sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Ao "Chat-qui-pelote" (outubro de 1829)


Volume I: Estudos de Costumes – Cenas da Vida Privada (lido entre 16 de setembro e 5 de outubro de 2009)

Personagens: Senhor e senhora Guillaume (née Chevrel), Virgínia, Augustina, José Lebas, Teodoro de Sommervieux, senhor Roguin (notário) e esposa (prima da senhora Guillaume), Raubordin, César Birotteau (perfumista) e esposa, senhor Camusot (comerciante de sedas) e senhor Cardot (sogro de Camusot), duquesa de Carigliano, general d´Aiglemont.

A história inicia em 1810 e termina em 1813.

Ao "Chat-qui-pelote" tem um começo típico de Balzac: a minuciosa descrição de uma casa de comércio de tecidos localizada na Rua São Diniz e denominada "Chat-qui-pelote". Lá trabalhava e morava a família Guillaume. O senhor Guillaume, que sucedeu a seu sogro, senhor Chevrel, sua esposa e as duas filhas, Virgínia e Augustina. Virgínia, um retrato da sisuda e trabalhadora mãe. Augustina, uma sonhadora e linda rapariga que lia, às escondidas, romances que seus pais não aprovariam. Havia também três caixeiros, dos quais o primeiro, o órfão e sem fortuna João Lebas, nutria uma paixão por Augustina, embora o patrão planejasse casá-lo com Virgínia.

Mas nossa história começa com um ser estranho a esse ambiente observando a loja: Teodoro de Sommervieux, jovem pintor já famoso, que se apaixona, à primeira vista, por Augustina. Inspirado pelo amor, Sommervieux pinta duas telas: uma imagen do interior do "Chat-qui-pelote" e uma retrato de Augustina. As obras, expostas, causaram sensação no famoso Salão de Paris. Augustina, ao ir à exposição com a senhora Roguin, conheceu o pintor apaixonado e o casal iniciou um namoro secreto. Com a intermediação da senhora Roguin, após alguma resistência da família, é combinado o casamento de Augustina e Sommervieux. Lebas, que já havia pedido a mão da moça, contenta-se com Virgínia. Ocorre que em Balzac não existe "felizes para sempre". A partir do casamento, Balzac começa a trabalhar um tema que lhe é caro: a incompatibilidade social. Augustina era uma pequeno burguesa, criada para viver como a mãe, entre agulhas e tecidos. Sommervieux era um boêmio que circulava nos elegantes salões parisienses, dado aos prazeres da vida e do espírito. "Ela marchava terra a terra na vida real, ao passo que ele tinha a cabeça nas nuvens". Após três anos de casamento, Augustina e Sommervieux eram estranhos que mal se toleravam. Augustina, desesperada em salvar seu casamento, procura a duquesa de Carigliano, suposta amante de Sommervieux. Ela lhe dá lições pragmáticas e cínicas a respeito do amor: "Nós mulheres devemos admirar os homens de gênio, gozá-los como um espetáculo, mas viver com eles, nunca!". Finalmente, mostra a Augustina e lhe restitui seu famoso retrato, que recebera de Sommervieux na tentativa de cortejá-la. Ao ver o quadro com Augustina, Sommervieux se descontrola e o destrói. Ao final, somos informados de que Augustina morreu aos 27 anos.

Nessa narrativa curta, de cerca de 45 páginas, conhecemos muito da literatura de Balzac. A técnica de apresentar um cenário, descrevendo-o minuciosamente para que ao final o leitor conheça perfeitamente o aporte cultural dos personagens que circularão nele, é repetida em muitos romances. Ao fim da descrição, estamos familiarizados com a mentalidade pequeno burguesa de Augustina.

Quanto aos temas, há dois que também aparecem reiteradamente e que nessa história estão entrelaçados. Um é a já mencionada incompatibilidade social. Quando Augustina, em crise com Sommervieux, procura sua família encontra Virgínia vivendo em harmonia com João Lebas, ocupando o lugar que era de sua mãe. Virgínia não conheceu os arroubos da paixão, mas garantiu uma existência segura. Outro tema é a difícil convivência com os artistas. Sommervieux, assim como Balzac, era um artista. O gênio exige de quem o acompanha muitos sacrifícios. É possível que o próprio Balzac tenha tido experiências de incompatibilidade com as mulheres em razão das noites em claro, das dívidas, dos planos mirabolantes.

Ainda uma curiosidade. Balzac, para dar maior verossimilhança aos romances da Comédia Humana inseria personagens reais nas obras. Nesta, é Anne-Loius Girondet (1767-1844), famoso pintor da época, que aparece conversando com Sommervieux.

Enfim, Ao "Chat-qui-pelote" é uma excelente entrada a essa farta, mas fina refeição que é a Comédia Humana.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um Homem Apaixonado

Lido entre 6 e 18 de agosto de 2010.

Martin Walser é um escritor muito conhecido na Alemanha, não só por sua obra de ficção, mas também como ensaísta. Aos oitenta e três anos, ainda se mantém ativo. É espantoso que somente agora, em 2010, um título seu tenha sido lançado no Brasil: Um Homem Apaixonado, pela editora Planeta.

Walser envolveu-se numa grande polêmica em 1998, quando, ao discursar na cerimônia de entrega do Prêmio da Paz dos Livreiros Alemães, desabafou a respeito da instrumentalização da culpa alemã em relação ao Holocausto para causas do presente e desvinculadas da preservação da memória. O líder da comunidade judaica da Alemanha, Ignatz Bubis, acusou Walser de descaso para com a memória dos judeus e ambos debateram publicamente a questão por um tempo. Walser, todavia, era insuspeito. Em 1960 ele assistira aos denominados "julgamentos de Auschwitz" que ocorreram em Frankfurt, quando funcionários nazistas foram julgados sob a resposabilidade do governo da República Federal Alemã. Em 1965, ele escreveu Unser Auschwitz, um interessante ensaio sobre os julgamentos.

Walser possui uma produção literária sólida que remete à década de 1940.

Um Homem Apaixonado, de 2008, destoa um pouco do conjunto da sua obra. O homem apaixonado em questão é ninguém menos do que Johann Wolfgang von Goethe. É um romance baseado em um fato real: a paixão do Goethe, aos 73 anos, pela jovem Ulrike Von Levestzow, de 19. O ano era 1823, e Goethe, uma celebridade mundial, reencontra na estação de verão de Marienbad a viúva Amalie Von Levestzow com as três filhas, Amalie, Bertha e Ulrike. Goethe, que já conhecia Ulrike dos três verões enteriores, apaixona-se por ela, chegando a pedi-la em casamento. Ele passa os dias esperando para vê-la, naquele estado irreal dos apaixonados, que Walser descreve com maestria. Aqueles nadas que podem fazer da vida do enamorado um deleite ou um inferno. O deleite é a promenade com a jovem, à vista de todos, as conversas espirituosas, o baile à fantasia no qual, sem combinar, comparecem caracterizados como Werther e Lotte. O inferno é a consciência da diferença de idade, tornada concreta quando Goethe cai ao tentar acompanhar o passo rápido da moça. E a presença de um senhor De Ror, rico comerciante de jóias que corteja Ulrike. O verão termina. A viúva Von Levestzow recusa polidamente a mão da filha. Ulrike retorna para o internato em Estrasburgo e Goethe para a vida de celebridade em Weimar. Escreve cartas para Ulrike, fictícias, e a Elegia de Marienbad, considerada um de seus poemas mais pessoais. E Goethe luta para esquecer um amor não correspondido como o mais comum dos mortais.

Houve um rumor na imprensa alemã, quando do lançamento de Um Homem Apaixonado, de que a obra refletiria uma experiência pessoal de Martin Walser com uma mulher mais jovem. Ele nunca falou sobre o tema.

O livro me lembrou, embora distante no tempo e espaço, Fantasma sai de Cena, de Philip Roth. Numa Nova Iorque pós 11 de setembro, Nathan Zuckermann, escritor famoso, luta contra o câncer e apaixona-se por uma jovem. Goethe e Zuckermann (e Walser?) enfrentando o envelhecimento físico diante da vitalidade espiritual. Um link interessante.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A Comédia Humana

No ano passado resolvi ler toda a Comédia Humana de Honoré de Balzac. Toda. Os dezessete volumes. Já estou no quinto. Postarei no blog o resumo e meus comentários para cada história.
Balzac é conhecido por um de seus piores romances, A Mulher de Trinta Anos. Mas foi um dos escritores mais fecundos de todos os tempos. São centenas de romances. E, com exceção dos trabalhos dos anos de juventude. de pouca qualidade, quase todos estão agrupados nesse monumento literário que é a Comédia Humana.
Em 1833, Balzac, já então um escritor prolífico, teve uma ideia brilhante que mudou a história da literatura ocidental: perpetrar o retorno das mesmas personagens em diversos romances. Segundo Paulo Rónai, no excelente ensaio que serve de introdução à Comédia Humana publicada pela Editora Globo, Balzac pretendeu eliminar a maior imperfeição inerente ao romance, a incapacidade de dar uma ilusão completa de realidade. "o romance, efetivamente, está rigidamente delimitado nos planos de uma construção que não se observa na vida. Mas os romances de Balzac não começam e não acabam; cada um traz sementes que vão germinar além do fim e por sua vez apresenta o desenvolvimento dos germes lançados em um ou mais romances anteriores". Assim, uma coadjuvante numa história aparece como personagem principal em outra. Alguém retratado na velhice aparece criança em outra história. As personagens envelhecem e seu problemas mudam. Questões não resolvidas se resolvem em outro romance. Além disso, personagens reais da França da Restauração participam também como personagens nas histórias. São mais de dois mil personagens, cada um com as suas características e histórias. E o mais espantoso é que, sem contar com computador, máquina de escrever ou sequer um secretário, Balzac tenha cometidos pouquíssimos erros.
Do ponto de vista histórico, A Comédia Humana é um retrato fiel e pormenorizado da França da Restauração. Friedrich Engels confessou que aprendeu mais sobre a sociedade francesa, inclusive pormenores econômicos, lendo Balzac do que em todos os livros de historiadores, economistas e estatísticos. E a descarnada "ascensão da burguesia" que vemos explicada nos textos dos historiadores marxistas, vive na nossa frente quando lemos a história de uma jovem dama de família aristocrática empobrecida que tem seu casamento arranjado com o filho de um grosseiro comerciante.
Em termos literários, há desde longos romances até pequenos contos. A qualidade não é homogêna. Há obras-primas como O Pai Goriot e As Ilusões Perdidas, pequenas pérolas como A Missa do Ateu e Uma Estréia na Vida e colchas de retalhos como o superestimado A Mulher de Trinta Anos e Outro Estudo de Mulher.
Nos posts seguintes vou falar um pouco de cada romance e, eventualmente, de aspectos da vida de Balzac.
A nous maintenant!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Audiolivros



Vou chocar os leitores mais puristas, mas gosto de audiolivros.
Os audiolivros, que existem há muitos anos nos países anglo-saxões, estão chegando ao mercado brasileiro. Até bem pouco tempo eram somente títulos de auto-ajuda ou motivacionais. Agora, de olho no mercado pré-vestibular, começam a surgir títulos de literatura: Machado de Assis, José de Alencar, Gregório de Matos.
Vou contar a minha experiência. Há dois anos comprei a biografia de Tim Maia, de Nelson Motta,
narrada pelo autor em audiolivro. Não sou uma grande entusiasta de música popular brasileira. Provavelmente nunca compraria a biografia do Tim Maia para lê-la. Mas fiquei curiosa com a novidade. E, como sou historiadora, é sempre uma oportunidade de aprender um pouco sobre história da cultura brasileira. Adorei
a experiência. O tempo no engarrafamento tornou-se interessante e produtivo. Mais de uma vez, estacionei o carro na garagem e fiquei um pouco mais para ouvir o desfecho de uma história. A narração de Nelson Motta, com direito à imitação do jeito do Tim Maia falar – eram grandes amigos – dá um ritmo vibrante ao texto.
Há pouco tempo, em uma livraria, encontrei A Cidade e as Serras de Eça de Queirós em audiolivro. Li muitos títulos de Eça de Queirós, mas não esse. Comprei para fazer a experiência. Uma coisa é um texto informativo, como uma biografia, outra, muito diferente, um texto literário. Começei a ouvir. Como a língua portuguesa pode soar tão bela? Mas não resisti. Fui ao livro e o li antes de terminar de ouvir o audio. Precisva reler certas partes, pesquisar no dicionário palavras desconhecidas. Não podia retornar o audio o tempo todo. Mas agora que terminei de ler está sendo interessante ouvir o audio. Acho que, ao concluir a audição, comprarei uma obra já lida para ouvir nos engarrafamentos. É uma boa oportunidade de rever os clássicos da época do colégio.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O que eu amava


Lido entre 25 de julho e 4 de agosto de 2010.
Eis um bom começo para esse blog. Até porque conheci a autora no blog Todoprosa de Sérgio Rodrigues. Há uma seção "começos inesquecíveis". O tom confessional com que Siri Hustvedt abre O que eu amava me deixou mesmerizada. Queria o livro para já. Assim que eu obtive, só o deixei quando concluí.
Narra a amizade começada na década de 1970 entre o professor de história da arte Leo Hertzberg e o artista plástico William Weschsler. Leo vê um quadro de William numa galeria do SoHo e resolve conhecer o artista, então desconhecido. A visita é o início de uma amizade que atravessará décadas. Leo é casado com Erica, professora universitária, e William-Bill, com a poetisa Lucille. Eles se mudam para o mesmo prédio e as mulheres engravidam na mesma época. Com diferença de meses, nascem Matthew Hertzberg e Mark Weschsler. Bill deixa Lucille para ficar com Violet, a modelo do quadro que encantou Leo. Violet é uma antropóloga que estuda a histeria e distúrbios alimentares. Quando os meninos estão com 11 anos, Matthew morre em um acidente. Erica vai dar aula na Califórnia, por não conseguir suportar Nova Iorque sem o filho. Bill e Violet ajudam Leo, enquanto Mark cresce. Mark começa apresentar sinais de patologia social mentindo compulsivamente, mudando de personalidade de acordo com o grupo de pessoas com quem está, usando drogas. Acaba se aproximando de um polêmico artista chamado Teddy Giles. Um jovem de biografia obscura que faz instalações chocantes, com sangue, pedaços de corpos expostos, etc. Mark acaba se envolvendo num suposto assassinato cometido por Giles, que seria mais de uma suas "obras de arte". Bill morre do coração de forma súbita. Violet vai morar em Paris.
Narrado em primeira pessoa por Leo, é uma obra difícil de resumir. Além da história principal, há muitas referências à história da arte e aos trabalhos de Bill que, em alguns trechos, são minuciosamente descritos. Igualmente há as discussões sobre pesquisas de Violet (retiradas do trabalho da irmã de Siri Hustvedt) que também interferem nos trabalhos de Bill. E há o passado judaico de Bill e Leo que interferem em toda a história.
Qual é a pergunta que pessoas que não lêem muito fazem quando vêem alguém lendo um livro? Sobre o que ele é? É um livro sobre perdas. Sobre perdas maiores, como a de um filho, e perdas menores, como as impostas pelo envelhecimento. Leo está perdendo a visão quando escreve. Mas não é um livro sombrio. É um livro que retrata as perdas como inerentes à condição humana. A descrição dos efeitos da morte de Matthew sobre Bill e Erica é de um realismo assustador. A perda inimaginável retratada nos seus aspectos mais prosaicos. A dor seca sem nenhuma condescendência. A perda de Mark para Leo também é descrita com maestria. Em algum momento, Leo diz que não há gradação na esperança, de modo que cada vez que Mark pede desculpas por roubar, mentir, fugir, ele acredita, esperando ter de volta a criança que viu crescer ao lado do filho morto. E fica acreditando.
No final, um Leo já idoso e quase cego, ouve os barulhos das crianças no apartamento acima do seu, que fora de Bill e Violet. E aguarda o amigo Lazlo que lerá para ele.

domingo, 15 de agosto de 2010

Começando

A ideia desse blog surgiu a partir de anotações que tenho feito, já há alguns anos, sobre os livros que leio.
Sempre leio dois ou três livros simultaneamente. Até mais, em épocas febris. Há uns três ou quatro anos, percebendo as falhas da minha memória, passei a anotar em cadernos resumos dos livros que leio, a data da leitura e, às vezes, algum comentário. Todavia, percebi que está ficando difícil de consultar. Ora, um blog resolve o problema! Além disso, posso dividir a minha paixão com outros leitores apaixonados.
Registro que não sou escritora ou especialista em literatura. Meus comentários, portanto, não possuem nenhum embasamento teórico ou de caráter acadêmico. Meu interesse predominante é literatura. Mas também aparecerão livros de história, biografias, cinema, ciência, enfim, um cardápio variado.
Sejam bem vindos.