quinta-feira, 30 de junho de 2011

A Missa do Ateu (janeiro de 1836)

Personagens: Horácio Bianchon, Desplein, Bourgeat.

A história se passa entre 1823 e 1830.

São quinze encantadoras páginas. Aqui Balzac mostra, como em A Mensagem, seu talento para narrativas curtas. E que talento!
Temos três personagens. Horácio Bianchon é uma das figuras mais interessantes da Comédia Humana. Ele não é protagonista de nenhuma história, mas também não chega a ser um coadjuvante. Como médico, ele entra em várias casas, testemunha diversas cenas, assiste variadas tramas. O famoso cirurgião Desplein, já falecido quando a história é contada, teve um modelo real e de todos conhecido: o cirurgião da família real Guillaume Dupuytren. A Missa do Ateu foi publicada em 1836, uma ano após a morte de Dupuytren, de modo que o público reconhecia nos traços do personagem seu molde. E, por fim, Bourgeat, o carregador de água, benfeitor de Desplein, cuja as ações o cirurgião relata ao seu antigo pupilo.
Certa vez, Bianchon surpreendeu seu professor Desplein, ateu confesso e crítico mordaz da religião católica entrando em uma igreja para assistir a uma missa. O jovem médico, intrigado e curioso, resolveu investigar e descobriu que Desplein assistia à missa naquela Igreja quatro vezes por ano.
Algum tempo depois, em um momento oportuno, Bianchon questionou seu mestre. Desplein contou, então, sua chegada a Paris e a pobreza absoluta e terrível em que viveu quando iniciou seus estudos de medicina. Desesperado, sem dinheiro para pagar o aluguel, os exames e a comida, Desplein foi auxiliado por seu vizinho Bourgeat, um carregador de água. O homem permitiu que Desplein morasse com ele, emprestou dinheiro para os exames e para que ele pudesse se manter na faculdade. Bourgeat viveu pouco para ver o sucesso de seu protegido. Desplein cuidou dele durante sua enfermidade. Após a morte de Bourgeat, Desplein julgou acertado, já que seu protetor era muito devoto, constituir um legado para que fossem rezadas quatro missas por ano em sua memória na igreja do Santo Suplício. E o cirurgião comparecia às missas, rezando, apesar de sua ausência de fé, pela alma de Bourgeat.
O interessante é que a história é contada, sem fazer o narrador nenhum juízo. E, ao final de quinze páginas, “um mundo de ideias tem-se agitado em nós” como disse acertadamente o crítico Paul Bourget.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Crônica da vida de uma mulher

Crônica da vida de uma mulher. Arthur Schnitzler. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008. Tradução de Marcelo Backes.

Lido entre 11 e 19 de maio de 2011.

Crônica da vida de uma mulher foi o último trabalho publicado por Arthur Schnitzler, em 1928, três anos antes de sua morte. Teve uma primeira edição de 30 mil exemplares, algo extraordinário para a época.
Narra a história de Therese Fabiani dos 16 até os 40 anos. Therese era filha de um militar e de uma mulher de ascendência nobre.  Morava com os pais e o irmão mais velho, Karl, em Viena. Com a aposentadoria do pai, foram residir em Salzburgo. Lá o pai revelou os primeiros sinais de loucura, um tema que aparece em quase todos os trabalhos de Schnitzler. Sua internação em uma instituição psiquiátrica precipitou a desagregação da vida de Therese que é, afinal, o tema do romance. O irmão deixou a casa e foi residir em Viena. Therese iniciou então um inocente namoro com um colega de Karl, Alfred Nüllheim. Sua mãe, contudo, a encorajava a aceitar a corte do velho conde Benkheim que poderia proporcionar melhores condições à família. Therese repeliu a ideia. Logo, Alfred foi para Viena para estudar medicina prometendo casar-se com Therese depois da formatura. Nesse meio tempo, ela estava flertando com o tenente coronel Max. Perdeu a virgindade com ele e tornou-se sua amante. Saía de casa e retornava de madrugada ou na manhã seguinte, sendo que sua mãe era completamente indiferente a esse comportamento. Alfred acabou descobrindo e rompeu com Therese. Ela terminou o romance com Max e foi morar sozinha em Viena, onde pretendia trabalhar como preceptora. A mãe, que passou a se dedicar a escrever romances populares, não manifestou nada quando da quase fuga da filha. 
Em Viena, Therese começou sua vida errante de preceptora, de casa em casa. Vivia completamente sozinha. Às vezes se aproximava de uma criada ou governanta de uma família próxima da de seus empregadores. Conheceu um homem, músico e pintor, chamado Kasimir Tobisch. Tornaram-se amantes e Therese engravidou. Pensou diversas vezes em abortar, mas não teve coragem. Tobisch, ao saber da gravidez, desapareceu. Teve o filho, um menino, na pensão da senhorita Nebling. Pensou em matar o filho na hora em que ele nasceu. Therese conseguiu uma família de camponeses em Enzbach, próximo a Viena, para cuidar do menino. 
Ela voltou então à sua vida de preceptora. Em algumas casas passava mais tempo, em outras ficava poucos dias. Às vezes se afeiçoava às crianças, às vezes não. Testemunhava dramas familiares e histórias felizes. Quando tinha folga, visitava o pequeno Franz que crescia com a família Leutner. De tempos em tempos, envolvia-se com um homem. Em geral, entregava-se logo e o relacionamento não durava muito. De um de seus amantes, o Conselheiro Ministerial Bing, engravidou. Fez um aborto sem que ele soubesse. Reencontrou Alfred, agora médico psiquiatra. Depois um tempo, tornaram-se amantes. O relacionamento acabou e Alfred casou com outra moça. 
Visitava, de vez em quando, a mãe e o irmão. O irmão era médico, mas seu interesse maior era a política. Estava engajado em uma partido nacionalista e antissemita. Em uma das casas em que trabalhou, se afeiçoou muito ao menino Robert, a ponto de sentir  culpada por não sentir o mesmo pelo filho. Se apaixonou por um jovem estudante chamado Richard, que lhe foi apresentado pela amiga Sylvie. O rapaz se suicidou. 
Franz, à medida em que crescia, apresentava um comportamento difícil. Therese acabou alugando um apartamento para morar com o menino e dar aulas particulares. Mas o menino, depois de alguns meses, não foi mais à escola. Passou a roubar-lhe dinheiro e a desaparecer de casa, até que um dia foi embora e não retornou mais. Entre as suas alunas, Therese se afeiçoou a Thilda. A moça a convidou para a sua casa e seu pai, o senhor Wohlschein, um abastado comerciante, pediu Therese em casamento. Thilda casou e foi morar na Holanda. Wohlschein faleceu subitamente. 
Franz tornou-se um marginal. Era preso, saía de prisão, voltava a ser preso. Aparecia na casa de Therese ou mandava amigos até lá para pedir dinheiro. Muitas vezes a ameaçava. Numa das vezes chamou-a de prostituta e cobrou dela sua condição de filho bastardo. Em uma ocasião, querendo dinheiro e diante da negativa de Therese a atacou e a matou. Ela, antes de morrer disse a Alfred, que foi chamado, que o filho não era culpado, pois ela quase o matara quando ele nasceu. 
A história de Therese me lembrou os quadros de Edward Hopper, especialmente The Hotel Room. É uma história sobre a solidão da vida contemporânea urbana. Durante milênios, os homens viveram em comunidades nas quais se relacionavam com as mesmas pessoas, familiares e vizinhos, por toda a vida. Os laços eram quase eternos. As cidades mudaram esse panorama, mas não muito até o século XIX. A disseminação da prestação de serviços criou esse mundo de laços fugidios ao qual estamos acostumados e que Schnitzler retratou de forma tão precisa em Crônica da vida de uma mulher. A vida de preceptora e de professora particular de Therese é essa vida estranha em que há uma enorme proximidade e intimidade com alguém e, algum tempo depois, essa pessoa desaparece para sempre. Quem trabalha em uma empresa ou repartição pública conhece isso muito bem. Não sei se Schnitzler desejou mostrar isso, mas foi o que mais me chamou atenção.
The Hotel Room - Edward Hopper
O autor, sem dúvida, quis explorar o tema da culpa. Therese se sentia culpada pelo nascimento bastardo do filho, por ter desejado a sua morte, por tê-lo deixado aos cuidados dos Leutner, por deixar, muitas vezes de visitá-lo para ficar com seus amantes, por amá-lo menos do que amou alguns de seus pupilos. E é essa culpa que ela expia com sua morte pelas mãos de Franz. Mas todas as mães, mesmo as mais exemplares, se sentem culpadas. Therese não leva em consideração que ela teve Franz, quando poderia tê-lo abortado, trabalhava para mantê-lo com uma família decente, levou ele para morar com ele quando pode, tolerou seus roubos e indisciplinas enquanto pode.
Marcelo Backes, o tradutor, sugere que a história de Therese poderia ser uma alegoria da decadência do Império Austro-Húngaro. Afinal, no início ela parecia ter um futuro promissor. Seu pai era militar, sua mãe era educada e ela teve a perspectiva de casar-se com o médico Alfred. E uma série de reveses a levam à decadência e morte. É uma possibilidade.
A narrativa, como todas de Schnitzler, é primorosa. Sem ter exatamente uma ação principal a desenvolver, o autor prende a atenção do leitor até o final.

sábado, 18 de junho de 2011

O Coronel Chabert (fevereiro/março de 1832)

Personagens: Godeschal, Derville, Coronel Jacinto Chabert, Verginaud, Condessa Rosina Ferraud ("viúva" de Chabert), Conde Ferraud.

A história se passa entre a batalha de Eylau e 1840.

O Coronel Chabert é mais uma história - como Uma estreia na Vida, A Interdição e O Contrato de Casamento - tributária dos anos que Balzac passou como escrevente de cartório. A ideia parece ter vindo da casa de Zulma Carraud. Um amigo do senhor Carraud, antigo oficial de Napoleão, senhor Dupac, foi dado como morto no campo de batalha e teve dificuldades em se identificar ao retornar a Paris.
Aqui Balzac conta a história do coronel Chabert, dado por morto na batalha de Eylau. Sua esposa, Rosina, julgando-se viúva casou com o conde Ferraud, com quem teve dois filhos. Com o retorno de Chabert, e a possibilidade da condessa ter de restituir a ele parte da sua fortuna, ela o repeliu e negou que ele fosse seu primeiro marido. Chabert procurou então o advogado Derville. O advogado inciou o processo, prevenindo Chabert da dificuldade do seu pleito. Com medo da anulação de seu segundo casamento, já que desconfiava que o conde Ferraud estava com intenções de desposar a filha de um par de França, Rosina armou um ardil para que Chabert desistisse do processo. Ao descobrir o embuste, o coronel desistiu de lutar e encerrou-se no asilo de velhice de Bicêtre.
Em O Coronel Chabert, Balzac apresenta o mesmo pessimismo de O Pai Goriot. É um Derville cético que , ao final, compara as atividades do padre, do médico e do advogado: “Sabes meu caro (...) que há na nossa sociedade três homens, o padre, o médico e o legista, que não podem estimar o mundo. Trajam vestes pretas, talvez carreguem o luto de todas as virtudes, de todas as ilusões. O mais infeliz dos três é o advogado. Quando um homem vai em busca do padre, ele o faz impelir pelo arrependimento, pelo remorso ou por crenças que o tornam interessante, que o engrandecem e que consolam a alma do mediador (...): ele purifica, conserta, reconcilia. Mas nós, advogados, vemos os mesmos sentimentos maus se repetirem; nada os corrige; nossos escritórios são esgotos que não se pode limpar. Quanta coisa eu aprendi no exercício da minha função! Vi um pai morrer num celeiro, sem cheta, abandonado pelas duas filhas a quem dera quarenta mil francos de renda! Vi queimarem testamentos; vi mães despojando os filhos, aproveitando-se do amor que lhes inspiravam para deixá-los loucos ou imbecis, a fim de poderem viver em paz com seus amantes. Vi mulheres dando ao filho do primeiro leito hábitos que lhes deviam acarretar a morte, a fim de enriquecerem o filho do amor. Não lhe posso dizer tudo o que vi, porque vi crimes contra os quais a justiça é impotente." Aqui Derville enumerou os enredos de O Pai Goriot, Úrsula Mirouët, Uma estreia na Vida e A mulher de Trinta Anos.

sábado, 11 de junho de 2011

O retorno de Casanova

O retorno de Casanova. Arthur Schnitzler. São Paulo: Cia das Letras, 1988. tradução de Günther H. Wetzel.

Novela curta de Arthur Schnizler publicada em 1918, cria, ficcionalmente, um episódio da vida do aventureiro italiano Giovanni Jacobo Casanova (1725-1798).
Aos cinquenta e três anos, Casanova, empobrecido e esquecido, resolveu retornar à sua cidade natal, Veneza, de onde fora banido vinte e cinco anos antes, por ser uma opositor político da república. De passagem por Mântua, reencontrou um velho conhecido, Olivo. Vários anos antes, Casanova ajudou Olivo a casar-se com sua amada, Amalia, dando-lhes uma soma em dinheiro. Em retribuição, Amalia passou uma noite com ele. Em Mântua, Olivo convidou Casanova a conhecer sua próspera propriedade e suas três filhas. Casanova, esperando ansioso uma resposta do Conselho Supremo de Veneza, autorizando seu retorno, declinou do convite. Mudou de ideia, todavia, quando Olivo mencionou uma sobrinha órfã que morava com ele, Marcolina. Casanova partiu com Olivo. Lá chegando, encontraram as três filhas, Maria, Nanetta e Teresina, de oito, dez e treze anos, respectivamente, e Amalia. E encontraram a jovem Marcolina, a quem Casanova decidiu conquistar.
Amalia, por sua, vez, num momento oportuno, expressou seu desejo de voltar a dormir com o sedutor. Descobrimos, então, que a mãe da senhora Olivo também fora amante de Casanova. Mas ele só queria Marcolina.
Marcolina era uma moça de inteligência ímpar que dedicava seu tempo ao estudo da matemática e da filosofia. Discutiu com Casanova uma polêmica que tinha ele com Voltaire. À noite, reuniu-se um grupo em casa de Olivo para conhecer o ilustre convidado e jogar: o marquês e a marquesa Celsi, os irmãos Ricardi, o abade Rossi e o tenente Lorenzi. Casanova logo intuiu que Marcolina e Lorenzi tinham um relacionamento.
Ao final da noite, Casanova falou a Amalia que desejava possuir sua sobrinha. Ela respondeu que Marcolina jamais se entregaria a nenhum homem, que já recusara vários pedidos de casamento. Durante a madrugada, Casanova, insone, surpreendeu Lorenzi saindo dos aposentos de Marcolina.
No dia seguinte, Casanova recebeu uma carta de Bragandino, do Conselho de Veneza. Ele propunha que Casanova retornasse e servisse de espião para o Conselho mediante uma vultosa quantia
À noite, Lorenzi, que ao que tudo indicava era amante da marquesa, perdeu uma grande quantia para o marquês no jogo e deveria pagar até a manhã seguinte. Casanova propôs um negócio a Lorenzi: ele lhe daria o dinheiro e em troca ele deixaria ele - Casanova - dormir com Marcolina em seu lugar, sem que ela percebesse. Lorenzi aceitou. Durante a madrugada, foi feito o embuste. Mas Casanova dormiu e acordou com o olhar de nojo e desprezo de uma horrorizada Marcolina. Ele fugiu, praticamente nu e encontrou Lorenzi que o desafiou para um duelo. Querendo ficar em igualdade de condições, o tenente também se despiu, revelando seu corpo jovem e perfeito. Casanova matou Lorenzi e fugiu para Veneza, aparentemente aceitando a oferta do Conselho Supremo.
O tema aqui explorado por Schnizler é a velhice e suas consequências: a perda do vigor, da beleza física, da atratividade ao sexo oposto. O Casanova de Schnizler não é absolutamente um homem repulsivo. Ele é amante de sua hospedeira em Mântua, é desejado ardentemente por Amalia e, em uma cena, ao mesmo tempo ousada e natural, deflora a filha mais velha de Olivo, Teresina, de treze anos. Mas é a juventude, a mulher jovem que ele quer e que não se encontra mais em condições de conquistar. Em dois momentos ele se olha no espelho e vê que que aquele homem, balofo e flácido, não tem como competir com Lorenzi, no auge de sua beleza e de seu vigor físico. E isso é algo inexorável, insolúvel.
O único ponto da história que não é ficcional é o fato de que Casanova foi sondado para atuar como espião pela república de Veneza. O resto é criação de Schnizler.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Vida e Destino - a luta


A pergunta que não quer calar quando lemos Vida e Destino é: como um homem que conhecia tão bem o sistema soviético acreditou que poderia publicar algo tão herético a ponto de entregar a obra a uma editora oficial? Não há nada sutil ou disfarçado na crítica de Grossman ao stalinismo. Ele segue o conselho que se dá a quem quer fazer literatura: não explique, mostre! Ele mostra que o campo de concentração alemão é igual ao campo de trabalho soviético. Ele mostra a estupidez e insanidade da burocracia. Ele mostra Hitler passando a espada do anti-semintismo a Stálin, uma alusão à perseguição aos judeus na década de 1950. Ele faz uma crítica arrepiante ao culto à personalidade, quando Victor atende um telefonema e é o próprio Stálin do outro lado da linha. Ele fala do colaboracionismo com o exército alemão. Da participação dos ucranianos no holocausto. Mostra o comunista exemplar Krymov ser preso sem saber o motivo, como aconteceu com milhares. Segundo Robert Chandler, o poder de outros escritores dissidentes - Solzhenitsyn, Nadehzda Mandelstam, Pasternak - decorre de suas posições de outsiders. Já o poder de Grossman deriva de seu íntimo conhecimento de cada nível da sociedade soviética. Então, como ele pode acreditar que Vida e Destino passaria?
Em outubro de 1960, contrariando o conselho de seus amigos Semyon Lipkin e Yekaterina Zabolotskaya, Grossman entregou o manuscrito aos editores do Znamya. Era a época do “degelo” de Krushchev e Grossman realmente acreditava que Vida e Destino poderia ser publicada. Em fevereiro de 1961, três funcionários da KGB invadiram o apartamento do escritor para confiscar o manuscrito e materiais correlatos. Até o papel carbono e os tipos da máquina de escrever foram recolhidos. Essa foi uma das ocasiões em que as autoridades soviéticas “prenderam um livro” ao invés de prender uma pessoa. Somente Arquipélago Gulag foi julgado tão perigoso. Grossman se recusou a assinar uma declaração para não revelar a visita da KGB, mas de resto colaborou com os agentes dando o nome do seu primo e de dois datilógrafos que possuíam cópias. Mas a KGB falhou em descobrir que havia duas outras cópias: uma com Semyon Lipkin e outra com Lyolya Dominikina, uma amiga do tempo de estudante, sem relação com o mundo literário.
Muitos julgam ter sido Grossman insanamente ingênuo ao acreditar que seria possível publicar Vida e Destino na União Soviética. Havia, de fato, na época, uma atmosfera de esperança desde que Krushchev denunciou os crimes de Stálin em 1956. Mas Chandler considera que não foi ingenuidade de Grossman: foi simplesmente cansaço de acomodar suas ideias às demandas das autoridades. Ele sabia que poderia ser preso e não contou nem para Lipkin que deixara uma cópia do livro com Dominikina.
Grossman continuou insistindo na publicação. Mikhail Suslov, importante ideólogo do partido comunista nos anos Krushchev e Brehznev, declarou a que obra não seria publicada em duzentos ou trezentos anos.
Temendo a perda do seu trabalho, Grossman entrou em depressão. Lipkin disse: “Grossman envelheceu diante dos nosso olhos. Tornou-se grisalho e calvo. Sua asma retornou.“ Nas palavras dele: “Eles me estrangularam em uma esquina escura.
Ele relacionava a publicação de Vida e Destino à memória de sua mãe. No vigésimo aniversário da morte de Yekaterina, em 1961, ele escreveu uma carta na qual dizia: “Eu sou você, querida mãe, e enquanto eu viver, você viverá também. Quando eu morrer, você continuará vivendo nesse livro, que eu dediquei a você e e cujo destino está ligado ao seu destino”. Com o tempo, ele passou a se referir ao livro como a um ser vivo. Em uma de suas tentativas escreveu em uma carta para Krushchev: ¨Não existe sentido ou verdade na minha situação presente, na minha liberdade física, enquanto o livro ao qual dediquei a minha vida está na prisão. Peço liberdade ao meu livro”.
A liberdade não veio e Grossman, amargurado e desiludido, faleceu em 1964, aos 59 anos. Mas Mikhail Suslov estava enganado: vinte anos depois os russos puderam conhecer esse trabalho extraordinário e corajoso.
Tenho esperança que a excelente Editora Cosac Naify, aproveitando a qualidade dos tradutores brasileiros da língua russa, traga Vida e Destino para os brasileiros. A editora já dispõe de uma catálogo invejável de obras russas, primorosamente traduzidas. Vida e Destino
precisa constar nesse catálogo.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Vida e Destino - o homem


Vasily Grossman nasceu em em 1905 em Berdichev, na Ucrânia, cidade que tinha uma das maiores populações judaicas da Europa Central. Sua família pertencia à elite educada do local e era assimilada. Seus pais se separaram e Grossman chegou a morar entre 1910 e 1912 na Suíça, com sua mãe, Yekatarina Savelievna. Durante a guerra civil, sua família escapou de um grande massacre de judeus na Ucrânia, quando cerca de 150 mil foram assassinados.
Entre 1924 e 1929, estudou Química na Universidade de Moscou. Lá descobriu sua vocação literária, sem, todavia, nunca ter perdido o interesse pela ciência, daí fazer de um físico de seu alter ego em
Vida e Destino. Em 1928, casou-se com Anna Petrovna Matsuk-Galy com quem teve, em 1930, sua única filha Ekaterina. Depois da graduação, trabalhou como inspetor de segurança em uma mina e como professor de Química em um centro médico em Donbasss. Em 1934, publicou Na cidade de Berdichev, um conto, e Glyukauf, uma novela, que chamaram a atenção da crítica. Em 1937, Grossman foi admitido na União de Escritores Soviéticos e seu livro Stephan Kol’chugin foi indicado para o Prêmio Stálin.
Apesar dessas obras serem hoje identificadas com o realismo socialista, não foram consideradas tão ortodoxas na época. Gorki criticava Grossman por apresentar detalhes não palatáveis da realidade e Stálin retirou
Stephan Kol’chugin da lista do prêmio que levava seu nome, por considerar que o personagem principal simpatizava com os mencheviques. Existia um comprometimento de Grossman com a verdade, que em Vida e Destino, ele levou às últimas consequências.
Grossman também teve atitudes incomuns e corajosas, quando do grande terror da década de 1930. Em 1935, já separado de Anna, conheceu Olga Guber, cinco anos mais velha do que ele Em 1937, o ex marido de Olga foi preso e assassinado. No ano seguinte, quando Olga foi presa, ele adotou os dois filhos dela, que, caso contrário, seriam enviados para um campo para filhos de inimigos do povo. Grossman foi mais longe, escrevendo para Yezhov, o chefe do serviço secreto, declarando que Olga era agora sua esposa e nada mais tinha a ver com o ex-marido e deveria ser liberada, como de fato, ocorreu. Nessa ocasião, Grossman chegou a ser interrogado na sinistra prisão Lubianka, experiência vivida por Krymov em
Vida e Destino.
Grossman sempre teve interesse pelo exército. Com o início da guerra, se alistou como soldado comum, mas acabou servindo como correspondente do jornal
Krasnaya Zvesda. Ele cobriu batalhas importantes da defesa de Moscou à queda de Berlim. Seus artigos agradavam tanto soldados quanto oficiais.
Começou escrever seu cadernos de notas em agosto de 1941. E algumas das passagens desses cadernos, poderiam ter lhe custado a vida. Aparecem críticas a importantes comandantes e temas tabu como deserção e colaboração com os alemães, todas questões que aprecem em
Vida e Destino.
Ele conversou com um número enorme de pessoas. Tinha uma memória extraordinária, o que permitia que conversasse sem tomar notas, ganhando facilmente a confiança do ouvinte. Generais, franco-atiradores, pilotos de avião, soldados do batalhão penal, prisioneiros alemães, civis, todos conversavam com Grossman. Ortenberg, o editor chefe de
Krasnaya Zvesda, escreveu: “todos os correspondentes ligados ao front de Stalingrado ficaram impressionados como Grossman fez o comandante de divisão (...), um calado e reservado siberiano, conversar com ele por seis horas, (...), contando tudo o que ele queria saber, em um dos piores momentos”. Em uma ocasião, Grossman acompanhou o famoso franco-atirador Chekhov ao seu posto e o entrevistou enquanto ele matava alemães.
A morte da mãe em um massacre de judeus perpetrado pelos nazistas em Berdichev foi uma dor que Grossman carregou por toda a vida. Ele culpava a esposa, Olga Mikhailovna, que pouco antes da guerra não concordou em receber a sogra em Moscou. O episódio aparece retratado em
Vida e Destino com respeito ao alter ego de Grossman, o físico nuclear Victor Shturm. Uma das mais tocantes passagens do livro é a carta escrita por Anna Semyonovna, mãe de Victor, ao filho, do gueto, onde estava presa. Após a morte de Grossman, foi encontrado um envelope entre seus pertences com duas cartas para a mãe, uma escrita em 1950 e a outra em 1961, e duas fotos. A primeira foto mostrava Yeakaterina com Vasily ainda criança. A outra era uma foto tomada de um oficial nazista, com uma pilha de corpos de mulheres e meninas.
Em janeiro de 1943, pouco antes da queda de Stalingrado, Grossman foi substituído por Konstantin Simonov, o autor do famoso poema “Espere por mim”. Ele sentiu-se traído tendo de deixar a cidade naquele momento
Após, Grossman acompanhou o Exército Vermelho na libertação da Ucrânia, onde tomou conhecimento dos massacres dos judeus, bem como dos últimos dias de sua mãe. O conto
O Velho Professor o o artigo A Ucrânia sem judeus estão entre as primeiras manifestações escritas sobre holocausto. E o artigo O inferno de Treblinka escrito no final de 1944, foi o primeiro artigo escrito sobre os campos de concentração e foi utilizado como prova em Nuremberg.
O escritor descobriu algo incômodo para o regime stalinista: a recepção calorosa dos ucranianos ao exército nazista e sua ativa participação no massacre dos judeus. Isso tinha íntima relação com a terrível fome que assolou a região com as coletivizações da década de 1930. O governo espalhou na época boatos de que os judeus seriam responsáveis pela falta de comida.
Grossman foi o primeiro jornalista a documentar o início - os massacres na Ucrânia - e o fim - os campos de extermínio na Polônia - do holocausto. Em Treblinka, os alemães tentaram destruir os indícios da existência do campo. Grossman entrevistou camponeses e os quarenta sobreviventes, tentando reconstituir o funcionamento do campo. Ele estava se arriscando, uma que vez a política stalinista recomendava que se divulgasse que “todas as nacionalidades sofreram igualmente sob o nazismo”. Admitir que os judeus foram a maioria das vítimas, significava admitir a cumplicidade de alguns grupos, especialmente dos ucranianos, com os nazistas.
Entre 1943 e 1946, Grossman trabalhou com Ilya Eherenburg para o Comitê judaico anti-fascista no
Livro Negro, um documento a respeito dos massacres de judeus na União Soviética e na Polônia. Esse livro somente foi publicado em Israel em 1980.
Para Grossman se tratava de uma dívida sentimental. Ele não se identificava como judeu até que sua mãe morreu por ser judia. Estudar e divulgar o holocausto era uma forma de se reconciliar com as suas origens.
O movimento de Grossman em direção à dissidência foi gradual. Durante a guerra se mostrou totalmente destemido em relação à polícia política. Mas em 1952, na época da perseguição aos judeus, ele assinou uma carta que pedia punição aos médicos judeus supostamente envolvidos em um complô contra a vida de Stálin. A incoerência do escritor pode parecer surpreendente, mas fica muito mais clara nas páginas de
Vida e Destino, quando Victor assina uma carta desse tipo. Na década de 1950, Grossman teve algum sucesso de público. Foi condecorado com a Cruz Vermelha do Trabalho e conseguiu publicar Por uma causa. Nessa época estava escrevendo suas duas maiores obras, Tudo flui e Vida e Destino. Ambas foram publicadas na Rússia somente na década de 1980.
Grossman tentou publicar
Vida e Destino na década de 1960. A possibilidade de perder seu trabalho, levou-o à depressão. Mesmo assim não parou de trabalhar. Ele escreveu A Paz esteja contigo, um relato de uma viagem à Armênia. E dedicou-se a completar Tudo flui, um trabalho ainda mais crítico do que Vida e Destino. Parte ficção, parte reflexão, inclui um estudo sobre os campos, páginas eloquentes sobre a fome do início da década de 1930, um ataque a Lênin e uma reflexão sobre “a alma escrava” dos russos que ainda enfurece os nacionalistas.
Vassily Grossman, que nessa época, estava sofrendo de câncer do estômago, faleceu em 14 de setembro 1964, ao 59 anos, sem saber se seu maior trabalho seria um dia conhecido pelo público.

A maior parte das informações foram retiradas do prefácio de Life and Fate escrito por Robert Chandler. Os títulos dos livros foram traduzidos para o português por mim.

sábado, 4 de junho de 2011

Vida e Destino - o livro


Life and Fate. Vasily Grossman. New York: New York Review Books classics, 2006. Tradução de Robert Chandler.

O nome de Vasily Grossman foi um dos tantos nomes de escritores soviéticos que figuravam no livro Sussurros, por mim aqui resenhado. Mas somente me chamou atenção quando li um belíssimo texto de sua autoria na edição número 51 da revista Piauí denominado A Madona Sisitina. Nesse texto ele conta sua ida até o Museu Púchkin, em Moscou, para ver a Madona Sistina de Rafael. Era um dos quadros que fora trazido pelos russos de Dresden após a vitória aliada e que, dez anos após, retornaria à Alemanha. Antes da repatriação, porém, ficaria exposto três meses em Moscou. A pequena biografia apresentada pela revista dizia que Grossman havia escrito Vida e Destino, considerado por alguns o maior romance russo do século XX.
Como havia ganhado um Kindle de Natal, providenciei o livro, ávida por saborear as quase novecentas páginas.
Li o livro em dois meses. O inglês não é difícil e com o recurso do dicionário do Kindle fica fácil consultar as palavras desconhecidas que, afinal, se repetem. A maior dificuldade é o número enorme de personagens, todos com complicados nomes russos. No final do livro há uma divisão por núcleos de personagens que ajuda bastante.
Vida e Destino é um épico intimista. Vassily Grossman pretendeu retratar toda uma era. Cada personagem representa um grupo ou classe e seu destino exemplifica o destino daquele grupo ou classe. Victor Shtrum, o intelectual judeu, alter ego de Grossman; Getmanov, o cínico funcionário stalinista; Abarchuk e Krymov, dois velhos bolcheviques presos na década de 1930; Novikov, o oficial talentoso, cujas habilidades só foram reconhecidas depois dos desastres de 1941. Todavia, não foram tipos que Grossman construiu. São personagens complexos, cheios de contradições e humanidade. São enredos que apresentam um sutil entendimento das escolhas morais, da culpa, da duplicidade do ser humano. De acordo com Robert Chandler, essas características aproximam Grossman de um escritor que trabalhou em escala bem diversa: Anton Tchekov.
Ao final da leitura de Vida e Destino temos um painel de importância tanto literária como histórica da Rússia stalinista, a exemplo do que fez Liev Tolstói em Guerra e Paz. Mas cada um dos capítulos isolados funciona como um conto de Tchekov. Episódios como o da médica judia que deixa de salvar sua vida para ficar até a morte na câmara de gás com o menino abandonado; da mulher que, apesar de apaixonada pelo namorado com que poderá ter um futuro promissor, escolhe ficar com o ex-marido, um bolchevique que está preso na sinistra Lubianka; do jovem soldado soviético que entra em uma cratera para salvar-se de um bombardeio e lá dá a mão a um camarada e após vem a descobrir que o companheiro era um jovem soldado alemão; do motorista do Exército Vermelho, entusiasta das coletivizações da década de 1930, que é abandonado para morrer pelos alemães e é salvo por um velha camponesa ucraniana que é a única sobrevivente de um família da fome causada pela coletivização, têm um acento tão tchekoviano que traem a preferência literária de Grossmann : seus escritores favoritos eram Tolstói e Tchekov.
A estrutura de Vida e Destino é similar à de Guerra e Paz: a vida de uma país inteiro é evocada através de membros de uma única família e enredos secundários.
Aleksandra Vladimirovna Shaposhnikovna é uma idosa ligada à intelligentsia pré-revolucionária. Seus filhos e suas famílias são as figuras centrais da história.
Lyudmila, a filha mais velha de Aleksandra, é esposa do físico Victor Shtrum. Eles são pais da jovem Nadya. Victor tem um cargo importante em um instituto de Física em Moscou. No início do romance, o instituto havia sido transferido para Kazan por causa dos ataques alemães. Victor e Lyudmilla (Lyuba) estão em crise. O motivo principal foi a negativa da Lyuba em receber em Moscou a mãe de Victor, Anna Semyonovna, que estava na Ucrânia. Houve um grande massacre de judeus pelos alemães na região e Anna foi assassinada. Victor se sente culpado e culpa Lyuba pela morte da mãe. A carta de Anna, escrita do gueto para Victor, é uma das mais belas passagens do romance.
Em Kazan, Victor e seus colegas desfrutam de um certo clima de liberdade em função da guerra. Reúnem-se na casa de Pyotr Solokov com o historiador Madyrov, cunhado de Solokov, e com Karimov. Há discussões sobre política e, mais tarde, em Moscou, Victor se arrependerá dessas conversas. Ele começa a envolver-se emocionalmente com Marya Solokova, a esposa do colega.
O ex-marido de Lyuba, Abarchuk, é um bolchevique da época da revolução que fora preso na década de 1930. Está em um campo de trabalho. Com Abarchuk, Lyuba teve Anatoly, Tolya, um soldado que está no front. Lyuba recebe a notícia de que o filho foi ferido. Ela viaja para visitá-lo e, ao chegar ao hospital, é informada que que o rapaz já falecera. A dor pela morte do filho afasta ainda mais Lyuba de Victor.
A filha mais nova de Aleksandra, Yevgenia, Zhenya, é um bela mulher, artista plástica, dividida entre um amor por um homem e a fidelidade em relação ao outro. Ela está separada de Krymov, um comissário do Exército Vermelho, bolchevique de primeira hora e está apaixonada por Novikov, um talentoso oficial. No início da narrativa ela está morando em Kuibyshev, onde divide um quarto com Jenny Gerinkhovna, uma antiga governanta da casa dos Shaposhnikov, de origem alemã. Lá ela luta para obter um visto de permanência, que é negado sem justificativa pelo burocrata Grishin. Jenny termina sendo presa. Também convive com o princípe Valdimir Shargorodski, que esteve exilado entre 1926 e 1933 e retornou à Rússia espontaneamente e com Limonov, um literato de Moscou. No final, Zhenya é informada de que Krymov fora preso em Stalingrado e encontra-se na prisão Lubianka. Novikov a amava há muito, desde antes de seu casamento com Krymov. Mas ela julga que não pode abandonar o ex-marido, ao mesmo tempo que teme que confidências feitas a Novikov tenham motivado a prisão de Krymov.
Aleksandra tinha ainda outra filha, Marusya, que morreu afogada no Volga durante a evacuação de Stalingrado. O viúvo de Marusya, Spiridinov, é diretor de estação de força de Stalingrado e permanceu na cidade com a filha Vera. Vera se recusa a deixar o pai e aguarda o retorno do namorado, Viktorov, piloto de avião, de quem espera um filho. O bebê nasce e Spiridinov se ausenta de seu posto por um dia para ver a filha. Por isso, é chamado a depor pelas autoridades. Vera espera sem saber que o avião de seu amado caiu e ele faleceu.
Há ainda um filho de Aleksandra, Dmitry, que fora preso no final dos anos 1930. Ele tem um filho, Seryozha, que está lutando em Stalingrado. Seryozha acaba na Casa 6 ½, uma posição russa isolada pelos alemães na cidade. Quem comanda a casa é Grekov, uma espécie de anarquista. Na casa está também Katya Vengrova, uma operadora de rádio. Ela e Seryozha se apaixonam, o que é problemático, pois Grekov está interessado na moça. No final, ele dispensa o casal. O partido comunista envia Krymov, por um túnel secreto, para a casa. Lá o comissário fica chocado com a falta de disciplina e as ideias de Grekov. Durante a noite, Krymov é atingido por um golpe, presumidamente desferido por Grekov. O comissário é enviado para o hospital. A casa é bombardeada. Somente os soldados Polyakov e Klimov conseguem escapar pelo túnel. Durante o bombardeio, Klimov segura a mão de um soldado alemão julgando que é a de um companheiro russo. Provavelmente, é pelo ocorrido na casa que Krymov é preso e enviado à Lubianka.
Há um núcleo em um campo de concentração alemão. No campo, há vários oficiais soviéticos presos. Lá estão também Mikhail Mostovskoy, um velho bolchevique; Gardi, um padre italiano; Ikonnikov-Morzh, um tolstoiano, considerado insano; Chernetsov, um antigo menchevique. Mostovskoy e Chernetsov discutem o tempo todo questões da época da revolução. Ikonnikov-Morzh termina se suicidando para não ter de participar do extermínio de judeus. E, ao final, o SS Liss, comandante do campo, chama Mostovskoy para uma conversa na qual tenta demonstrar que ambos, apesar de em campos diferentes, têm posicionamentos políticos iguais. Um grupo começa organizar um levante contra os alemães.
Há outro núcleo no campo de trabalho russo, onde está Abarchuk, ex-marido de Lyuba. Além dos presos políticos, existem no campo criminosos comuns. São esses que mandam no local, pois ameaçam os presos políticos para que trabalhem ou façam tarefas por eles. Lá estão Nyeumolinov, um comandante da cavalaria durante a Guerra Civil; Monidze, ex membro da Juventude Comunista Internacional; Magar, um velho bolchevique, professor de Abarchuk; Stepanov, professor de economia.
Há o nucleo de Novikov e seu corpo de tanques. Aqui os personagens principais são o próprio Pyotr Novikov e o comissário Dementiy Getmanov, um funcionário cínico e oportunista.
Os dois núcleos que têm personagens reais são o alto comando do Exército Vermelho em Stalingrado e o o alto comando alemão na cidade. Lá estão Yeremenko, Zakharov, Chuykov, Krilov, Gurov, Pozharsky, Batyuk, Guryev e Rodimsev, todos reais. E do lado alemão, Friedrich Paulus, Schmidt e Adam.
Há ainda outros núcleos. Um grupo de judeus viajando de trem para um campo de extermínio onde está a médica Sofya Levinton, amiga de Zhenya. Um grupo de militares na estepe de Kalmyk. O grupo de pilotos ao qual pertence Viktorov, namorado de Vera. O círculo de amigos do comissário Getmanov.
Em Vida e Destino, Vasily Grossman utilizou tanto experiências pessoais, quanto os inúmeros relatos que ele colheu como repórter junto ao Exército Vermelho por quase quatro anos da Guerra. O episódio da mãe de Victor e do conflito com a esposa é autobiográfico. Yekatarina Savelievna, mãe de Grossman, morreu em um massacre de judeus em Berdichev, na Ucrânia em 1941. Ele culpava a esposa, Olga Mikhailovna, que pouco antes da guerra não concordou com a ida da sogra para Moscou, pois haveria pouco espaço no apartamento. O envolvimento com a esposa de um colega também é autobiográfico. Os conflitos morais de Victor são os mesmos vivenciados por Grossman como intelectual orgânico do stalinismo: assinar ou não uma carta que condenava um inocente? Assinar e sentir a consciência pesada ou não assinar e enfrentar o medo da prisão noturna? Ora a coragem, ora a covardia; ora a ousadia, ora o medo. As passagens referentes a Victor Shtrum são um verdadeiro tratado de psicologia sobre a vida em um estado totalitário e policial. São de Grossman também as lembranças do menino David, que viaja em um comboio para o campo de concentração, e a data do seu aniversário, 12 de dezembro. O personagem Novikov foi inspirado por Babadzhanyan, comandante de tanques que tornou-se marechal. O chefe de Victor, Chepyzin, que foi afastado, foi baseado no cientista Piotr Kapitsa, que se recusou a trabalhar no desenvolvimento da bomba atômica.
Não há nada extravagante em Vida e Destino, nem do ponto de vista estilístico, nem estrutural. Mas os questionamentos de Grossman e sua prática de mostrar a identidade entre comunismo e fascismo fazem de Vida e Destino uma obra extraordinária para a época em que foi escrita. Deve-se ter em conta que, nesse período, nem no Ocidente era feita essa identificação.
Vida e Destino foi escrito no final da década de 1950 e foi publicado na Rússia somente nos anos 1980.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

O Ateneu


Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. ‘Coragem para a luta’. Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico”.
Escrito em primeira pessoa, O Ateneu narra a experiência de Sérgio, alter ego do autor, que aos onze anos ingressou em um internato para continuar seus estudos. O Sérgio que narra é o adulto, o homem que recorda a experiência no Ateneu. Daí seu subtítulo irônico: Crônica de Saudades.
Não há uma história propriamente dita. Sérgio conta episódios dos dois anos em que estudou no internato com o intento de revelar a corrupção e a imoralidade do ambiente escolar. Inicialmente, ele procura relacionar-se de forma sincera com os colegas. Mas logo percebe que o Ateneu, por baixo das “carinhas sonsas, generosa mocidade” oculta um cruel estado de natureza no qual os fortes dominam os fracos. E estar no polo da fraqueza significa atrair um protetor. E a proteção é paga com a submissão sexual: “Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue são impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas aos desamparo (...) Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores“. O conselho de Rebelo foi inicialmente seguido por Sérgio. Ele repeliu Sanches, mas depois estabeleceu relações ambíguas com Bento Alves e Egbert: “Perdeu-se a lição viril de Rebelo; prescindir de protetores. Eu desejei um protetor, alguém que me valesse naquele meio hostil e desconhecido, e um valimento direito mais forte do que palavra (...). Pouco a pouco me ia invadindo a efeminação mórbida das escolas.”
O diretor da escola, Aristarco, por baixo de uma falsa retidão moral, é um homem vaidoso que dirige o estabelecimento de forma mercantil. Os alunos mais ricos são bem tratados, têm regalias, aos passo que os cujos pais atrasam as mensalidades são perseguidos e admoestados. Os poucos bolsistas, existentes para fazer média com o governo e com a sociedade, são tratados com desprezo.
É tristíssima a história de Franco. Filho de um desembargador que mora em outro estado foi praticamente abandonado pela família no Ateneu. Frágil e mau aluno, é sempre castigado. Frequentemente se vinga dos colegas de forma perversa. Acaba por adoecer e morrer sozinho num dos dormitórios frios da instituição.

No segundo ano de internato, Sérgio estabelece relação com Ema, a esposa de Aristarco, que cuida dele quando ele adoece. É período de férias e o colégio está quase vazio. Seus cuidados, inicialmente maternais, aos poucos revelam-se sensuais e erotizados. Ou seja, ninguém escapa do ambiente de perversão e corrupção. Nem Sérgio: “tornei-me um animalzinho ruim”.
No final o Ateneu se incendeia. Presume-se que um aluno, que estava lá obrigado pela família, perpetrou o desastre. O incêndio é desnecessário para a narrativa. Funciona com uma espécie de catarse, de purificação de todos os males do internato.
O estilo de Pompéia é rebuscado e complexo, em muitas passagens, artificial. Sérgio reproduz palestras inteiras de seus professores do Ateneu. Alguns desses trechos são um tanto enfadonhos. O dicionário é imprescindível para a leitura. Mas o esforço é bem recompensado.
Raul Pompéia, quando criança, estudou no colégio Abílio, no Rio de Janeiro, por cinco anos. Foi uma experiência sinistra, que ele imortalizou em O Ateneu. Era um homem atormentado. Suicidou-se no dia 25 de dezembro de 1895.
Eu li O Ateneu quando estava no segundo grau (ensino médio). Agora ouvi em audiolivro. Mas tive que recorrer ao texto muitas vezes em virtude do vocabulário.