dispunha. Nesse ponto, a boa mãe recebeu uma carta da senhora Hochon, sua madrinha em Issoudun. Ela contava que Joâo-Jacques, irmão de Ágata, vivia com uma concubina que o tratava mal, e pretendia deixar toda a herança para a tal mulher, ignorando irmã e sobrinhos. E diz que Ágata devia ir imeditamente à terra natal. Ágata então partiu com José.
A ação se desloca para Issoudun, onde um novo grupo de personagens entra em ação. Há basicamente dois núcleos. A casa dos Hochon, onde Ágata e José ficaram hospedados e, defronte, a casa de Rouget. O talento de Balzac para criar personagens pérfidos é enorme. Na primeira parte, ele faz o terrível Felipe brilhar. Agora surgem Flora Brazier e Maxêncio Gilet. Flora é a tal gapuiadora quase deu o nome ao romance. Certa vez, Balzac viu uma menina no rio em Issoudun gapuaindo, ou seja, revolvendo a água com um galho de árvore para encaminhar os caranguejos para as armadilhas dos pescadores. É exatamente assim que Flora, aos doze anos, aparece na história. Em 1799, o doutor Rouget, pai de Ágata e João-Jacques, encontrou Flora no rio e, encantado com a sua beleza, levou-a para casa, dando uma pequena compensação ao tio da menina. Tudo indica que Rouget tinha intenções libidinosas para com a moça, mas morreu antes de concretizá-las. Flora então ficou na casa e tornou-se criada-amante de João-Jacques, a quem dominava completamente. Max Gilet é um temperamento gêmeo de Felipe Bridau. Contudo, ao contrário de Felipe, Max não teve boa estrutura familiar. Filho da esposa de um tamanqueiro, de beleza singular, com pai desconhecido, Max foi criado solto e alistou-se no exército para escapar de uma acusação de assassinato. Só teve algum brilho, porém, nos Cem Dias. Retornou a Issoudun e, assim como outros oficiais do Império, ficou ocioso. Organizou, então, um grupo de jovens, espécie de confraria, os Cavaleiros da Malandragem, que faziam estripulias de madrugada em Issoudun. Tornou-se amante de Flora que convenceu Rouget a deixá-lo a morar em sua casa. A ideia dos amantes era tomar a fortuna de Rouget e fugir. Assim, a chegada de Ágata causou um alvoroço na cidade. Flora não deixou que Ágata se aproximasse do irmão e José acabou falsamente acusado de tentar matar Max. Sem sucesso, eles retornaram a Paris. Eis que então Felipe retorna para a história. O coronel foi condenado a cinco anos de vigilância pela polícia política em uma cidade do interior da França. Desroches, tabelião e amigo da família, conseguiu que ele fosse para Issoudun e instiruiu-o a reaver a fortuna de sua família. Aconselhado por Desroches e por Hochon, Felipe, com sua astúcia, teve sucesso onde os bons Ágata e José não tiveram. Conquistou a confiança do tio, dominou Flora e matou Max em um duelo. Terminou por apressar a morte do velho Rouget e casou com Flora. Levou-a a Paris, onde incentivou nela o vício da bebida. Rico e com amigos influentes, prestou obediência aos Bourbon, subiu muito e aguardava a morte da mulher para desposar uma jovem nobre. Virou às costas à mãe e ao irmão. Acabou perdendo a maior parte de sua fortuna na bolsa. Voltou à ativa e foi para a Argélia, onde morreu em combate em 1839. Ágata faleceu convencida de que prefirira durante toda a vida o filho errado. E José prosseguiu sua carreira de pintor. Acabou ficando, por herança, com os bens que restaram de Felipe, bem como com seu título de nobreza, Conde de Brambourg.
É uma história complexa com personagens marcantes. Muito poderia ser comentado, mas destaco dois temas. Um deles, é a inadequação para a vida civil de temperamentos feitos para a guerra. Balzac conheceu isso muito bem. A França passou 25 anos em guerra quando iniciou o período da Restauração. Milhares de militares retornaram à vida civil apenas para descobrir que não serviam para ela. É o caso de Felipe e de Maxêncio. Homens que pela força, pela desenvoltura e destemor seriam heróis e protagonistas de feitos grandiosos, mas que, longe da espada, tornam-se golpistas mesquinhos e aproveitadores. Assim era o grupo de Felipe em Paris e de Max em Issoudun.
O outro tema é de caráter biográfico. A preferência de Ágata por Felipe em detrimento de José é a preferência de madame Balzac por Henry, seu caçula, em detrimento de Honoré. Anne Charlotte Laure Sallambier casou aos dezoito anos com Bernard-François Balssa (que depois se transformou em Balzac) de cinquenta. Foi um casamento arranjado e Balzac foi o primeiro filho do dever. Dez anos depois, nasceu Henry, filho do amor, que atendia pelo nome de Jean de Margonne (ele legou 200 mil francos em testamento a Henry). Madame Balzac sempre foi rígida e ríspida com o seu primogênito. O manteve fora de casa por quatro anos. Já com Henry, revelou-se uma mãe dedicada e amorosa. Pois, Balzac tornou-se famoso e conhecido, ao passo que Henry teve uma carreira errática nas colônias francesas, vindo a falecer em 1858 empobrecido nas ilhas Comores. Daí o paralelo entre Balzac e José. José também era artista e todos julgavam que escolhera mal a carreira, ao passo que o irmão, militar, parecia fadado à glória. Na época em que Balzac começou a escrever parecia muito mais provável que Henry fosse bem sucedido profissionalmente. Pois Balzac tornou-se mundialmente famoso e passou a sustentar a mulher que o preterira.
Na minissérie Balzac, na qual Gerard Depardieu faz um Balzac bem convincente, há uma cena ótima que resume esse drama. Balzac, com cerca de doze anos, está no colégio interno. Recebe a visita de sua mãe. O garoto corre feliz para abraçá-la. Uma sinistra Jeanne Moreau o afasta, alegando que ele não tinha boas notas, por isso não merecia carinhos. Fazia anos que ele não a via.

domingo, 13 de novembro de 2011

Comédia em tom menor

Comédia em tom menor. Hans Keilson. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Tradução: Luiz A. de Araujo.

Lido entre 9 e 12 de setembro de 2011.

Foi coincidência Hans Keilson ter falecido poucos dias antes de sua obra, Comédia em Tom Menor, ser lançada no Brasil. O interesse da Companhia das Letras pelo centenário escritor certamente nasceu com sua definição pela articulista do The New York Times, Francine Prose, em 2010, como um dos grandes escritores do mundo.
Keilson nasceu na Alemanha, mas se estabeleceu na Holanda. Judeu, integrou a resistência holandesa durante a Segunda Guerra. Farmacêutico e médico, uma de suas tarefas era visitar crianças judias que haviam sido separadas de seus pais. Essa foi a inspiração para a sua futura especialização em psiquiatria e por seu interesse em traumas de guerra. Seus pais morreram em Auschwitz.
Comédia em Tom Menor é uma novela breve a respeito do tema que ficou mundialmente famoso com o Diário de Anne Frank: as famílias que esconderam judeus durante a Segunda Guerra. 
A história se passa na Holanda. Um jovem casal, Wim e Marie, recebe a proposta de um um conhecido de abrigar um judeu em sua casa. Eles aceitam “cumprir seu dever patriótico” e recebem Nico, caixeiro-viajante, vendedor de perfumes. Determinam que o hóspede ficará em um quarto, do qual só sairá durante a noite. Alguns ajustes devem ser feitos, como reduzir o horário e as tarefas da faxineira para que ela não descubra o visitante. A irmã de Wim, Coba, uma das únicas pessoas que frequenta a casa, é comunicada e o casal se surpreende ao saber que ela também é uma ativista da resistência. Aos poucos se estabelece uma rotina entre os três, quebrada por alguns percalços - o peixeiro que chega na hora errada, a faxineira que surpreende Nico. 
Alguns meses depois, Nico pega uma gripe que se complica. O casal chama um médico conhecido que trata o hóspede. Mas ele piora e acaba falecendo. Wim e o doutor enrolam o corpo em um cobertor e o abandonam em um parque próximo, onde seria encontrado pela polícia e enterrado. Ocorre que Marie vestira o cadáver de Nico com um pijama de Wim e esqueceu de arrancar o número de registro da tinturaria. A polícia poderia descobri-los. Coba os aconselha a se esconder por um tempo. E eis que Wim e Marie assumem o lugar de Nico, se escondendo em uma pensão em uma cidade próxima. Alguns dias depois, o casal recebe a notícia de que o guarda que encontrara o corpo também era da resistência e eliminou a prova antes do chefe de polícia, nazista, chegar.  
Um trabalho de ficção que fale da resistência ao nazismo, por si só é interessante, já que é um tema pouco trabalhado na literatura. Wim e Marie são pessoas comuns, sem maiores opiniões políticas, pouco sabem sobre os judeus. Mas sabem que escondendo Nico e correndo risco de vida por isso, estão fazendo a coisa certa. 
Para mim, o tema principal do livro é mais universal do que a Segunda Guerra e o holocuasto: é o mistério da alteridade. É uma pena que Keilson não o tenha trabalhado melhor. O trecho em que Nico e Marie falam sobre os judeus está, para mim, ligado ao trecho em que o casal, confinado no esconderijo, se estranha mutuamente. “Não havia detectado em Nico absolutamente nada que lembrasse religião. Aliás, nenhum dos dois compreendia, embora o tivessem acolhido em casa, o que afinal era um judeu. Uma pessoa como outra qualquer. Mas... Mas o quê? Nada mais difícil do que lidar com a intimidade com um sujeito, mantê-lo tanto tempo na vida doméstica, sem acabar fazendo uma ou outra pergunta sobre sua vida. Isso não quer dizer que não surjam problemas repentinos e aí seja preciso traçar limites, enquanto esse não era o caso deles, no contato mais afetuoso, pois o tratavam com naturalidade. Mas os dois queriam muito saber por que Nico continuava sendo um judeu para eles. Não porque os outros diziam que ele era, certo? “ (...) Então, olhou para Marie. Também estava arredada na distância, quase inalcançável. Naquela postura, os braços rijamente colados ao corpo, as mãos entrelaçadas no regaço, solitária e cheia de dissabor, já não era sua mulher. Não havia vínculo entre eles. Wim a viu como se fosse pela primeira vez”. 
Receber um estranho em casa e conviver com ele, em situação de quase confinamento, é uma experiência de buscar o semelhante no estranho. Mas numa situação de guerra, de separação e morte iminente, talvez fique mais claro aquilo que a familiaridade do dia dia esconde - todos são estranhos diante da singularidade humana e os rótulos - judeu, árabe, brasileiro, gaúcho - talvez sirvam para aliviar o peso dessa constatação.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Cura de Tours - segunda história de Os Celibatários (abril de 1832)


Personagens: padre Francisco Birotteau, padre Troubert, padre Chapelaud, Sofia Gamard, Mariana (criada), senhora de Listomère, Barão de Listomère (sobrinho da senhora de Listomère), senhor de Bourbonne.

A história se passa entre 1826 e 1827.

Em Cura de Tours Balzac mostra ao leitor como é possível escrever uma história cheia de emoção e de paixão tendo quase nada como seu objeto.
Birotteau, vigário da igreja de São-Gatien, residia confortavelmente como pensionista da senhorita Gamard, uma circunspecta solteirona que, além de Birotteau, também hospedava o padre Troubert. Birotteau sucedera ao falecido padre Chapelaud na morada da solteirona Gamard. Chapelaud, que lá residira por 12 anos, havia dotado seus aposentos de mobília luxuosa, tapetes caros, quadros de pintores famosos e de uma biblioteca cheia de preciosidades. Birotteau invejou por anos aquele conforto até que, com a morte de Chapelaud, herdou as instalações do amigo. Além do conforto, Birotteau cobiçava a boa comida da senhorita Gamard e os serviços dedicados prestados por ela e pela criada Mariana. Birotteau, que tudo que almejava na vida era conforto e boa comida, estava no céu. Foi quando a senhora Gamard começou a cortar as suas regalias. Eram dois os motivos: Birotteau frustou seus intentos de formar um salão em Tours, ao preferir os serões em casa dos nobres Listomère; e Troubert desejava os aposentos. Sofia Gamard termina por aproveitar uma estada de Birotteau em casa da senhora Listomère para impedir o seu retorno. Convenceu-o a assinar uma desistência. O vigário desconhecia uma cláusula do contrato que dizia que em caso de desistência, a mobília ficaria com ela.
As manobras de Gamard e Troubert acarretaram, incialmente, solidariedade para com Birotteau. O Barão de Listomère ofereceu-se para atuar como seu advogado e sua tia passou a hospedá-lo. Somente o senhor de Bourbonne aconselhou Birotteau a se conformar com a situação. Foi quando o Barão teve negada uma promoção que era dada como certa para um posto da Marinha. Descobriu em Paris que isso ocorrera pela interferência de Troubert. Os Listomère capitularam e abandonaram Birotteau. O infeliz vigário acabou transferido para São Siforiano, arrabalde de Tours. Sofia Gamard faleceu e deixou tudo para Troubert.
É impressionante a habilidade de Balzac de criar conflito com essa trama. Acompanhamos com apreensão os sinais de que Birotteau estava perdendo o seu conforto. Nos exasperamos com a injustiça e a maldade da dupla de celibatários Gamard e Troubert.
Ele criou três personagens memoráveis. Birotteau é o padre gorducho, comilão, cuja maior aspiração é viver confortavelmente. Na noite em que começou a dar-se conta da má vontade de Gamard, “enquanto não vinha o sono, o bom vigário escavava inutilmente o cérebro e, sem dúvida, bem depressa lhe sentiu o fundo, para encontrar uma explicação para a conduta singularmente descortês da senhorita Gamard. Com efeito, tendo sempre agido muito logicamente de conformidade com as leis naturais de seu egoísmo, era-lhe impossível descobrir suas faltas para com a hospedeira. Se as coisas grandes são simples de compreender e fáceis de exprimir, as pequenezas da vida exigem muitas minúcias. Os acontecimentos que constituem, de certo modo, o prólogo deste drama burguês no qual, entretanto, as paixões se mostram tão violentas como se fossem excitadas por grandes interesses reclamavam esta longa introdução (...)”.
Gamard é uma solteirona do time da pérfida Sofia Rogron. Balzac odiava os celibatários em geral, mas odiava muito mais as solteironas do que os padres. Para ele, a existência da mulher estava visceralmente ligada ao amor e aos filhos. Uma solteirona, portanto, não tinha nenhuma serventia. E a amargura de não ter um homem com quem dividir a vida e filhos para criar tornava-as mesquinhas e más. No final, Gamard terminou sendo vítima também de Troubert que a detestava, a usou para afastar Birotteau e ainda ficou com todo o seu patrimônio.
Já Troubert é o padre sinistro. Balzac deixa claro que em outras épocas ele seria um Bórgia ou um Torquemada. Mas na época medíocre em que se passa a história, ele usou suas habilidades para roubar a mobília de um vigário da província.
O Cura de Tours é mais uma história adorável do mestre da Comédia Humana.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Pierrete - primeira história de Os Celibatários (novembro de 1839)

Personagens:  Jacques Brigaut, Pierrete Lorrain, Rogron, Sílvia Rogron, senhor Tiphaine, senhora Tiphaine, senhora. Lesourd, senhora Martener, senhor Martener (médico),senhora Auffray, senhor Auffray (tabelião), senhor Galardon, senhor e senhoraJulliard, Julliard (filho), senhor Desfrondrilles (arqueólogo), coronel Gouraud, Vinet (advogado), senhora Vinet (née Chargeboeuf), Adélia (criada), viúva Lorrain (avó de Pierrete) , senhora Celeste Habert (irmã do vigário), padre Habert, Frappier (empregador de Brigaut), Bathilde de Chargeboeuf, senhora de Chargeboeuf (mãe de Bathilde).

A história se passa entre 1827 e 1830.

Pierrete é, assim como Pai Goriot,  uma análise do mal. Nessa história, Balzac usou sua experiência na advocacia e em um tabelionato. Ele relatou em cartas a enorme quantidade de injustiças que presenciou em contato com o sistema legal. Há um processo na história. E Pierrete reflete também, pois foi escrita na mesma época, o envolvimento de Balzac na defesa de um advogado conhecido seu, Sébastien Peytel, que fora acusado de assassinar a esposa e um criado. Apesar dos esforços de Balzac, que chegou a escrever a Lettre sur le procés de Peytel,  o acusado foi condenado e executado. É um Balzac sombrio, portanto, que escreveu a história, caracterizada por ele, em carta para a condessa Hanska como “uma pérola suada no meio das minhas dores”.
Pierrete Lorrain era uma órfã bretã que após a morte precoce dos pais ficou aos cuidados dos avós em um asilo. Seus únicos parentes eram os primos Rogron, filhos de um hoteleiro de Provins, que, ainda bem jovens, foram enviados a Paris para trabalhar no comércio. Depois de alguns anos de trabalho, Sílvia e Rogron receberam a herança do pai e resolveram retornar a Provins e viver como burgueses. Nesse meio tempo, receberam uma carta questionando se não queriam ficar com Pierrete, já que a prima não tinha meios e estava vivendo com os avós em situação precária. Os Rogron, ao chegarem em Provins, reformaram a casa e fizeram esforços no sentido de integração com a sociedade local, dominada pelos Tiphaines. Considerados pouco refinados e desagradáveis, foram repelidos pelas famílias mais importantes. Isolados e levando uma vida vazia, resolveram “adotar” a prima. O coronel Gouraud e Vinet, liberais interessados no dinheiro dos Rogron, se aproximaram dos irmãos. Conseguiram convencer Rogron a financiar um jornal liberal para fazer oposição aos Tiphaine, que apoiavam os Bourbon. Pierrete chegou e logo percebeu que o motivo de sua adoção não fora afetivo. Os irmãos, e especialmente a solteirona Sílvia, a tratavam com frieza. A frieza logo se transformou  em crueldade. A criada Adélia foi despedida e Pierrete passou a fazer todo o serviço da casa. A menina já não era muito saudável e, aos poucos, ficava mais doente. A certa altura, Sílvia, que estava pretendendo casar com o coronel Gouraud, começou a desconfiar que ele estava interessado em Pierrete. Numa ocasião, surpreendeu um homem tentando se comunicar com Pierrete pela janela. Era o jovem Brigaut, companheiro de infância de Pierrete que viera da Bretanha. Mas a solteirona julgou que era o coronel e passou a perseguir e maltratar ainda mais a menina. A doença de Pierrete já era notada por todos. Mas Sílvia se recusava a chamar o médico. Vinet, querendo dominar os Rogron, arranjou o casamento de Bathilde de Chargeboeuf, prima de sua mulher, com o solteirão.
Brigaut, ao notar o estado lastimável de Pierrete, foi atrás de sua avó. A viúva Lorrain havia recebido um dinheiro que havia sido furtado de seu marido. Foi para Provins e retirou Pierrete da casa dos Rogrons. O caso se transformou numa disputa política. Os Tiphaine promoveram um processo contra Sílvia. Vinet, atuando como advogado, utilizava todos os subterfúgios do mundo jurídico (diligências, adiamentos, consignações, tudo bem conhecido de Balzac) para tornar o processo inútil. Pierrete morreu, apesar da vinda de Paris do nosso conhecido doutor Horácio Bianchon.
Em 1830, Vinet foi eleito deputado e os Tiphaine aderiram a Luís Felipe, passando então a frequentar o mesmo grupo. O processo não resultou em nada. O caso Pierrete foi esquecido e a história deturpada. Somente o Major Jacques Brigaut e o doutor Martener, que cuidou da menina, ainda lembravam da órfã.
Balzac mostrou em Pierrete novamente o seu talento de desenhar o caráter pela descrição. A descrição da decoração da casa dos Rogron em Provins evidencia a sua estupidez, a sua falta de personalidade e o vazio de sua existência. Igualmente se destacam na obra as intrincadas intrigas provincianas que Balzac conhecia tão bem.
O autor utiliza, além de sua experiência no mundo jurídico, uma dolorosa experiência pessoal. Os burgueses, nos séculos XVIII e XIX, enviavam seus filhos recém-nascidos para serem amamentados por camponesas. As crianças ficavam por vários anos morando nas casas de suas amas, algumas em outras cidades. Balzac explica isso como uma hábito das mulheres durante o Império: “As mulheres disputavam os heróis do império, e 99% da mães entregavam os filhos às amas-de-leite”. Balzac passou os primeiros anos da infância no povoado de Saint-Cyr, do outro lado do rio Loire, na cidade de Tours. Retornou à casa dos pais com quatro anos.  Ele escreve sobre os Rogron: “Amamentados no campo mediante baixa remuneração, as infelizes crianças voltaram para casa com a terrível educação aldeã: habituadas a gritar demoradamente, muitas vezes pelo seio da ama, que saía para o campo e os deixava encerrados num desses quartos escuros, úmidos e baixos que servem de moradia ao camponês francês”. Ele estava familiarizado com esses quartos.
Ao que tudo indica, Pierrete deveria ter um final feliz. A recuperação da fortuna pela avó encaminhava um desfecho favorável com a órfã vivendo ao lado dela e futuramente desposando Brigaut. Além disso, a história era um presente de Balzac para a menina Anna Hanska, filha de Eveline. Foi  a morte de Peytel na guilhotina em 28 de outubro de 1839 que conferiu ao romance o acento pessimista.
Todavia, não esqueçamos que o pessimismo é uma característica de Balzac. Os bons e inocentes sofrendo e os maus e interesseiros triunfando aparecem em toda a Comédia Humana. É a justiça maniqueísta, como em Alberto Savarus,  que parece sempre forçada vindo da pena de Balzac.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Adolphe

Adolphe (French Edition) Benjamin Constant. [Kindle Edition].

 

Lido em junho de 2011.

Meu conhecimento sobre Benjamin Constant se limitava à leitura, na época da faculdade, do ensaio Sobre a liberdade dos antigos comparada a dos modernos. Foi Balzac quem me levou ao Benjamin Constant escritor de ficção.
Na obra A Musa do Departamento, Balzac cita diversas vezes a novela Adolphe. Ele faz do romance entre Diná e Losteau uma reedição do caso de Adolphe e Ellenore.  A obra me interessou e, graças ao Kindle, obtive o texto original na hora em que decidi lê-lo.
Me surpreendi com a riqueza e profundidade da novela que trabalha um tema difícil: o fim do amor -  não o fim abrupto, mas o fim gradual, durativo, cansado.
Adolphe era um jovem de 22 anos que havia terminado seus estudos na Universidade de  Gotinghan. Ele então instalou-se no principado de D. Levando uma vida frívola, sem um objetivo definido, Adolphe tornou-se confidente de um jovem que, depois de idas e vindas, conquistou uma dama da sociedade. Os relatos do amigo aguçaram a curiosidade de Adolphe. Neste meio tempo, ele travou conhecimento com o conde de P, um homem de quarenta anos conhecido de seu pai. O conde vivia com sua amante, uma bela polonesa, há dez anos, e tinha com ela dois filhos. Adolphe considerou Ellenore “digna” de ser por ele conquistada. Depois de lutar contra a própria timidez, o jovem, aproveitando uma viagem do conde de P, escreveu uma carta se declarando para Ellenore. Recebeu uma resposta amável, mas negativa. Ellenore viajou deixando Adolphe desesperado e excitado por sua recusa. Com o retorno da amada, ele conseguiu marcar um encontro. “Eu me sentia, pela primeira vez, realmente apaixonado. Não era a esperança de sucesso que me fazia agir: a vontade de ver a minha amada, de desfrutar de sua presença, me dominava exclusivamente” 1 . Adolphe se submeteu às exigências de Ellenore - somente visitá-la em companhia de outros, nunca falar de amor - exigências que, já nos primeiros dias, foram fexibilizadas. Logo, os dois estavam apaixonados. “O amor é nada mais que um ponto luminoso, e, apesar disso, parece se apoderar do tempo. Em alguns dias ele ainda não existia, logo, ele não mais existirá; mas, enquanto existe ele reflete sua claridade sobre a época que o precede, bem como sobre a que o segue”2. Ellenore se entregou. “Triste o homem que, nos primeiros momentos de uma ligação amorosa, não acredita que essa ligação será eterna!” 3.
O conde de P teve de se ausentar durante seis semanas, tempo que os amantes passaram inteiramente juntos. Adolphe então começou a se incomodar com a insistência de Ellenore em controlar seus passos e temer comprometê-la. “Ellenore era, sem dúvida, um grande prazer em minha existência, mas ela não era mais um objetivo: ela se tornou um lugar” 4. Começou a ficar claro para o jovem que a ligação não poderia durar. No momento em que o conde de P já começava a suspeitar, o pai de Adolphe pediu que ele retornasse à França. Ele conseguiu, depois de Ellenore implorar, permanecer por mais seis meses. Nesse momento, eles tiveram a primeira de muitas discussões raivosas e graves. Finalmente, Ellenore deixou o Conde de P e seus dois filhos. Adolphe retornou para a França, com a promessa de se reunir a Ellenore dois meses depois. Nesse ponto, ele já estava seriamente arrependido. Ellenore foi ao seu encontro e o casal foi viver em uma pequena cidade da Boêmia. Nesse momento, Adolphe já tinha consciência de que não mais amava Ellenore. Além disso percebia que estava perdendo seu tempo, deixando de investir em uma carreira e de levar a vida de um jovem de sua idade e posição social. Mas consumia-se pela culpa, já que a amante deixara tudo por ele. O rapaz chegou a escrever uma carta revelando a verdade. Mas, diante de uma cena de Ellenore, ele disse que o que escrevera não era verdadeiro. O casal então foi morar em uma das propriedades do pai de Ellenore perto de Varsóvia. Lá, Adolphe encontrou o barão de T, amigo de seu pai, que o convenceu a romper a incômoda relação. Ellenore interceptou uma carta de Adolphe para o barão, revelando seus planos e sua decisão de deixá-la. Ellenore, então, adoeceu e, depois de uma longa agonia, faleceu. Antes, pediu a Adolphe que queimasse uma carta sua sem ler.  Adolphe prometeu, mas rompeu a promessa. “Por qual piedade bizarra você não ousa romper uma ligação que lhe pesa, e decidiu ser infeliz enquanto sua pena o retém? (...) O que exige? Que eu lhe deixe? Não vê que não tenho força? Ah! É você, que não ama mais, é você que tem de encontrar essa força (...)”5.
É impressionante que este texto já tenha quase duzentos anos. Uma das razões para esta atualidade é a remoção de todas as circunstâncias irrelevantes e a manipulação do essencial com o objetivo de dar relevo ao problema principal. Nesse sentido, Constant é um anti-Balzac. Balzac apresentaria Ellenore descrevendo a sua casa, o seu quarto. Em Adolphe, não há cenários, as personagens coadjuvantes são quase somente nomes, poucos dados informam que estamos no início do século XIX.
Ellenore é uma mulher de posição social insegura: é amante de um nobre, mas ele mesmo a faz lembrar de que é menos que uma esposa. E aqui, representando todas as mulheres, está em busca de segurança, de solidez. Adolphe é um jovem que perdeu a mãe quando criança e foi criado por um pai distante e cínico. E, no lugar de todos os homens, busca uma conquista fácil: uma mulher mais velha (uma mãe) de situação irregular. O conflito se instala, uma vez que Adolphe, uma vez tendo obtido a sua presa, se cansa: Ellenore deixou de ser um objetivo para ser um lugar. E Ellenore, depois de resistir, acha que encontrou o homem de sua vida. Assim ela tenta prendê-lo com sua doçura, com seus sacrifícios - ela perdeu o companheiro, deixou os filhos, abriu mão de bens. Ele fica cada vez mais incomodado com o seu assédio, com ela controlando seus horários, seus passos. Ao mesmo tempo se sente culpado: ele nada pediu, mas ela tudo deu. A solução do conflito é a morte de Ellenore. E sua carta deixa implícito que ela estaria pronta a aceitar a separação de Adolphe se este tivesse sido honesto com ela.
Pesquisando sobre Adolphe, descobri que no tempo em que a novela foi publicada, houve grande especulação para saber quem era quem na história. Constant até publicou um prefácio destacando o caráter fictício do texto.
Adolphe foi publicado em 1816 quase simultaneamente em Paris e Londres. Benajmin Constant tinha uma vida amorosa conturbada e discutida nos círculos mais elegantes.
Ao que tudo indica, a mulher mais velha  a que Adolphe se refere no início do texto, que faleceu, foi Madame de Charrière, com quem Constant teve um caso aos 19 anos - ela tinha 46. Em 1788, Constant casou-se com Minna von Cramm. O casamento não deu certo e eles se separaram por volta de 1788. Em 1793, ele conheceu Charlotte von Marenholz. Sua história com Charlotte, com quem se casaria em 1811, foi contada na novela Cecile. Foi em 1894 que Constant conheceu a mulher cuja biografia ficou para sempre ligada à dele: Germaine de Staël. Entre idas e vindas, eles estiveram juntos até 1811, quando ele casou com Charlotte. Além do romance, eles tiveram uma fecunda parceria intelectual, tendo escrito vários textos juntos. Acredita-se que Albertine, filha de Staël que nasceu em 1797, fosse filha de Constant.  Staël era uma mulher de personalidade forte e muito dominadora. Quando Constant estava em sua propriedade, Germaine controlava os horários de saída e chegada do amante e muitas vezes saía de carruagem à procura dele, cena descrita em Adolphe.
Houve ainda Anna Lindsay, que o escritor conheceu em 1800. Ela era cinco anos mais velha que ele (tinha 38 anos) e vivia com um amante há onze anos com que tivera dois filhos. Anna quis deixar o companheiro e filhos para viver com Constant.
Percebemos assim que Ellenore é uma amálgama de Anna, Charlotte e Staël. Sua biografia era a de Anna. A história da aproximação e do idílio amoroso correspondia ao seu romance com Charlotte. E as brigas, as reconciliações passionais, as promessas, correspondiam ao seu relacionamento conturbado com Staël.  Ele de fato quis deixar Germaine muitas vezes e até teve oportunidades, mas acabava voltando atrás.
A obra de Bejnamin Constant me recordou uma outra paixão trágica da literatura: Anna Kariênina e o conde Vrónski. A história da crise que levou Anna ao suicídio é muito semelhante à de Adolphe e Ellenore. A diferença é que Tólstoi trabalha com o contexto e com uma galeria extensa de personagens, ao passo que Constant isola o problema.
Depois que Anna deixou o marido, ela e o conde foram viajar pela Europa juntos. “Vrónski (...) apesar da plena realização daquilo que tanto havia desejado, não era inteiramente feliz. (...) Nos primeiros tempos, logo depois de se unir a Anna e adotar trajes civis, sentiu todo o encanto da liberdade em geral, que antes não conhecia, e também da liberdade do amor, e ficou satisfeito, mas não por muito tempo. Logo sentiu que em sua alma se esguiam os desejos de desejos: o tédio”. Anna percebeu e logo começou a angústia pelo medo que Vrónski deixasse da amá-la. “E, embora estivesse convencida de que a frieza começava, mesmo assim ela nada podia fazer, era impossível alterar por pouco que fosse suas relações com Vrónski. Exatamente como antes, só por meio do amor e do encanto ela podia segurá-lo. E, assim como antes, graças aos afazeres durante o dia e à morfina durante a noite, ela conseguia abafar os pensamentos terríveis sobre o que aconteceria se ele deixasse de amar”. A sequência foram as cenas de ciúmes, as reconciliações, o arrependimento de Vrónski simultâneo ao seu sentimento de culpa e o suicídio. Será que Tólstoi conhecia Adolphe?
O encanto de Adolphe está justamente em descrever tão bem uma situação que não é muito explorada pela literatura - como é não estar apaixonado numa situação de romance. Benjamin Constat, ao que parece, entendia do assunto. 

As citações de Tólstoi são da edição da Cosac Naify de 2005, com tradução de Rubens Figueiredo. 

Je me sentais, de la meilleure foi du monde, véritablement amoreaux. Ce n’était plus l’espoir du succês qui me faisait agir: le besoin de voir celle que j’amais, de joir de sa prësence, me dominait exclusivement.
L’amour n’est qu’un point lumineux, et néanmoins il semble s’emparer du temps. Il  y a peu de jours qu’il n’existait pas, bientôt il n’existera plus; mais, tant qu’il exist il répand sa clairté sur l’époque que l’a précédé, comme sur celle qui doit le suivre.
3 Malheur à l’homme qui, dans les premiers moments d’une liason d’amour, ne croit pas que cet liason doit être éternelle!
4 Ellenore était sans doute um vif palisir dans mon existence, mais elle n’était plus un but: elle était devenue un lien. 
5 Par quelle pitié bizarre n’osez-vous rompre un lien qui vous pêse, et déchirez vous l’être malheureux près qui votre pitié vous retient? (,,,) Qu’exigez vous? Que je vous quitte? Ne voyez-vous pas que je n’en ai pas la force? Ah! c’est à vous, qui n’aimez pas, c’est à vous à la trouver, cette force (...). 


sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Eugênia Grandet (setembro de 1833)


Personagens: Grandet, Senhora Grandet (née Bertellière); Eugênia; C. de Boufons (sobrinho do senhor Cruchot); senhor Cruchot (notário); Padre Cruchot; senhor de Grassins; senhora de Grassins; Adolfo de Grassins; Nanon (senhora Cornoiller depois de casar); Carlos Grandet; Anete (amante de Carlos); senhorita d'Aubrion (noiva de Carlos).

A história começa em 1819 e termina por volta de 1829.

Paulo Rónai nos conta que Eugênia Grandet foi o primeiro sucesso de público e crítica de Balzac. Foi escrito em um período especial: entre o primeiro encontro com Eveline Hanska em Lausanne, quando se conheceram pessoalmente, e o segundo, em Genebra, quando se tornaram amantes. Foi, portanto, um apaixonado Balzac que escreveu a história do amor fiel e exaltado da provinciana Eugênia Grandet.
A fórmula do início é tipicamente balzaquiana e nossa conhecida: um retrato da família Grandet na cidade de Samur. A descrição da sala da casa Grandet nos conta quase tudo sobre a família que a habita. E aí aparece o personagem que ofusca a heroína: o tanoeiro Grandet. Ele passava os dias fazendo negócios lucrativos e as noites encerrado no quarto contando seus milhões. E apesar das vultosas quantias entesouradas, submetia esposa e filha a uma vida no limite da sobrevivência: “Durante quinze anos, todos os dias da mãe e da filha haviam decorrido placidamente naquele lugar, em constante trabalho, desde abril até novembro. No dia 1º deste último mês elas se transferiam para junto da lareira, a fim de passar o inverno. Somente nesse dia Grandet permitia que se acendesse o fogo na sala. E o fazia apagar a 31 de março, indiferente ao frio dos primeiros dias da primavera e do outono”.
A austera casa Grandet era frequentada por dois grupos: os Cruchots e os Grassins.  O sobrinho do senhor Cruchot, presidente do tribunal de primeira instância de Samur, o o jovem Adolfo de Grassins aspiravam à mão da rica Eugênia. Grandet, que não pretendia dar a filha a nenhum dos dois, jogava com esses interesses para obter favores e aumentar sua fortuna.
O equilíbrio foi rompido pela chegada de Paris do sobrinho de Grandet, o belo Carlos. O rapaz, um típico dândi parisiense, vestido na última moda e já dotado de uma amante casada, chegou a Samur, enviado pelo pai, irmão do velho avarento. Carlos trouxe uma carta fechada na qual o pai contava a Grandet a sua falência, a desgraça de seu nome na praça em Paris e anunciava o seu suicídio. Pedia a Grandet que ajudasse o sobrinho. Grandet conseguiu, utilizando os serviços de des Grassins, suspender a falência do irmão. E preparou a viagem de Carlos para as Índias. Nesse meio tempo, o romance. Eugênia e Carlos se apaixonaram: juraram amor eterno e a moça emprestou ao amado grande quantia de dinheiro que guardava. Carlos partiu. Grandet, ao descobrir o sumiço do tesouro da filha, ficou fora de si. Trancou-a no quarto a pão e água. O desentendimento entre pai e filha agravou a enfermidade da senhora Grandet, que veio a falecer. No final de 1827, aos oitenta e três anos,  foi a vez do velho Grandet.  Antes, iniciou Eugênia nos mistérios da enorme fortuna. Eugênia, já nas casa dos trinta, esperava por Carlos. Seus pretendentes continuavam a frequentar a casa, mas cada vez mais desanimados. Em 1828, Carlos retornou. Refizera a sua fortuna, mas esquecera a prima. Logo arranjou um casamento de conveniência com a senhorita d’ Aubrion, uma jovem sem fortuna e atrativos, mas com pais bem relacionados e com a partícula. Ao ser interpelado por des Grassins para pagar as dívidas do pai e reabilitar seu nome, recusou-se a fazer dizendo que adotaria o nome do sogro. Eugênia, ao saber de tudo, fez um acordo com o juiz Cruchot: se casaria com ele, mas seria um casamento de fachada. Em troca ele deveria procurar o primo, devolver seus pertences e quitar a dívida do tio. Carlos descobriu tarde demais o quão rica era a prima. E Cruchot, que utilizou seus conhecimentos jurídicos para fazer um acordo matrimonial desvantajoso para Eugênia, foi apanhado pela fortuna: faleceu pouco tempo depois do matrimônio. Eugênia, ao final, estava sozinha.
Entende-se o sucesso de Eugênia Grandet. Mesmo sem o toque de gênio de Pai Goriot, o romance tem tudo o que Balzac sabe de melhor fazer. Em primeiro lugar, os personagens. Grandet é um dos grandes avarentos da literatura. Balzac conseguiu criar um avarento humano, bem menos caricatural que Gobsek. Ele distribuía pela manhã os víveres para o dia, obrigando a criada, a mulher e a filha a contrabandear comida. Mas seu amor pela filha e sua devoção pela esposa eram reais e o faziam, muitas vezes, fraquejar.
Eugênia é mais uma versão da virgem francesa de Balzac, a jovem que passa a viver quando descobre o amor. Surpreende, contudo, ao casar com Cruchot e humilhar o primo, pagando suas dívidas. E é encantador ver como ela trazia o velho Grandet dentro de si. Depois da morte do pai, ela manteve os mesmos hábitos avarentos. Ela só não era considerada avara na comunidade por seus trabalhos e doações para caridade.
A criada Nanon é uma forte personagem de apoio. Humilde e orgulhosa, comparsa e opositora das rabugices de Grandet. Acabou casada, como uma boa burguesa, após a morte do patrão. São muitos exemplos da incoerência orgânica que é a prova inequívoca da vida real.
Um segundo ponto, são as intrigas que Balzac consegue articular tão bem, sobretudo na província. As visitas do cruchonistas e grassinistas à casa Grandet atrás do ouro de Eugênia garantem os momentos cômicos do romance. Só que aqui as tramoias não roubam a cena, como em Úrsula Mirouët. Elas fazem um bom pano de fundo para ação que começa com a chegada de Carlos.
Finalmente, o amor segundo Balzac. O amor de Eugênia é totalmente idealizado. Ela se apaixonou pelo primo, à primeira vista, e devotou sua vida a esperá-lo praticamente sem conhecê-lo. O Carlos que aparece em 1828, é bem diferente do rapaz que chorou por dias a morte do pai. Em duas deliciosas páginas que Rónai denomina de “educação sentimental” de Carlos, surge um homem frio, calculista, envolvido em negócios nada morais, como tráfico de escravos. Ele era, afinal, um Grandet. A solução de Balzac poderia ter sido um casamento infeliz com Carlos, como o de Augustina Guillaume.  Um final feliz com Carlos, como o de Adelaide, em A Bolsa. Um casamento feliz com Cruchot, como o de Modesta Mignon (que se apaixonou por Canalis, mas escolheu  la Brière). Balzac escolheu um fim pragmático. Um casamento de fachada com Cruchot, para contentar a comunidade, e a viuvez precoce. Balzac apaixonado parecia pensar que se ama somente uma vez na vida. Mas no final, ele diz que Eugênia ainda poderia vir a se casar.