domingo, 19 de dezembro de 2021

Os comediantes sem o saberem

Os comediantes sem o saberem (novembro de 1845)

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Léon de Lora (Mistigris de Uma estreia na vida), Silvestre Palfox-Castel-Gazonal, Bixiou, Claúdio Vignon, Massol, Carabina (Serafina Sinet), Teodoro Gaillard (gerente de jornal), Suzana Gaillard, Fromenteau (cobrador de dívidas), Vital (fabricante de chapéus, sucessor de Finot, sra. Nourrison (espécie de "banco" para mulheres, Jacqueline Collin de  Esplendores e Misérias das Cortesãs),, sra. Mahuchet (sapateira de mulheres), Revenouillet (porteiro), Vavinet (usurário), Ridal, Jenny Cadine, Marius V (Mougin, cabeleireiro), Régulo (auxiliar de Marius), Dubourdieu (pintor, fourierista), sra. Fontaine (cartomante), Publícola Masson (pedicuro, republicano radical), Conde de Rastignac, Máximo de Trailles, Canalis, Giraud. Du Tillet, Nuncigen, Du Bruel, Málaga. 
Vital e Gazonal

A história se passa em 1845. 

Os Comediantes sem os saberem é uma viagem de descoberta a Paris, na qual o pintor León de Lora e cartunista Bixiou apresentam à cidade ao primo de Lora, Gazonal. O primo, da região dos Pirineus orientais, dirige uma manufatura de tecido na província. Está em Paris em razão de um processo contra a prefeitura de sua cidade que foi transferido à jurisdição do Conselho de Estado. Está desesperançado quando procura Léon. 

Pois León de Lora e Bixiou, sabendo que quem preside a sessão onde se encontra o processo é Massol e o que o relator é Cláudio Vignon, prometem que a decisão será favorável a Gazonal, desde que eles compareçam a uma festa logo mais à noite na casa da cortesã Carabina. Mas até lá, eles querem apresentar Parais a Gazonal. 

Então desfilam pelas páginas da Comédia Humana vários tipos pitorescos: Fromenteau, que cobra dívidas de todas as formas possíveis, Vital, fabricante de chapéus, a sra. Nourrison, que socorre com dinheiro as mulheres necessitadas,  Revenouillet, o porteiro que agencia dinheiro, Vavinet, o usurário elegante, Marius, o cabeleireiro empreendedor, Dubourdieu, o artista fourierista, a sinistra cartomante Fontaine, com sua galinha preta e seu sapo Astarot, o pedicuro Masson, defensor do terror revolucionário. 

No final, utilizando caminhos não administrativos ou judicias, Gazonal ganha seu processo. 

É um texto rápido, uma espécie de galeria de personagens. Repetindo Paulo Rónai na Introdução, é em Os Comediantes sem o Saberem que Balzac dá, na voz de Bixiou, sua famosa definição de Paris: "um instrumento que é preciso saber tocar". Os cicerones dão uma lição de como "tocar" Paris a Gazonal. Nós que nos divertimos. 


Sra, de Nourrison

Imagens: Oeuvres illustrées de Balzac, 1851-1853. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k116911k/f232.item Acesso em 19 de dezembro de 2021. 

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Os funcionários

Os funcionários (julho de 1836)

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Xavier Rabourdin, Celestina Rabourdin (née Leprince), Clemente Chardin des Lupleaux, Atanásio João Francisco Miguel de La Billardière (barão Flamet de La Billardière) , sr. Saillard, sra. Saillard (née Bidaut), Isidoro Baudoyer, Isabel Baudoyer (née Saillard), sr. e sra. Badouyer (pais de Isisdoro), Padre Gaudron, Martinho Falleix, srta. Baudoyer, sr. Sorbier (tabelião, predecessor de Cardot), Gigonnet (agiota), Werbrust, Gobseck, sr. Mitral (tio de Isidoro, irmão da mãe dele), Sebastião de La Roche (extranumerário), sra. de La Roche (mãe de Sebastião), Du Bruel (autor teatral, também conhecido como Cursy, amante de Túlia que era também amante do duque de Rhétoré, subchefe), Benjamin de La Billardière, Ernesto de La Brière (secretário particular do ministro), Antônio (contínuo das repartições), Lourenço (contínuo dos dois chefes, sobrinho de Antônio), Gabriel (contínuo do diretor, sobrinho de Antônio), sr. Dutocq (oficial de gabinete da repartição de Rabourdin, sucessor do sr. Poiret). José Godard (subchefe de Rabourdin, primo de Mitral pelo lado materno, aspirante à mão da srta. Baudoyer,) Phellion (escriturário do gabinete de Rabourdin, dois filhos, uma filha e esposa leciona piano no internato das srtas. La Grave, ele também leciona história e geografia no internato), Adolfo Vimeaux (amanuense que gastava para se vestir bem), Bixiou (desenhista, da divisão Baudoyer), Augusto João Francisco Minard (amanuense), sra. Minard (Zélia Lorain), Colleville (primeiro oficial da repartição Baudoyer, primeiro clarinete da ópera cômica, fã de anagramas), Flávia Minoret (esposa de Colleville), Thuillier (primeiro oficial da repartição Rabourdin), srta. Thuillier (irmã de Thuillier), Chazelle, Paulmier, Poiret Jr. (irmão de Poiret sênior, organizava a coleção de jornais e escriturava livros em duas casas comerciais, tinha um diário), Fleury (ex capitão de regimento no período napoleônico, tinha opiniões de centro esquerda, fugia dos credores), Desroys (discreto, republicano em segredo), Marquesa d' Espard, ministro e esposa do ministro, um deputado, sr, Clergeau. 

A história se passa entre  1820 e 1825. 

A enorme lista de personagens já mostra como esse romance, pouco conhecido e comentado, é desafiador para o leitor de Balzac. No início, já cito o meu "guia", Paulo Rónai, que na introdução de "Os Funcionários" repete, ao comentar a ausência do título em textos e críticas: "E no entanto, trata-se de autêntica obra-prima que por si só bastaria a gravar o nome do autor na história das letras francesas: Balzac é assim, muitas vezes prejudicado pela sua própria riqueza: alguns livros seus de uma perfeição poderosa relegam ao desconhecimento outros, talvez não isentos de defeitos mas decerto cheios de belezas" (RÓNAI, 1991, p. 99).  

Conta-se a história e Xavier Rabourdin, chefe de gabinete em um importante ministério, que teve sua promoção a chefe de divisão preterida pelo sr. de La Billardière, "homem incapaz". Rabourdin, raríssimo homem de Estado, dedicou-se a planejar uma reforma do sistema administrativo francês. Reforma detalhada por Balzac, que envolvia a redução dos ministérios a três, e a diminuição do número de funcionários para cinco mil, com o aumento de seus salários. Entendemos que a burocracia é filha do governo constitucional pois os ministros "obrigados a obedecer aos príncipes ou às Câmaras, que lhe impõem a admissão de novos empregados, e forçados a conservar os que têm, (...) diminuíam os salários e aumentavam o número de empregos, pensando que, quanto mais gente fosse empregada pelo governo, mais este seria forte" (BALZAC, 1991, p. 114). Balzac chama esse sistema de ministerialismo, com o funcionário se comportando com o governo "como uma cortesã com um amante velho. Dava-lhe trabalho correspondente ao dinheiro que recebia" (BALZAC, 1991, p. 114). 

O funcionário público "ocupado unicamente em se manter, em receber seus ordenados e alcançar sua aposentadoria, (...) achava que tudo era permitido para alcançar esse resultado. Esse estado de coisas acarretava o servilismo do funcionário, engendrava intrigas perpétuas no seio dos ministérios, onde os empregados pobres lutavam contra uma aristocracia degenerada que vinha pastar nas terras comunais da burguesia, exigindo postos para seus filhos arruinados. (...) Não restavam ou não vinham senão preguiçosos, incapazes ou tolos. Assim, se estabelecia lentamente a mediocridade da administração francesa" (p. 116). Rabourdin foi além, planejando também uma reforma das finanças, com a taxação do consumo em massa em vez da propriedade, com a receita do imposto vindo de uma única lista composta de diversos artigos. 

Discordo muito do romancista inglês, Arnold Bennett, citado na Introdução por Rónai  quando diz que "o começo de Os Funcionários é terrível" e "aí a gente vê que Balzac não entendia do assunto." Talvez por ser historiadora, achei o começo do romance muito interessante (lembremos que Balzac se dizia "historiador de costumes"). Ele expõe o fortalecimento da burocracia no contexto da formação de uma democracia liberal. Ao lado da nascente soberania nacional persiste a soberania monárquica, e  a aristocracia decadente disputa espaço e dinheiro com a nova burguesia. Mas além de historiadora, sou servidora pública. E é grande a atualidade das discussões de Balzac sobre o dia a dia do serviço público. Nos "funcionários" apresentados na segunda parte do romance (do elenco de funcionários poderiam sair inúmeras obras, incrível a prolificidade de Balzac!), reconhecemos muitas figuras das nossas repartições: o preguiçoso, o apadrinhado, o fofoqueiro, o certinho, o piadista, estão todos lá. 

A trama ocorre a partir da morte de La Billardière e a vacância de seu cargo. Rabourdin era o candidato natural. Mas no seu caminho se encontra o medíocre Isidoro Baudoyer, o outro chefe de gabinete. Ao lado de Baudoyer, está o clero, com poder restaurado pela ascensão de Carlos X, os agiotas, que manipulam as dívidas do secretário-geral Des Lupleaux, e vários funcionários desejosos de um chefe que mantivesse tudo como estava. A "fritura" de Rabourdin ocorreu a partir da divulgação de seu relatório para a reforma, no qual, além do número de funcionários que seriam demitidos, havia apreciação do desempenho de vários, inclusive de Des Lupleaux.  Mas havia ainda uma esperança para a promoção de Rabourdin: a paixão do secretário-geral, "remanescente de um homem bonito", por Celestina Rabourdin. "Os primeiros cabelos brancos trazem consigo as últimas paixões, as mais violentas, por estarem a cavaleiro de uma potência que se vai e de uma fraqueza que se inicia" (BALZAC, 1991, p. 148). Mas Celestina, mulher superior (o primeiro título  de "Os Funcionários" era "A mulher superior") e ambiciosa, por quem o responsável marido gastava mais do que ganhava, se manteve virtuosa, não concedendo seus favores a Des Lupleaux, o que selou o destino de Rabourdin. 

O final infeliz, tipicamente balzaquiano, ocorre com a promoção de Baudoyer a chefe de divisão e a demissão voluntária de Rabourdin. 

Impressionantes os diálogos da parte do romance que se passa na repartição, que é toda dialogada. Rónai nos diz que são superiores a todos os diálogos das peças que Balzac escreveu e que não deram certo. Dariam um bela e engraçada peça de teatro, no estilo de "O Inspetor Geral" de Gogol. 

Em "Os funcionários" Balzac nos presenteia com o quadro de nascimento da burocracia estatal contemporânea e dos ajustes sociais feitos pela chegada do capitalismo no final do século XVIII. Mas, para além da análise histórica, é um livro divertido. Torcemos por Rabourdin, mesmo sabendo que ele perderá no final, como quase todos os "bons" do mundo balzaquiano. 


Imagem retirada de: Alcide Théophile Robaudi. Honoré de Balzac, The Civil Service. Philadelphia: Gebbie Publishing Co., 1899. 
https://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Employ%C3%A9s_ou_la_Femme_sup%C3%A9rieure. Acesso em 14 de dezembro de 2021.