domingo, 3 de abril de 2022

Um episódio de terror

Um episódio de terror (janeiro de 1831)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar (lido entre 2 de abril de 2022 e 17 de junho de 2023)

Personagens: Padre Marolles, Irmã Martha (née Beauséant), Irmã Ágata (née Langeais), sr. e sra. Ragon, desconhecido (Charles-Henri Sanson).

A história se passa entre 22 de janeiro de 1793 e 25 de janeiro de 1794. 

Isidore Stanislas Helman (1743-1809). A morte de Luís XVI

As 15 páginas de Um episódio de terror fazem dele um dos mais breves da Comédia Humana. O texto fez parte da introdução de uma obra - Memórias de Sanson, o carrasco de Paris - escrita por Balzac em conjunto com Lhéritier de l´Ain, quando nosso mestre ainda assinava Lord R´Hoone. Somente em 1846 foi incorporado à Comédia Humana

A chave da novela, que começa com uma cena cinematográfica de suspense,  está na data. Naquele dia frio de inverno, uma mulher já com alguma idade foi a uma padaria, em torno de oito horas da noite. No caminho percebeu estar sendo seguida. No estabelecimento trocou uma moeda de ouro, um luís, por algo que estava dentro de uma caixa de papelão. Ela então retornou ao local onde morava, sendo ainda seguida pelo mesmo desconhecido de antes. Uma vez na na pobre casa, que dividia com outra senhora e com um padre, receberam a visita do perseguidor. Sabemos então que os três são a irmã Marta, a irmã Ágata e o padre Marolles, de famílias aristocratas, e perseguidos pelos revolucionários franceses. Inicialmente, julgaram que seriam presos, especialmente Marolles, que se recusara a jurar a Constituição civil em 1790. Mas eis que o visitante desejava encomendar um missa de réquiem pela "alma de uma pessoa sagrada, cujo corpo jamais repousará em terra santa". Duas horas mais tarde, ocorreu a missa e descobrimos que a caixa de papelão continha hóstias. O desconhecido deu ao padre, em pagamento, uma caixa "extremamente leve" dizendo ser uma relíquia. Prometeu retornar em uma ano para nova missa. Nesse período, os três religiosos passaram a receber lenha e comida , pois "apesar do Terror, uma poderosa mão se estendia sobre eles". Ao fim de um ano, o homem retornou e foi celebrada outra missa, mas ele parecia muito abalado. Quatro dias depois, o padre Marolles, na porta da loja dos Ragon percebeu um tumulto e soube que o carrasco de Luís XVI iria ser guilhotinado. Viu na carreta que se dirigia ao cadafalso o desconhecido. 

Na caixa "extremamente leve" havia um lenço marcado com a coroa real e manchado de suor e sangue. 

Paulo Rónai considera Um episódio de terror uma obra menor, da fase "clandestina" de Balzac. Eu raramente leio textos sobre A Comédia Humana. Não haveria tempo e, em geral, comento as minhas impressões pessoais. Mas dessa vez, procurando ilustrações para essa postagem, encontrei um artigo de Gabriel Moyal, Making the Revolution Private: Balzac's "Les Chouans and Un épisode sous la Terreur. Moyal apresenta esse texto curto de um ponto de vista bastante mais complexo. Não irei detalhar, o artigo está disponível no Jstor. Mas, entre outras coisas, ele discute a visão dinâmica de história contida na Comédia Humana, que não é percebida pelo leitor com sua natural tendência de reificar os fatos históricos. Comenta também o simbolismo das trocas na novela: o luís, com a efígie real, de ouro pelas hóstias, e o lenço pela missa ("Eu coraria se lhe oferecesse um salário qualquer pelo serviço funerário que o senhor acaba de celebrar pelo repouso da alma do rei e pelo descanso da minha consciência. Não se pode pagar uma coisa inestimável a não ser por uma oferenda que também o seja"). E destaca que os personagens e objetos aparecem mais pelo que eles defendem, ou representam do que pelos que  são ou aparecem, como na passagem: "Ali estava toda a monarquia, nas preces de um padre e de duas pobres mulheres; mas, talvez, também estivesse representada a revolução na pessoa daquele homem cujo o semblante traía remorsos bastantes para não se crer que ele satisfizesse os anseios de um imenso arrependimento". 

O nome de Charles-Henri Sanson (1739-1806), carrasco de Luís XVI, não é citado em Um episódio de terror. Rónai nos conta que a irmã de Balzac, Laure, afirmava que o escritor havia entrevistado Sanson. Contudo, seria impossível pela data de falecimento do carrasco. É provável que o entrevistado tenha sido o filho de Sanson que, aliás, herdou seu ofício. 

Já sabemos que Rónai reviu, depois da organização da Comédia Humana"a tese do milagre". Para mim Um episódio de terror já a desmente. 

E. Lampsonius (1822-1871): Charles-Henri Sanson

Moyal, Gabriel. “Making the Revolution Private: Balzac’s ‘Les Chouans’ and ‘Un Épisode Sous La Terreur.’” Studies in Romanticism 28, no. 4 (1989): 601–22. https://doi.org/10.2307/25600809.