domingo, 22 de dezembro de 2013

Grande Irmão


Grande Irmão. Lionel Shriver. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2013. Tradução: Vera Ribeiro. 

Lido entre 19 e 22 de dezembro de 2013.

Adoro descobrir autores por acaso. Grande Irmão foi um desses casos. Olhando o site da Livraria Cultura, vi o título do livro. Pensei que tivesse algo a ver com George Orwell. Quando li a sinopse, gostei do tema. É um assunto que anda me preocupando muito: a epidemia de obesidade nas sociedades ocidentais. Comprei, comecei a ler e, diante do meu primeiro fim de semana com algo parecido a férias(doutorando não tem férias), só parei na última linha. 
Pandora Halfdanarson  é uma mulher de 40 anos casada com Fletcher Feuerbach, mãe emprestada dos dois filhos adolescentes do marido, Tanner, 17 anos, e Cody, 13. Após dirigir uma empresa de catering por alguns anos, uma brincadeira a levou a um negócio bem sucedido. Fez um boneco de corda para presentar o marido, com um mecanismo para reproduzir frases gravadas, clichês sempre repetidos pelo homenageado. As pessoas que viram gostaram e começaram a encomendar a engenhoca. Nascia a Baby Monotonous. O sucesso permitiu que Fletcher se dedicasse à sua paixão, fabricação de móveis de design. Um dia, Pandora recebe a notícia de que seu irmão, Edison Appaloosa, músico de jazz em Nova Iorque, não está bem financeiramente. Envia uma passagem para que ele vá visitá-la em Iowa, depois de uma separação de quatro anos, pontuada por alguns telefonemas, cuja iniciativa é sempre de Pandora. Ao chegar ao aeroporto, Pandora não reconhece no homem empurrado em uma cadeira de rodas por comissários, o rapaz atlético por quem suas amigas eram apaixonadas na adolescência. Edison está pesando quase duzentos quilos. 
A visita se transforma em um ordálio. Fletcher é um homem de vida regrada, que acorda muito cedo, come apenas alimentos naturais, evita laticínios e pratica ciclismo. Conviver com os hábitos alimentares do cunhado produz uma guerra diária. Tanner é um garoto cínico e mal educado, que não hesita em debochar das histórias de Edison, que relata, de forma repetitiva e exagerada, as ocasiões em que tocou com os maiores astros do jazz. A única que auxilia Pandora na inglória tarefa de gerenciar a visita de dois meses é Cody. 
Pandora e Edison têm nomes diferentes em virtude de um personagem que aparece pouco, mas está sempre presente no enredo. O pai deles, e da irmã mais jovem, Solstice, é  ator e roteirista de televisão de uma série famosa da década de 1970, chamada Guarda Compartilhada. Travis Appaloosa, nascido Halfdanarson, vive, na faixa dos setenta anos, da nostalgia do passado, sonhando em voltar a fazer sucesso na televisão. Em Guarda Compartilhada, Travis criou uma família avatar idealizada, na qual o filho mais velho era uma cópia de Edison e a do meio, de Pandora. 
(Quem quer ler o livro e não quer saber o desfecho da história pare aqui). 
A história chega a um impasse na data em que Edison  deveria retornar a Nova Iorque. Ele, inicialmente, dizia que faria uma turnê na Península Ibérica. Mas Acaba confessando a Pandora que não havia turnê alguma e que ele estava sem trabalho e vivendo de favores há muito tempo. Pandora tinha duas possibilidades. Deixar Edison embarcar e dar algum  dinheiro para ele se manter ou convidá-lo a ficar e ajudá-lo a lidar com o problema do peso. 
Pandora decide apoiar o irmão, mesmo com a séria possibilidade de comprometer o casamento. Aluga um apartamento para ambos e anuncia ao marido que passará um ano ajudando Edison a emagrecer. Pandora ganhou alguns quilos a mais nos últimos anos e resolve acompanhar o irmão na dieta. Passam vários meses consumindo apenas shakes proteicos, quatro vezes por dia. Após quatro meses e já tendo emagrecido 25 quilos, Pandora volta a comer alimentos sólidos. Edison volta após seis meses. E, ao final de uma ano, Edison, que pesava 175 quilos, chega aos 73. Eles fazem uma festa para comemorar o feito e, nessa data, Pandora anuncia a Edison que ela voltará para casa com Fletcher. Em poucas linhas, sabemos que Edison voltou a engordar todos os quilos perdidos. 
Na terceira e última parte, descobrimos o que já imaginávamos: que a segunda parte era ficção. Edison embarcou de volta para Nova Iorque e Pandora passou a enviar algum dinheiro a ele. Morreu, tempos depois, aos quarenta e nove anos. 
Lionel Shriver é uma norte-americana que mora há anos na Inglaterra. Depois de cinco ou seis livros sem grande sucesso na década de 1990, ela ficou famosa em 2003 com Precisamos falar sobre Kevin, história narrada pela mãe de um adolescente psicopata e que virou filme. O seu irmão mais velho Greg, para quem Grande Irmão é dedicado, morreu aos 55 anos em virtude de complicações relacionadas à obesidade mórbida. 
O livro tem problemas narrativos bem óbvios. Há um grande abuso de clichês. A cena do aeroporto, quando Pandora, aguardando Edison, escuta dois passageiros reclamarem do incômodo causado pela presença de Edison é um grande chichê cinematográfico. Edison é uma personagem mal construído. O que Pandora conta dele antes da obesidade não tem nada a ver com a pessoa que aparece na história. Além disso, suas atitudes, comendo toda a comida que os parentes têm em casa, fazendo sujeira, quebrando a mobília, são lugares comuns associados aos obesos: pessoas preguiçosas, sem força de vontade e que incomodam os outros. Travis, que é quase um coadjuvante, é mais real que Edison. Travis, aliás, tem tudo a ver com a obesidade de Edison: ele é o genitor egoísta, algo que contrasta fortemente com a visão que temos hoje a respeito de paternidade e maternidade, mas que está nas vidas de muita gente. Para ele, seu mundo de fantasia de Guarda Compartilhada, é mais importante do que a família real. 
A segunda parte, da dieta, é francamente inverosímel, mas acredito que foi deliberado. Qualquer pessoa que já fez uma dieta (quem não?), sabe que é impossível ficar meses consumindo 500 calorias por dia, ou perder 100 quilos em uma ano. 
O tema de Grande Irmão não é exatamente obesidade, mas controle e competição. Controle sobre o que comemos, ou sobre o que não comemos. Controle sobre as relações familiares, fraternas ou não. Competição em todas as esferas da vida. Chama a atenção a competição entre Edison e Pandora, desde pequenos. Edison era o preferido dos pais. Pandora era a típica filha do meio, de quem não se espera nada. Enquanto ele foi aos dezessete anos para Nova Iorque com alguns trocados no bolso e ficou famoso, ela optou por estudar inglês na faculdade (algo que quem não sabia o que queria acabava fazendo). Aos quarenta anos, o jogo se inverteu. Edison está obeso e desempregado, enquanto Pandora, bem sucedida, está na capa da Vanity Fair. Também chama a atenção a competição entre Pandora e Fletcher. Ele compensa seu desempenho opaco na profissão com hábitos alimentares e de exercício que Pandora não consegue seguir. Ostenta perante ela, com alguns quilos a mais, seu físico atlético. Travis é o maior competidor em relação aos filhos. Não aceita que ambos, em momentos diferentes tenham mais sucesso do que ele teve. Menospreza a carreira de Edison e despreza a firma de Pandora. Quando Fletcher manda a ele uma foto e ele vê o estado físico de Edison, não consegue disfarçar a satisfação.
Creio que é essa dinâmica familiar que Shriver capta bem. Esse emaranhado de competição e afeto das relações familiares, em que os irmãos ora se unem contra os pais, ora se unem aos pais, um contra o outro. Em que as lealdades ora são do cônjuge, ora do irmão/irmã. Essas implicâncias sem explicação do dia a dia. Fazer o que sabemos que vai desagradar ao outro. Ostentar ao outro nosso sucesso, quando sabemos que ele não está bem. Se arrepender logo depois e mesmo assim, tornar a fazer. Esse é o ponto alto de Grande Irmão. As melhores reflexões são sobre isso e não sobre a questão do descontrole alimentar. 

Grande Irmão foi o primeiro e-book de literatura que escolhi ler no formato de e-book. Já li muitos da minha área de estudo e alguns de literatura por não querer esperar meses pela remessa da Amazon. Quando fui comprá-lo no site Cultura, ia comprar o livro convencional. Mas resolvi experimentar. Gostei da experiência. Li no meu celular. Achei prático poder sacar o celular do bolso e ler o livro a hora em que eu quisesse. Às vezes fico muito brava, quando saio e esqueço
de levar um dos livros que estou lendo. Agora vou manter sempre um no celular.