sábado, 27 de julho de 2013

Uma Luz em meu Ouvido

Uma Luz em meu ouvido. Elias Canetti. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução Kurt Jahn.

Lido entre 19 de fevereiro e 6 de março de 2013.

Trata-se da continuação da biografia de Elias Cannetti, A Língua Absolvida. Uma Luz em meu Ouvido cobre o período entre 1921 e 1931, ao fim do qual Canetti tornou-se escritor.
O livro inicia com a chegada de Elias, aos 16 anos a Frankfurt em 1921. Lá, a família, mãe e três filhos, em dificuldades financeiras foi residir na pensão Charlotte. Na pensão, Elias teve contato com uma fauna variada. Alguns eram pessoas de aparência respeitável, mas com uma vida dupla. O autor conheceu o período de crise e inflação que se abateu sobre a Alemanha dos anos 1920. Ele relata o impacto que teve sobre ele ter presenciado na rua uma mulher desmaiar de fome.
Em 1924, Elias foi para Viena com o irmão Georg. Tendo desistido da medicina, optou, sem muita convicção, por estudar química. Ele tinha 19 anos.
Por intermédio da família Asriel, Canetti conheceu, no mesmo dia, duas das pessoas mais importantes de sua vida: Karl Kraus e Veza. 
Karl Kraus (1874-1936) não é muito conhecido hoje em dia, mas era uma celebridade na Viena dos anos 1920. Ensaísta, dramaturgo, polemista, escrevia um jornal, Die Fackel (A Tocha), onde atacava o belicismo e a corrupção das elites da época. Escreveu um drama de mais de oitocentas páginas, Os último dias da humanidade, "no qual aparece tudo o que aconteceu na guerra. Quando Karl Kraus fazia leituras de partes do mesmo, ficava-se como que aniquilado. Nada se movia no auditório, mal se ousava respirar. Ele mesmo lia os papéis de todos os personagens, dos aproveitadores e dos generais, dos velhacos e dos pobres-diabos que eram vítimas da guerra. Todos pareciam tão genuínos em sua interpretação como se estivessem à nossa frente. Quem o ouvisse, nunca mais desejaria frequentar um teatro, pois o teatro era enfadonho em comparação a Karl Kraus. Ele sozinho era um teatro inteiro, porém melhor, e este milagre da humanidade, esse monstro, este gênio tinha um nome tão comum como Karl Kraus". 
Pois na primeira vez que teve essa incrível experiência, Elias conheceu Veza Taubner-Calderon (1897-1963) com quem se casaria em 1934. Elias e Veza tiveram uma parceria intelectual poderosa que iniciou nessa época, apesar do posterior casamento conturbado - Canetti teve muitas amantes e Veza, uma intensa paixão por Georg, o irmão médico do escritor. 
Mas o tom desse período é o mesmo da parte final de A Língua Absolvida: os embates do jovem com a forte personalidade da mãe, Mathilde. Elias data um momento de ruptura, ocorrido em 24 de julho de 1925, quando a mãe o proibiu de fazer uma excursão para as montanhas com um amigo. Ocorreu uma grande crise que marcou o afastamento entre mãe e filho. Mathilde também se opunha ao relacionamento do filho com Veza. É muito engraçado o trecho em que Canetti conta que inventava para a mãe relacionamentos com outras mulheres para desviá-la da seriedade do seu romance com Veza. 
Também é desse período a narrativa do trabalho no laboratório de química, de onde saíram alguns modelos para os personagens de Auto de Fé.
Um acontecimento que mudou a vida de Canetti e o levou a dedicar anos ao estudo das massas e à publicação do ensaio Massa e Poder em 1960 ocorreu em 15 de julho de 1927. Tudo começou com um tiroteio alguns dias antes, quando seis operários foram mortos. A corte de justiça inocentou os assassinos, o que provocou uma grande revolta nos trabalhadores de Viena que marcharam para o Palácio da Justiça e o queimaram. Elias Canetti se integrou na massa manifestante, e estudar os movimentos de massa, de turba, a partir daí, passou a ser sua obsessão. Dessa experiência surgiu um dos modelos de Kien, o homem dos livros de Auto de Fé: "Numa rua lateral, não longe do Palácio da Justiça em chamas, logo ao lado, destacando-se nitidamente da massa, estava um homem de braços erguidos, que juntava as mãos por cima da cabeça, em desespero, e bradava em tom lamentoso, uma vez após a outra ´Os arquivos estão queimando!`, ´Todos os arquivos!`, ´Antes os arquivos do que as pessoas!`, disse-lhe eu, mas isso não o interessou, só tinha os arquivos na cabeça". 
Elias terminou sua graduação em química, já muito ciente de que jamais trabalharia como químico. Dois períodos em Berlim entre 1928 e 1929 foram fundamentais para sua carreira de escritor e para Auto de Fé. 
George Grosz - Berlin Strasse 1931
As maiores influências do período berlinense foram o pintor e desenhista George Grosz (1893-1959) e o escritor russo Isaak Babel (1894-1940). Canetti considera que o trabalho de Grosz teve o mesmo impacto para ele do que o texto de Karl Kraus, mas que por ser uma pessoa verbal e sem talento para o desenho, o admirava mas não o tinha como paradigma. Canetti considera que Babel significou mais para ele do que qualquer outra pessoa que conheceu na época. 
Outra figura dos anos 1920 com quem Canetti travou conhecimento foi Bertold Brecht (1898-1956). Elias não esconde sua antipatia por ele, considerado artificial e afetado. 
A última parte da narrativa, entre 1929 e 1931, trata da gestação de Auto de Fé. É muito interessante (para mim o mais interessante do livro) ver como um conjunto tão variável de influências resultou nesse romance sui generis. Coisas tão diversas como um quadro de Rembrandt, a Capela Sistina, a senhoria de uma das casas onde Elias morou, Cervantes, o homem que lamentava a queima dos arquivos, A Comédia Humana, a fragmentação das noites berlinenses, os desenhos de Grosz se amalgamaram para a dar origem a Die Blendung - o cegamento, que é o título original de Auto de Fé. Mas Auto de Fé, apesar de ser um capítulo da Comédia Humana dos loucos, como o próprio Elias o definiu, é também uma elegia aos livros, é o amor extremo aos livros, algo que Canetti trazia dentro de si. E eu, modestamente, também. Mas isso já é assunto para outro post. 


Rembrandt - Sansão cegado pelos filisteus 1636

domingo, 14 de julho de 2013

Crime e Castigo

Não estava nos meus planos reler Crime e Castigo agora. Eu o li há muitos anos na tradução de Natália Nunes para a a Abril Cultural, que é uma tradução de segunda mão, ou seja, o texto russo foi traduzido para o francês e a tradutora passou para o português. Eu havia adquirido a tradução direta do russo de Paulo Bezerra para a Editora 34, mas estava na prateleira, aguardando um motivo ou inspiração para a releitura. Eis que apareceu. Numa livraria bem perto da minha casa ofereceram um curso de literatura russa sobre Dostoiévski com o professor João Armando Nicotti. Normalmente, não posso participar desse tipo de atividade, mas é no sábado na parte da tarde. Não resisti. O professor Nicotti é um dos responsáveis pela minha paixão por Tolstói. Assisti, quando ainda era uma menina, uma palestra com ele sobre Anna Karênina: foi o início do meu interesse pela literatura russa e por Tolstói. 
Crime e Castigo conta a história de um jovem estudante de direito de 23 anos de São Petesburgo, Rodion Románovitch Raskólnikov que comete um crime. Raskólnikov vive sustentado pelas mãe, Pulkhéria Raskólnikova, que recebe uma miserável pensão, e pela irmã, Avdótia (Dúnia), governanta em uma casa burguesa na província. Mesmo assim, a pobreza o obriga a abandonar a faculdade. Movido pela falta de recursos - mora em um local insalubre, pouco se alimenta -, pela doença e por algumas teorias por ele elaboradas, o rapaz planeja e executa o assassinato de uma velha usurária, Aliena Ivánova. Durante a execução, com um machado, chega ao apartamento da velha sua irmã, Lisavieta Ivanova, e Raskólnikov é obrigado também a assassiná-la. 
Nesse meio tempo, ele recebe uma carta da mãe narrando o noivado de Dúnia com o capitalista Piotr Pietrovich Lúdjin e a viagem próxima de ambas, mãe e irmã, a São Petersburgo para o casamento. Raskólnikov desaprova o plano, pois percebe que  a irmã aceitou o pedido para ajudá-lo. E através das palavras da mãe, o jovem advinha que noivo é um homem que deseja uma noiva pobre e submissa que o reverencie. 
Raskólnikov tem ao seu lado, desde o princípio, o colega da faculdade Dmitri Prokófich Razumíkhin. Jovem honesto, um pouco ingênuo e infenso à rispidez do protagonista, ele logo se apaixona por Dúnia. Outro personagem importante é Semion Zakháritch Marmieladov  Ele conhece Raskólnikov em uma taberna e ele narra sua triste vida. É funcionário público, mas abandonou o trabalho pelo vício na bebida. Sua mulher, Catierina Ivánova, moça de família nobre que empobreceu, está com tuberculose e não tem meios de sustentar os três filhos pequenos do casal,  Polienka,  Kólia e Lênia (9, 7 e 6 anos). A filha mais velha de Marmieladov, Sônia Semionova Marmeliadova, ajuda os pais e madrasta se prostituindo. Ao longo da narrativa, Marmieladov morre atropelado por cavalos.  Raskólnikov dá a Catierina todo o dinheiro que recebeu da mãe para o enterro do alcoolista. E no dia do enterro, Catierina morre. O casal Marmieladov-Catierina foi inspirado na primeira esposa de Dostoiévski, Maria Dmitrieva e seu primeiro marido, Issáiev. 
Na galeria de personagens principais (há muitos, mais de 80), há ainda Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov e Porfiri Pietróvitch. 
Svidrigáilov aparece pela primeira vez na longa carta de Pulkhéria para Raskólnikov. Ele era o patrão da casa onde Dúnia trabalhava. Foi literalmente comprado pela mulher, uma solteirona endinheirada, Marfa Pietróvna, e com ela fez um acordo: viveria com ela na província e não teria casos amorosos sérios. Marfa tolerava, no máximo, casos com criadas de quarto. Svidrigáilov se apaixonou por Dúnia e provocou uma incidente que levou à difamação da moça. O mal entendido foi desfeito e Dúnia reabilitada, momento em Lúdjin apareceu para resgatá-la. Svidrigáilov é pedófilo, o que é retratado com realismo pelo autor. Ele vai para a cidade após a morte de Marfa, que, não fica claro, poderia ter sido provocada por ele. Apesar do mau caráter, Svidrigáilov pratica uma série de boas ações. Entre elas, paga o enterro de Catierina e providencia para que os órfãos fiquem em um bom internato. Também dá dinheiro à Sonia e à família de uma menina de 16 anos com quem ele iria se casar (na verdade iria comprá-la dos pais). Tem-se a impressão de que desde que foi para São Petersburgo ele estava pensando em se suicidar, o que, finalmente, ele faz com um tiro na cabeça. 
Porfiri Pietróvitch é o juiz de instrução que, através do estudo das atitudes de Raskólnikov, descobre que ele cometeu o crime. Faz um jogo psicológico com o protagonista e o incentiva a se entregar, já que teria uma série de atenuantes: sua doença, o fato de não ter usado o dinheiro que roubou da velha e a porta aberta quando cometia o crime. Raskólnikov acaba se entregando, mas não a Porfiri, a Ilia Pórokh. 
No final, Raskólnikov é condenado a sete anos na Sibéria. Vai para lá acompanhado por Sônia. Pulkhéria falece. Dúnia, que rompera o noivado com Lúdjin, casa com Razumíkhin . 
A última cena da narrativa ocorre um ano e meio depois do crime (o crime ocorreu em julho de 1865), quando Raskólnikov reconhece seu amor por Sônia e encontra nesse amor a redenção que até então não encontrara. 
Muita tinta já foi gasta para falar desse livro sob os mais diversos aspectos: jurídicos, psicológicos, históricos, filosóficos. 
Um dos ponto mais debatidos é o motivo do crime. O protagonista apresenta vários motivos, mas o mais plausível se relaciona a uma teoria segundo a qual existem homens ordinários, a maioria, e homens extraordinários, como Napoleão ou César, que são capazes de ultrapassar os limites para conquistar o que desejam. Esses últimos poderiam fazer o que quisessem e apenas colheriam a glória. Raskólnikov diz:
"A velha vai ver que foi mesmo um erro, mas não é nela que está a questão! A velha foi apenas um doença...eu queria ultrapassar o limite o quanto antes...eu não matei uma pessoa, eu matei um princípio!  Foi o princípio que eu matei, mas além eu não fui, permaneci do lado de cá... O único que eu soube fazer foi matar. Demais, nem isso eu soube, como se está verificando." 
Assim, o erro de Raskólnikov segundo ele mesmo não foi ter matado, mas não ter conseguido seguir com a vida após o crime, utilizar o produto do roubo para voltar para a universidade e fazer grandes coisas, como um grande homem teria feito no seu lugar. 
Ele não se arrepende do crime nem no final. O que traz a paz a Raskólnikov na última cena, não é o arrependimento, mas a redenção pelo amor de Sônia e pela perspectiva de uma vida com ela. 
Eis a sombra de Napoleão Bonaparte sobre os jovens do século XIX. Eugênio de Rastignhac, Luciano de Rubempré, Julien Sorel, Rodion Raskólnikov, todos atingidos, de forma diversa, pela perspectiva de atingir a grandeza. 
Raskólnikov é um dos personagens mais desagradáveis da literatura de todos os tempos. O leitor não desenvolve nenhuma empatia com ele, coisa que o mau caráter Arkadi Ivánovitch Svidrigáilov, com todos os seus defeitos: jogador, agressor de mulheres, pedófilo, consegue logo que aparece no quarto do protagonista. Rodion desenvolve um certo fascínio, que é o que explica, por exemplo, amizade de Razumíkhin e o desvelo da empregada Nastácia. Mas Razumíkhin bem o define: "Ele não gosta de ninguém, talvez nunca venha a gostar". É o  gênio de Dostoiévski que nos faz acompanhar essa criatura insuportável com o maior dos interesses por quase seiscentas páginas.