quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Modesta Mignon (julho de 1844)

Personagens: Simão Babylas Latournelle (notário), senhora Latournelle, Exupério Latournelle, João Butscha, Dumay, senhora Dumay, Carlos Mignon (duque de La Bastie), sra. Mignon (Betina Wallenrod), Modesta Mignon, Betina Carolina Mignon (falecida em 1827), Jorge d´Estourny (sedutor de Betina), Vilquin, Gobenheim (banqueiro), Canalis (Constante Ciro Melchior), Ernesto de la Brière, Duque d´ Herouville.
A história se passa em 1829.
Modesta Mignon encerra o volume I da Comédia Humana. Aqui somos apresentados a uma das especialidades de Balzac: fazer retratos minuciosos da vida provinciana. Balzac ambientava suas histórias em diferentes locais da França para cultivar leitores em toda parte. Modesta Mignon se passa no Havre na região da Bretanha.
Antes de comentar a história, é preciso conhecer o aporte autobiográfico do romance. Balzac recebia centenas de cartas de seus leitores e, especialmente, de suas leitoras. No início de 1832, o escritor recebeu uma carta postada em Odessa e assinada por "Estrangeira". Assim, iniciou a sua correspondência com a condessa polonesa Eveline Hanska que se tornaria sua amante e, depois, sua esposa. Em 1844, Eveline, já viúva e noiva de Balzac, escreveu de Wierzchownia na Ucrânia uma carta em que sugeria ao noivo a ideia para a historia de Modesta Mignon. Uma jovem envia cartas ao seu poeta favorito. Todavia, quem responde é seu secretário e a moça se apaixona pelo secretário julgando ser ele o célebre artista. Detalhe: as primeiras cartas de Eveline foram respondidas por Zulma Carraud, amiga de Balzac. Ele só passou a escrever para Hanska após a terceira carta. E, não por acaso, Modesta Mignon, era um pouco estrangeira: sua mãe era alemã.
Já no início, Balzac põe o leitor a prova com uma descrição longa e minuciosa. Estamos em 1829 e Carlos Mignon, rico comerciante do Havre que perdera a fortuna, estava em viagem procurando reconstruir seu patrimônio. Deixou no Havre a esposa, alemã, e as duas filhas, Betina e Modesta. Betina fora seduzida por um corsário e abandonada, tendo falecido logo após. Modesta, filha preferida de Carlos, era, portanto, vigiada e guardada com a vida pelo fiel amigo de seu pai, Dumay. A vigilância, contudo, era física e não intelectual. Modesta lia avidamente literatura inglesa, francesa e alemã. Balzac, lido principalmente por mulheres, julgava a literatura perigosa para moças. Lembram-se de Augustina Guillaume? Foram as leituras às escondidas que a guiaram à paixão desastrada. Um dia, Modesta resolveu escrever uma carta ao seu poeta preferido, o senhor de Canalis. Quem recebeu e respondeu a missiva foi seu secretário, Ernesto de La Brière. Passaram a trocar cartas. Assim, Modesta se apaixonou por La Brière julgando ser ele Canalis. Nesse meio tempo, Carlos Mignon retornou com fortuna maior do que antes possuía. Modesta tornou-se uma rica herdeira. A impostura de Ernesto foi descoberta pelo dedicado pai. Canalis, por seu lado, ao saber que sua admiradora era muito rica, ficou interessado. Carlos Mignon resolveu então que Modesta deveria conviver com Canalis e La Brière para ver qual dos dois mais lhe agradava. O Duque d´Herouville também participaria da corte. Após um começo no qual Canalis levou a melhor, ficou evidente para Modesta as diferenças de caráter entre os pretendentes. La Brière era um jovem inteligente, esforçado e estava muito apaixonado, ao passo que Canalis era um dândi, um tanto pedante, em busca de uma esposa rica que sustentasse seus luxos em Paris. Modesta fez, então, a escolha certa.
O desfecho de Modesta Mignon contrasta com o de Ao Chat-qui-Pelote e Memórias de Duas Jovens Esposas. Por que Balzac não fez Modesta casar com Canalis e amargar a infelicidade como Augustina e Luísa de Chaulieu? Segundo Paulo Rónai, porque Modesta é, de certa forma, Eveline Hanska. Mas julgo que haveria contradição se Modesta casasse com Canalis e fosse feliz com ele. Modesta apaixonou-se pela poesia de Canalis, mas escolheu racionalmente La Brière. Talvez Balzac não fosse exatamente contra o amor romântico, mas favorável a escolhas racionais para a vida a dois.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A Bolsa (maio de 1832)

Personagens: Hipólito Schinner, Adelaide de Leisegneur, Baronesa de Rouville, cavaleiro Du Halga, conde de Kergaroüet, Francisco Souchet.

A história se passa no reinado de Luís XVIII, ou seja, entre 1815 e 1824.

A Bolsa é um conto mal acabado de Balzac. Longas descrições, uma situação de suspense e um final feliz muito forçado.

O jovem e promissor pintor de quadros Hipólito Schinner instala seu ateliê no último andar de um velho prédio. Distraído, caí de uma escada e desmaia. Ao acordar, está na presença de suas vizinhas que, ao ouvir o barulho da queda, o socorrem. Trata-se de uma bela jovem, Adelaide de Leisegneur, e de sua mãe, a baronesa de Rouville. No dia seguinte, Schinner vai ao apartamento das vizinhas agradecer pela ajuda. Eis o ponto alto do livro, a descrição do apartamento: "Para um observador, havia um não sei quê de desolador no espetáculo daquela miséria, que se assemelhava a maquilagem duma mulher velha que ainda quer se dar ares de moça". É a descrição que lança a ambiguidade sobre a vida de Adelaide e de sua mãe: eram elas simples mulheres que viviam em uma pobreza decente após um passado de riquezas? Ou eram mulheres de caráter duvidoso? Balzac aponta o tempo todo para a segunda hipótese. O nome da filha diferente do da mãe. Os cavalheiros idosos, Du Halga e conde de Kergaroüet, que frequentavam o apartamento, e as liberdades que tomavam com Adelaide que para Hipólito ora pareciam as de um pai, ora não. A avidez da baronesa pelo jogo. E, finalmente, o desaparecimento da bolsa de Hipólito com quantia considerável de dinheiro. O desfecho é decepcionante. Após alguns dias de dúvidas e sofrimento, Schinner descobre que Adelaide subtraíra sua bolsa para substituí-la por outra feita por ela. E o pintor é informado de que o conde de Kergaroüet, apiedado da difícil situação financeira da baronesa, perdia voluntariamente no jogo para ajudá-la, já que ela se recusava a aceitar dinheiro.

Balzac poderia ter deixado alguma ambiguidade no conto. Paulo Rónai chama a atenção, na introdução, para o alinhavo da história do jogo. O autor lança tantas sombras sobre o caráter da heroína, que o desenlace é totalmente insatisfatório. No início da história ele diz: "Nenhum pintor de costumes se animou, talvez por pudor, a nos iniciar na intimidade de certas existências parisienses, no segredo dessas moradias de onde saem tão frescas, tão elegantes toilletes, mulheres tão brilhantes que, exteriormente ricas, deixam em tudo os sinais de uma fortuna equívoca". Eis uma tema que Balzac trabalharia com maestria. Mas em A Bolsa ficamos só com a expectativa.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

A Revolução de 1989 – A queda do Império Soviético


Lido entre 4 e 21 de setembro de 2010

Existe uma enorme diferença entre estudar episódios históricos dos quais temos lembranças e, dos quais não temos. Explico: Victor Sebestyen, jornalista húngaro que escreveu A Revolução de 1989 – A queda do Império Soviético, situou o seu relato entre 1978 e 1989. Assim, tenho memórias relacionadas aos personagens ou fatos dessa história. Ter a história relacionada a nossa memória pessoal faz muita diferença.

Como quase a totalidade das crianças da minha geração, cresci com medo de uma guerra nuclear. Quando tinha sete ou oito anos e estudava numa escola católica, pedia nas minhas orações antes de dormir que os presidentes dos Estados Unidos e da União Soviética não apertassem o botão. O mundo comunista, ou o pouco que chegava dele para nós, era objeto de medo e fascínio. Lembro das Olimpíadas de Moscou em 1980. Víamos pela televisão as ginastas perfeitas dos países comunistas. Os adultos nos diziam que aqueles jovem vencedores eram separados dos pais ao nascerem e o Estado definia o que eles deveriam fazer. O que poderia ser mais aterrorizante para uma criança do que a perspectiva de ser separada dos pais? Nós morríamos de medo. Lembro do funeral de Leonid Brejnev em 1982. Da beleza sinistra dos soldados marchando em passo de ganso.

Victor Sebestyen faz uma reportagem histórica, ou seja, ele não analisamuito os fatos: narrou em ordem cronológica os acontecimentos mais importantes. E se ate maos países da famosa cortina de ferro: Polônia, Hungria, Tchecoeslováquia, Romênia, Bulgária, Alemanha Oriental e, naturalmente, a União Soviética. Ele sublinhou as diferenças entre o comunismo implantado nos países e como essas diferenças se refletiram na sua queda.

Também há uma ênfase nas biografias. O Papa Joâo Paulo II, Ronald Reagan, Lech Walesa, Mikhail Gorbachev, Nicolai Ceuscescu, Vaclav Havel são protagonistas, com uma queda explícita do autor por Reagan e Gorbachev. Reagan é apresentado como um idealista, um homem cujo maior desejo era acabar com a guerra fria. Sebestyen diz que ele não revelava o que realmente pensava e que tinha ferrenhos embates com seus assessores linha-dura. Chega a dizer que Reagan não revidaria em caso de ataque soviético, o que é muito difícil de acreditar. Gorbachev é apresentado como um inteligente soldado do comunismo que ocultou por muito tempo suas ideias liberalizantes para colocá-las em prática ao chegar ao poder. Não queria, de forma alguma, acabar com o comunismo, mas reformá-lo. Por outro lado, não pretendia manter mais a zona de influência soviética, de modo que nem cogitou intervir em nenhuma das revoluções de 1989. Aparece como uma personalidade cativante, inspirada, mas um pouco inseguro e nada organizado. Selbestyen revelou algo que pode ser adivinhado por aqueles que conhecem o que aconteceu com a União Soviética após 1989: Perstroika e Glasnost eram só palavras, não havia um plano por trás.

O ano de 1989 é narrado praticamente mês a mês. Um dos destaques é para a queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989 que foi motivada por um erro de Günter Schabowski em uma entrevista coletiva. O funcionário do partido comunista foi anunciar uma lei que permitia a saída dos alemães orientais pelos postos de fronteira. Era uma medida de urgência para solucionar o êxodo de alemães pela Hungria e Techecoeslováquia que vinha ocorrendo. Peguntado por um jornalista americano quando a regra passaria a valer, Schabowski respondeu "imediatamente". Isso gerou a enorme aglomeração nos postos junto ao muro que provocou a sua queda no início da madrugada.

Os eventos na Romênia dão o tom dramático. Lá, praticamente não havia oposição organizada. O ditador Nicolai Ceuscescu era temido e reverenciado, embora odiado pela maioria da população. A revolução foi desencadeada por incidentes na cidade de Timisoara, na Transilvânia. A repressão e os boatos espalhados levaram o ditador a organizar um comício em Bucareste para mostrar que estava no poder e que nada iria mudar. Quando discursava, as vaias começaram e Ceuscescu saiu dali praticamente em fuga. Foi formada uma frente de Salvação Nacional. Em todo país, oficiais da Securitate, polícia secreta do regime, passaram a atacar: foram 1104 mortes em toda a Romênia. A solução foi o julgamento e a condenação a morte de Ceuscescu e de sua esposa, Elena. Em 25 de dezembro de 1989, o casal mais temido do país foi julgado, de forma totalmente irregular, e enfrentou o pelotão de fuzilamento.

Victor Sebestyen não esconde seu profundo ódio ao comunismo. Sua análise das personalidades é um tanto maniqueísta: comunistas maus/anti-comunistas bons. Figuras como Vaclav Havel e Lech Walesa aparecem somente com qualidades. Ele chega a dizer que as acusações de infidelidade conjugal contra Walesa eram fofocas, que ele era fiel a sua esposa Danuta! Como Sebestyen sabe?

Mas o autor consegue, com um relato cronológico, prender a atenção do leitor do início ao fim. É uma leitura obrigatória para quem gosta de história recente ou quer testar sua memória afetiva.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Memórias de Duas Jovens Esposas (1841)

Personagens: Luísa de Chaulieu, Renata de Maucombe, Miss Griffith (governanta de Luísa), Filipe (criado de Luísa), duque e duquesa de Chaulieu, senhor de l´Estorade, Luís de l´Estorade, Barão de Macumer (Felipe Henarez), senhor de Canalis, duque de Rethore (Afonso, irmão de Luísa), dançarina Túlia, Duque de Sória, Maria Herédia, duquesa de Mafrigneuse, Henrique de Marsay, Maria-Gastão, Daniel D´Arthez, José Bridau.
A história inicia-se em 1822 e termina em 1839
Em Memórias de Duas Jovens Esposas, Balzac utiliza a forma espistolar para narrar a evolução da amizade de Luísa de Chaulieu e e Renata de Maucombe depois que elas saem do convento. Após uma adolescência de sonhos compartilhados, cada amiga seguirá seu caminho. E Balzac usa esses caminhos, totalmente distintos, para trabalhar um tema que já havia aparecido em Ao "Chat-qui-pelote": o casamento por amor versus o casamento de conveniência, com o segundo levando a melhor.
Renata sai do convento diretamente para o casamento com Luís de l´Estorade, um ex-prisioneiro das guerras napoleônicas, precocemente envelhecido e muito circunspecto. Luísa vai brilhar na sociedade de Paris. Lá conhece Felipe Henarez, professor de espanhol, por quem sei apaixona. Após um namoro cavalheiresco, quase medieval, ela descobre que Felipe é uma exilado político e Barão de Macumer. Se casam em estado de profunda paixão. Enquanto isso, Renata tem três filhos com Luís: Armando, Atenais e Renato. Luís torna-se nobre e, com a ajuda de Renata, obtém bons cargos no governo. Luísa não engravida e, após alguns anos de felicidade, Macumer morre. Cinco anos depois, Luísa, viúva, casa-se com o jovem e pobre poeta Maria-Gastão. Para proteger seu amor excessivo e ciumento, isola-se com Gastão em um chalé fora de Paris. Depois de um tempo, desconfia da fidelidade do marido que surpreende com uma mulher em Paris. Antes de saber por Renata que a mulher era a cunhada viúva que Gastão ajudava em segredo, Luísa, desesperada, provoca uma tuberculose e morre.
Há aqui dois contrastes: a vida escolhida por Renata e a vida escolhida por Luísa, e o primeiro e o segundo casamento de Luísa. Assim como Virgínia foi melhor sucedida que Augustina em Ao"Chat-qui-pelote", Renata, que parece vítima no início da história, termina feliz, mãe de três lindas crianças e ao lado de um homem de quem se orgulha. Luísa, após um romance de livro, com um homem belo e rico, termina, como sugere Balzac, "causando" a morte do marido pelo enfado produzido pelo amor. Em uma carta, escreve-lhe Renata: "(...) tu não o amas. Antes de dois anos te cansarás dessa adoração. Nunca verás em Felipe um marido, e sim um amante, do qual sem a menor preocupação farás teu brinquedo (...). Não, ele não se impõe a ti, não lhe tens esse profundo respeito, esta ternura cheia de temor, que uma verdadeira amante dedica àquele que vê como um Deus". É, nas palavras de Paulo Rónai, um amor inspirado. E Balzac, ao acrescentar o segundo casamento de Luísa, o contrasta com o amor sentido. Luísa ama Maria-Gastão muito mais do que ele a ama. Ela está aqui no lugar de Felipe de Macumer. Mas o romance é igualmente mal sucedido. É a tese muito repetida por Balzac de que o casamento exclui o amor e a paixão destrói o casamento.
Outro ponto interessante de Memórias de Duas Jovens Esposas são as descrições minuciosas das situações relacionadas à maternidade: o parto, a amamentação, as doenças dos filhos. Aqui Balzac utilizou sua vasta correspondência e longas estadas em casa de Zulma Carraud, que foi uma espécie de modelo de Renata. É impressionante que um homem do século XIX, que não teve filhos (ao que tudo indica, teve uma filha, mas não acompanhou seu crescimento), soubesse de tudo aquilo! Balzac, definitivamente, entendia de mulheres.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Na pior em Paris e Londres


Lido entre 28 de agosto de 3 de setembro de 2010.

Nunca mais vou entrar em um restaurante sem pensar em George Orwell.

Na Pior em Pais e Londres enquadra-se hoje na categoria jornalismo literário. Todavia, na época em que foi publicado, 1933, não se enquadrava em coisa nenhuma. Tanto que seu autor, Eric Arthur Blair, após ver seu manuscrito rejeitado por duas vezes, mandou que uma amiga o jogasse fora. Essa sábia mulher, a brasileira Mabel Sinclair Fierz, enviou o material a um agente literário e salvou Na Pior em Pais e Londres para a posteridade.

O jovem Blair, filho de um funcionário do império britânico na Índia, apesar de não ser rico, foi educado nos melhores colégios da Inglaterra. Aos 19 anos, ingressou na polícia colonial britânica na Birmânia. Tomado de ódio ao imperialismo, abandonou o emprego e resolveu conhecer a pobreza de perto. Viveu quase dois anos em Paris trabalhando como plongeur, lavador de pratos, em um hotel de alto padrão e, após, em um restaurante. Depois, rumou para Londres onde viveu como mendigo nas ruas e em albergues públicos.

É essa experiência que está relatada em Na Pior em Pais e Londres. Blair poderia somente contar suas desventuras e o livro já seria interessante. Mas ele é um analista, um pensador. Reflete sobre o que observa, busca o que está por trás da miséria, da fome, do desespero que vivenciou.

Para mim, o ponto alto do livro é a descrição do trabalho no Hotel X. Blair foi lavador de pratos lá e descreveu como um antropólogo o ambiente e as relações de trabalho. Havia uma hiererquia rígida entre os funcionários e um código não escrito seguido estritamente por todos. Da mesma forma, Blair identificou a dignidade ligada ao trabalho, mesmo aos pior remunerados e mais vis. " Não obstante, por mais que estejam por baixo, os plongeurs também demonstram um tipo de orgulho. É o orgulho do burro de carga – o homem que suporta qualquer quantidade de trabalho. Nesse nível, o mero poder de trabalhar como um boi é a única virtude alcançável".

A parte engraçada (e para quem vai a restaurantes, de humor negro) é a descrição da sujeira da cozinha e da falta de higiene com que as caras refeições servidas aos fidalgos no salão eram preparadas. Algumas passagens são nauseantes. "Por exemplo, quando um bife é levado para a inspeção do cozinheiro-chefe, ele não o manuseia com um garfo. Ele pega a carne com os dedos e joga-a de volta no prato, passa o polegar ao redor do prato e o lambe para experimentar o molho (...), depois o empurra carinhosamente para o lugar com seus dedos gordos e rosados, os quais já lambeu cem vezes naquela manhã. Quando se dá por satisfeito, pega um pano e limpa as suas digitais do prato e o passa para o garçom. E o garçom, claro, mergulha os seus dedos no molho – os dedos asquerosos e engordurados que está sempre passando pelos seus cabelos cheios de brilhantina. Sempre que alguém paga mais do que, digamos dez francos por um prato de carne em Paris, pode ter certeza de que ele foi manuseado dessa maneira". E há coisa piores. Blair diz que a sujeira é inerente aos hotéis e restaurantes, pois a comida saudável é sacrificada em nome da pontualidade e apresentação.

Na parte referente a Londres, é bastante interessante a descrição sobre a rotina dos mendigos que circulavam nos albergues públicos. As leis contra a vadiagem impediam que se pernoitasse dois dias seguidos no mesmo local, o que obrigava os indigentes a caminharem quilômetros em busca de outro local para dormir e receber uma reação que mal garantia a sobrevivência. E a óbvia observação sobre o desperdício de energia e dinheiro que a circulação de um exército de mendigos pelo país representava.

Há também no livro uma deliciosa galeria de tipos: o garçom russo, o culto grafiteiro inglês, o mendigo Paddy e muitos outros.

Ao final, diz Blair: "Ainda assim, posso apontar duas ou três coisas que definitivamente aprendi vivendo duro. Nunca mais vou pensar que todos os vagabundos são patifes bêbados, nem esperar que um mendigo se mostre agradecido quando eu lhe der uma esmola, nem ficar suspreso se homens desempregados carecem de energia, nem contribuir para o Exército da Salvação, nem empenhar minhas roupas, nem recusar um folheto de propaganda, nem me deleitar com uma refeição em um restaurante chique. Já é um começo."

Quando foi acertada a publicação do livro, Blair resolveu escolher um pseudônimo: "Não tenho uma reputação a zelar, e se o livro fizer sucesso, poderei usar o pseudônimo novamente". Eric Arthur Blair escolheu George Orwell.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Baile de Sceaux (dezembro de 1829)

Personagens: conde de Fontaine; filho 1: magistrado; filho 2: tenente-general; filho 3: diretor de uma administração municipal de Paris; filha 1: casou com o recebedor geral, senhor Planat; filha 2: casou com o barão de Villaine; filha 3: Emília; Clara Longueville, Maximiliano Longueville, Augusto Longueville, conde de Kergarouët; pretendentes de Emília: senhor de Beaudenord, senhor de Manerville, senhor de Rastignac, visconde de Portenduere, senhor de Marsay.
A história inicia em 1815 e termina em 1825.
O Baile de Sceaux é uma história curta e, vista superficialmente, ingênua. É a história da jovem orgulhosa que é punida por seu orgulho. Todavia, para o leitor atual, O Baile de Sceaux é uma dessas obras que descreve, de forma detalhada e elucidativa, a fusão entre norbreza e burguesia no período da Restauração.
O Conde de Fontaine, pai da heroína Emília, era um herói da Vendéia que sobreviveu ao Terror e à corte de Napoleão aos nobres. Manteve-se fiel aos Bourbons. Sua devoção, contudo, passa a ruir com a nova ordem que se estabelceu após o Congresso de Viena. Fontaine, que resistira ao casamento com uma rica burguesa, para desposar a empobrecida, mas alta aristocrata senhorita de Kergarouët, percebe que a solução é colocar seus rebentos "como bichos-da-seda sobre as folhas do orçamento". Conseguiu cargos públicos para os filhos e, com respeito às filhas, adaptou-se: "As pessoas sensatas admirar-se-ão do velho vendeano ter dado sua primeira filha a um recebedor geral que, embora possuísse algumas terras senhoriais, não tinha o nome precedido da partícula, à qual o trono devera tantos defensores, e a segunda a um magistrado muito recentemente ´embaronizado` para que pudesse fazer esquecer que o pai vendera lenha".
Ocorre que a caçula, a bela Emília, não aceitava casar-se senão com um nobre de escol, um par de França. Rejeitou diversos bons pretendentes e fez seus pais desisitirem de arrajar seu casamento.
Numa primavera, Emília vai para a casa de verão de sua irmã na pequena cidade de Sceaux, próxima a Paris. Em um baile campestre, ela avista Maximiliano Longueville dançando com sua irmã, Clara, e fica impressionada com o rapaz. Eles se conhecem e inicam um namoro que dura três meses, acompanhado de perto pelo conde de Kergarouët, tio de Emília. Nesse tempo, a moça não consegue descobrir se seu amado é nobre, embora sua educação isso indique. Um dia, resolve procurá-lo num endereço que consta em um cartão que Maximiliano deixou com o conde de Fontaine. Emília encontra Maximiliano atendendo o balcão em uma loja de tecidos. Ela foge horrorizada. Descobre que Maximiliano, filho de Guiraudin de Longerville, renunciou a sua fortuna em favor do irmão mais velho, Augusto. Emília, despeitada e incapaz de se desculpar, casa-se com o velho tio, o conde de Kergarouët. Dois anos depois, infeliz e amargurada, encontra Maximiliano em um baile, que, tendo perdido o pai e o irmão, tornou-se par de França.
Paulo Rónai, na introdução ao Baile de Sceaux, chama a atenção para algo que aparece em outros textos de Balzac: a introdução é muito longa e o desfecho muito rápido, como se o escritor não tivesse paciência para conduzir a história. Ela foi escrita em 1829 e o ápice criativo de Balzac viria quatro ou cinco anos depois.