quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Z. Marcas

Z. Marcas (1840)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar. 

Personagens: Carlos Rabourdin (narrador, estudante de direito), Justo (estudante de medicina), Zeferino Marcas. 

A história se passa entre 1836 e janeiro de 1838

Paulo Rónai, na introdução desse conto, utiliza a acertada definição de Guyon, em Le Cathécisme Social: "mistura estranha de confidência pessoal, confissão de importância e sátira violenta contra o governo burguês, egoísta e gerontocrata da da Monarquia de Julho". Z. Marcas conta as desventuras de um estrategista político, um autêntico "homem de Estado", traído por políticos medíocres que ele ajudou a colocar no poder. 

Pierre Jean David (David D´Angers), 1843

A história é contada por Carlos Rebourdin, filho de Xavier Rebourdin, de Os funcionários. Carlos e seu colega de quarto, Justo, eram vizinhos de Marcas em uma pensão de estudantes na rue Corneille. Ajudando a mitigar a penúria de Marcas, os jovens escutam suas histórias e passam a admirá-lo. O auxiliam em uma última empreitada que não dá certo e resulta na morte do herói aos 35 anos. 

Rónai aponta o problema do texto. Balzac se identifica com o personagem. Assim Balzac descreve Marcas: "Seus cabelos assemelhavam-se a uma juba, seu nariz era curto, achatado, largo e fendido na ponta, como o de um leão. Tinha a fronte dividida por um sulco profundo, dividida em dois lobos potentes, como a de um leão" (BALZAC, 1991, p. 324). E esses eram seus hábitos: "Trabalhava durante metade da noite. Depois de ter dormido de seis a dez horas, levantava-se paras recomeçar, e escrevia até as três horas. Saía então para ir levar as suas cópias entes do jantar e ia comer na rue Michel-le-Comte, à casa Mizerai, à razão de nove sous por refeição. Voltava depois para deitar-se às seis horas" (BALZAC, 1991, p. 326). É Balzac falando dele mesmo. O problema é que o que é evidente para o autor não o é para o leitor. Onde Balzac vê grandeza e inteligência, nós leitores vemos ambição e vaidade. O texto é grandiloquente e chato. 

Vale a pena destacar ainda que Z. Marcas é uma crítica mordaz da Monarquia de Julho e da sociedade francesa permeada pelo dinheiro: "(...) o Estado, assaltado pelos mais insignificantes postos da magistratura, acabou exigindo dos solicitantes certa fortuna. (...) Hoje o talento precisa  a sorte que faz triunfar a incapacidade; mais ainda, se descura das aviltantes condições que dão êxito à mediocridade rastejante, jamais triunfará" (BALZAC, 1991, p. 322). Mas Balzac mostra isso muito bem em diversos textos. Aqui faz um libelo que está aquém de sua grandeza. 




sexta-feira, 8 de julho de 2022

O deputado de Arcis

O deputado de Arcis (1847)

Volume XII: Estudo de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar

Personagens: sra. Marion, coronel Giguet, Simão Guiget, Grévin (tabelião), Philéas Beauvisage (genro de Grévin), Severina Beauvisage (née Grévin), Varlet filho (médico), Cecília Beauvisage, Francisco Keller (genro do Conde de Gondreville, Malin), Carlos Keller (filho de Francisco), Marechala de Carigliano (filha de Malin), Aquiles Pigoult (tabelião, sucessor de Grévin), Poupard (hospedeiro), João Violette, Antonino Goulard (subprefeito), Olivério Vinet (procurador substituto), Frederico Marest (procurador do Rei), sr. Martener (juiz), sr. Mollot (escrivão), sra. Mollot, srta. Ernestina Mollot, Juliano, Gontardo, Anniette, Paraíso, Marquesa d´Espard, Cavaleiro d`Espard, De Rastignac, Condessa de Rastignac (filha de Delfina de Nuncingen), Máximo de Trailles. 

A história se passa em 1839

O deputado de Arcis é um livro inacabado. Tem somente a primeira parte, A Eleição. Mas, ao contrário de Os pequenos burgueses, lamentamos muito não ter a continuação da história. É o mesmo ambiente e personagens de Um caso tenebroso, 33 anos depois do caso judicial dos Cinq-Cygne. Paulo Rónai nos diz na introdução que que O deputado de Arcis alarga a complexa perspectiva de Um caso tenebroso e "aprofunda em nós a sensação do histórico". 

Philléas Beauvisage

Na parte que conhecemos o protagonista é Simão Giguet, sobrinho da sra. Marion, viúva de Marion, recebedor geral, irmão do Marion que foi testa de ferro de Malin no passado. Simão decide apresentar-se como candidato de oposição nas eleições à Câmara nacional. O posto era, desde 1816, de Francisco Keller, genro do Conde de Gondreville, nosso conhecido Malin. Keller, nomeado par de França, desejava transmitir ao filho Carlos, sua sucessão eleitoral. Mas "eleger o jovem comandante Keller, em 1839, depois de ter eleito o pai durante vinte anos, revelava uma verdadeira servidão eleitoral, contra a qual se revoltava o orgulho de vários burgueses enriquecidos, que julgavam valer tanto como um sr. Malin, Conde de Gondreville, e como os banqueiros Keller irmãos, e os Cinq-Cygne, e até mesmo o rei dos franceses!" (BALZAC, 1991, p. 230). Esse foi o contexto da candidatura de Simão Giguet. 

Há inclusive a insinuação de que Gondreville, aqui com 80 anos, proporia um "filho da terra" como candidato, que cederia seu lugar à Carlos Keller. Há a insinuação de que esse candidato laranja poderia ser Philéas Beauvisage, genro do tabelião Grévin, e filho do granjeiro de Bellache, de Um caso tenebroso. Simão desejava também a mão de Cecília Beauvisage, filha de Philéas (ou filha de um  Visconde de Chargeboeuf que era subprefeito em Arcis na época do seu nascimento). Herdeira rica, faria o sonho da mãe, Severina, de morar em Paris e frequentar à alta sociedade. Mas a jovem, ou melhor, sua família, tinha em vista Carlos Keller para noivo. 

Mas eis que chegou a notícia de que Carlos Keller morreu em guerra na África. Aparentemente o caminho estava livre para Simão. Mas eis que chegou à cidade um nobre desconhecido. "Não há cidade pequena na França na qual, num momento dado, não se represente o drama ou a comédia do forasteiro. Muitas vezes este é um aventureiro que faz vítimas e se vai, levando a reputação de uma mulher ou o dinheiro de uma família" (BALZAC, 1991, p. 276). Não há como não recordar de O Inspetor Geral de Gógol...

O desconhecido não era ninguém menos do que Máximo de Trailles, conhecido dândi, colecionador de mulheres e financeiramente arruinado. Ele vai para Arcis para se candidatar a deputado e garantir a candidatura para a Monarquia de Julho. A decisão foi tomada em Paris, no salão da Marquesa d´Espard, dois meses antes da reunião que abre o romance, que lançou a candidatura de Simão. Sabemos que Máximo manteve conversas com Gondreville e com os Cinq-Cygne, arqui-inimigos em função do caso judicial do passado. E que seus modos finos e a sua equipagem despertaram o interesse de Cecília. Contudo, Balzac parou aqui. 

A trama é tipicamente balzaquiana, com as descrições de ambientes e dos aspectos físicos e psicológicos. O diferencial de O Deputado de Arcis é o proveito que Balzac tira da sua "invenção", de mostrar o passado ou o futuro das sua personagens. O recurso que, em alguns romances, fica um pouco artificial, aqui é utilizado de forma brilhante. Os desfechos iluminam as histórias pregressas. A amizade de Grévin e Malin, a ascensão do filho do granjeiro Beauvisage, o  ministro  De Rastignac, o jovem que olhou Paris do alto da colina do Père-Lachaise no enterro do Pai Goriot

O desfecho seria o sucesso de Máximo de Trailles nas eleições e no coração de Cecília? É o que parece. Mas não esqueçamos que, muitas vezes, Balzac nos surpreende no final. 

BALZAC, Honore de. A Comédia Humana. vol. XII. São Paulo: Globo, 1991. 

Não encontrei a fonte da imagem. O texto é da parte III do romance: "Ele vivia sorrindo a todos. (...) Seus lábios abonecados triam sorrido em um enterro" (BALZAC, 1991, p. 236). 

domingo, 15 de maio de 2022

Um caso tenebroso

Um caso tenebroso (janeiro de 1841)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar

Personagens: Michu, Marta Michu, mãe de Marta, Francisco Michu, Gaucher (criado de Michu), Mariana (criada de Michu), Marion, Malin (conselheiro de Estado, Conde de Gondreville), Grévin (tabelião em Arcis), Corentin, Peyrade, Violette (granjeiro), Lourença de Cinq-Cygne, Paulo Maria e Maria Paulo Simeuse, sr. e sra. d´Hauteserre, Catarina, Gontardo, padre Goujet, srta. Goujet, Durieu (cozinheiro), Goulard (maire), Roberto d´Hauteserre, Adriano d´Hauteserre (Marquês de Cinq-Cygne), José Fouché, Marquês de Chargeboeuf, Beauvisage (granjeiro de Bellache), juiz Lechesneau, Pigoult  (juiz de paz), Bordin (procurador), sr. de Grandville (advogado), príncipe Talleyrand, Marcehal Duroc, Napoleão Bonaparte, Berta de Cinq-Cygne, Paulo de Cinq-Cygne, Princesa de Cadigan, Marquesa d´Espard, De Marsay, De Rastignac, Jorge de Maufrigneuse.

A história se passa entre 1803 e 1833. 

No Castelo de Cinq-Cygne

Neste romance, que Paulo Rónai acertadamente caracteriza como magnífico e opulento, temos uma amostra do que Balzac teria feito se tivesse vivido mais. Um caso tenebroso é uma história que se passa no período do Consulado (10 de novembro de 1799 a 18 de maio de 1804). Não por acaso, ele está, na Comédia Humana, após Um episódio do Terror ambientado na época da Revolução. Balzac nos deixou títulos não escritos como Os soldados da República, Os Franceses no Egito e Moscou. Sofrimento para o leitor balzaquiano não poder ler essas histórias!

Um caso tenebroso compõe a pré-história da Restauração e da Monarquia de Julho. Segundo Rónai, a história interessava a Balzac como repositório dos germes da época em que ele vivia. Lá ele buscava explicações para o que via e o que retratava.

Em setembro de 1800, o senador Dominique Clément de Ris foi raptado em seu castelo em Beauvais por um bando de ladrões. Dezenove dias depois foi libertado sem ter sofrido nenhum dano. José Fouché, Talleyrand e Clément de Ris haviam tramado um golpe contra Bonaparte, caso ele não fosse bem-sucedido na Itália. Com a vitória de Marengo, Fouché mandou seus homens resgatarem documentos comprometedores no castelo de Beauvais, que, por cautela, raptaram o senador. Porém, Napoleão ordenou a investigação e a punição dos culpados. Fouché fez com que um grupo de jovens realistas, desafetos seus, fossem acusados e executados. Balzac conhecia bem a história, pois o senador fora protetor de seu pai, Bernard-François Balssa.

No romance o senador Clément de Ris é Malin. Os acusados são os gêmeos Simeuse, os irmãos Roberto e Adriano d´Hautserre, e o empregado Michu. Eles, de fato, haviam conspirado contra Napoleão, mas, com o perdão do Cônsul, retornaram à França e, juntamente com o sr. e a sra, d´Hautserre e Lourença de Cinq-Cygne, torciam contra o futuro imperador, mas sem agir. A trama, que contou com a participação dos nossos conhecidos Corentin e Peyrade foi muito bem executada, de modo que os acusados, mesmo com a excelente defesa do advogado Grandville, foram condenados. Os nobres tiveram a pena convertida em ingresso no serviço militar e Michu foi condenado à guilhotina. Paulo Maria, noivo de Lourença, Maria Paulo e Roberto D´Hautserre morreram nas guerras napoleônicas. Uma melancólica Lourença casou com Adriano e teve dois filhos, Paulo e Berta. 

Lourença e Napoleão

Fazia algum tempo que não lia Balzac com tanta ansiedade, sem conseguir parar! Muito interessante os matizes que o autor apresenta dentro do espectro político pós-revolucionário. Temos realistas que se disfarçaram de jacobinos para sobreviver e prosperar, radicais que se acomodaram, realistas que aguardavam a volta do Antigo Regime, conspiradores, conformados, indiferentes - os nossos isentões - enfim - e em um quadro móvel. Com respeito ao Império, vários matizes de atitudes, especialmente da nobreza, da luta armada até a colaboração. Dá para entender por que Balzac recuou no tempo para melhor entender a Restauração.  

Temos uma amostra da justiça durante o Consulado, um sistema inquisitorial no qual "o diretor do júri era, ao mesmo atempo agente da polícia judiciária, procurador do Rei, juiz de instrução e corte real" (BALZAC, 1991, p. 155). Balzac critica o júri com o mesmo argumento que já vi membros do Ministério Público utilizarem: "Por isso, é bem possível que os juízes ofereçam aos acusados mais garantias que os jurados. O magistrado não se fia senão nas leis da razão, ao passo que o jurado se deixa impelir pelas vagas do sentimento" (BALZAC, 1991, p. 155). "A inocência nada mais tem por si do que o raciocínio; e o raciocínio que pode impressionar os juízes é muitas vezes impotente sobre o espírito prevenido dos jurados" (BALZAC, 1991 ,p. 172). 

Então, o próprio Napoleão Bonaparte entra na Comédia Humana. É uma cena curta, mas magnífica. Em 13 de outubro de 1806, no vale do rio Saale, em Jena na Prússia, Lourença consegue alcançar o Imperador para pedir clemência, na véspera de uma das maiores vitórias do Imperador. Lembremos que Balzac dizia que queria "conseguir com a pena o que ele [Napoleão] realizou com a espada", admiração que não impede que nosso autor o retrate de forma complexa. 
Mas "uma vez conhecido o julgamento, acontecimentos políticos da mais alta importância abafaram a lembrança desse processo em que não mais se falou. A sociedade é como o oceano, após um desastre retoma o seu nível e seu ritmo e apaga os vestígios pelo movimento de seus devoradores interesses" (BALZAC, 1991, p. 195). 

É no capítulo final, contudo, que Balzac se revela genial. Aqui, escrevendo ficção, ele nos dá uma lição do que é fazer história. História é uma versão do passado baseada em testemunhos que podem ser escritos, orais ou materiais. O passado não existe por si e é impossível apreendê-lo, pois os testemunhos, por mais numerosos que sejam (veja-se tudo que as redes sociais deixarão para os historiadores do futuro), são limitados. Em 1833, no salão da Princesa de Cadigan, De Marsay ao ver a Marquesa de Cinq-Cygne, Lourença, deixar o salão com a chegada do Conde de Gondreville, Malin, que também se retira, desvenda o mistério, revelando a conspiração de Fouché, Talleyrand e Malin. A narração, todavia, não é exata, "mesmo depois de todas as explicações, permanecem uns cantos obscuros, recurso engenhoso do romancista para fazer sentir a inextricabilidade da história, cujos acontecimentos nunca podem ser integralmente esclarecidos" (RÓNAI, 1991, p. 38). 
É um final que produz um efeito de real assombroso, com um recurso bem diferente do descrito por Roland Barthes. Leiam, por favor!

Fontes da imagens: 

Pierre Vidal — Honoré de Balzac, A Dark Affair. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. 

BALZAC, Honoré. A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 
RÒNAI, Paulo. Introdução - um caso tenebroso. In: A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 

domingo, 1 de maio de 2022

(Re)lendo Proust

 (Re)lendo Proust

Li "Em busca do Tempo Perdido" em 1993, aos vinte e dois anos. Texto famoso como difícil e que muitos leitores experimentados não conseguem enfrentar, não foi complicado para mim. Não por eu ser especial, nem nada. Sou leitora desde que aprendi a ler. Mas com vinte e dois anos ainda me faltava muita coisa. Sem falar que "Em Busca" traz milhares de referências culturais - música, pintura, arquitetura, filosofia,  literatura  - e em 1993 não existia Internet. Se  eu encontrava o nome de um artista desconhecido, teria de ir à biblioteca da faculdade pesquisar. Logo, perdi a maior parte das referências, que são fundamentais para o texto. 

Creio que a leitura dos sete volumes começou em março e que tenha durado uns sete meses. Rápido demais, penso agora. Mas não li sozinha. Foi a minha primeira e única experiência de leitura conjunta. 

Não lembro como começou, mas eu e o Adriano fazíamos listas dos livros que queríamos ler. Ele era quatro anos mais velho que eu. Pouca coisa, mas em leitura é muito. Foi ele que me falou pela primeira vez de Balzac. Além de ter lido mais, ele tinha livros. Ele era servidor público e tinha dinheiro para os comprar. Imagino que um dia tenhamos decidido ler "Em busca" ao mesmo tempo. Ele comprou, eu peguei meu exemplar na biblioteca do IFCH da UFRGS. E começamos. 

Embora ainda fôssemos colegas na faculdade, não nos víamos todos os dias. Ele trabalhava, tinha namorada, eu era bolsista de pesquisa, fazia mil outras coisas, tinha namorado. Cada um lia em sua casa, na biblioteca. Às vezes líamos juntos, cada qual seu livro, no apartamento dele. Em um mundo sem celular e WhatsApp, usávamos o que havia para coordenar nossa leitura. Eu telefonava para o trabalho dele, ele não tinha telefone em casa. Ele me ligava do orelhão. Às vezes, íamos na casa um do outro e deixávamos um bilhete embaixo da porta. Então nos informávamos sobre até que parte o outro tinha lido. Dependendo, um segurava um pouco a leitura para esperar o outro. 

Estávamos apaixonados pelo livro e por Proust.  Os personagens, os lugares, os trechos nos ocupavam o tempo inteiro. Queríamos saber mais. Sem Internet, livrarias on line e Amazon, pegávamos o que havia na biblioteca. Compramos, em conjunto, a um preço altíssimo para nós, a biografia "Marcel Proust" de George Painter. Lá estão nossos dois nomes a lápis com a data de 10 de julho de 1993. Dessa vez teríamos de dividir a biografia, cada um lendo de uma vez. Houve a exibição de um filme no Centro Municipal de Cultura, baseado no "Em busca", seguido de uma palestra com o Tatata Pimentel, professor de literatura francesa e especialista no tema. Cheguei mais cedo. O filme já havia começado, quando o Adriano chegou. Ele sentou ao meu lado, me deu um beijo no rosto, não era preciso falar nada. Ao final da palestra, fomos falar com o Tatata, creio que foi ele que nos recomendou a biografia do George Painter. "Vocês dois não são jovens demais para ler Proust?", o professor nos perguntou com seu jeito divertido. 

Terminamos o livro. Eu li a biografia, ele leria depois. Havia planos, um tanto grandiosos para a época, de ir à França conhecer os lugares proustianos. Não era nosso único plano de viagem. Havia uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa. O Adriano era apaixonado pela cultura norte-americana - ele que me apresentou a Philip Roth, Raymond Caver, Tom Wolfe, Truman Capote - e dizia que essa viagem descolonizaria a europeia que havia em mim. Como seria isso? Não sabíamos. Tínhamos namorados. O meu, creio que não se importaria que eu viajasse com um homem, mas a dele não iria querer, com certeza. Mas tínhamos todo o tempo do mundo. 

O Adriano morreu no dia 31 de janeiro de 1994. Eu, com meu apego a lembranças e coisas materiais, quis ficar com os exemplares dele da "Busca", mas não consegui. Sei que foram doados para a biblioteca de uma casa do estudante onde ele morou. 

Guardei tudo o que tinha dele, cartões, bilhetes, listas de livros, cartões postais, caderninhos que ele me deu de aniversário, canetas,  em uma caixa, que levei muitos anos para conseguir abrir. Mas a verdadeira caixa, ainda não havia aberto. Tenho todos os exemplares da "Busca", que comprei há algum tempo. Comecei a ler duas vezes nos últimos cinco anos. Mas desistia nas primeiras páginas. 

Ontem, arrumando uns livros, peguei "À sombra das raparigas em flor" e o abri ao acaso. "A imagem de nossa amada, ainda que a julguemos antiga e autêntica, foi muitas vezes retocada por nós. E a cruel recordação não é contemporânea dessa imagem restaurada, mas pertence a outra época; é um dos poucos testemunhos de um passado monstruoso. Mas como esse passado continua a existir, exceto em nós mesmos, por que nos aprouve substituí-lo por um paraíso onde todo mundo se reconciliou, as recordações e as cartas são um aviso da realidade, e com a dor que nos causam devem fazer-nos sentir o quanto nos afastaram dela as loucas esperanças de nosso anelo cotidiano" (PROUST, 2006, p. 248-249). Eu que ainda outro dia estava às voltas com uma carta, mandar ou não mandar, tomei o episódio como um aviso. 

Comecei a ler ontem mesmo e já cheguei à página 80. Será uma leitura diferente da primeira. Com anotações (embora eu tenha algumas anotações antigas), referências, mas fundamentalmente, solitária. Dessa vez, minhas conversas com o Adriano serão mentais e silenciosas, como têm sido desde que ele partiu. Já estou em condições de me reencontrar com ele e com Proust, com a dor e com a beleza do tempo perdido. 

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Ed. Globo, 2006. 


domingo, 3 de abril de 2022

Um episódio de terror

Um episódio de terror (janeiro de 1831)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar (lido entre 2 de abril de 2022 e 17 de junho de 2023)

Personagens: Padre Marolles, Irmã Martha (née Beauséant), Irmã Ágata (née Langeais), sr. e sra. Ragon, desconhecido (Charles-Henri Sanson).

A história se passa entre 22 de janeiro de 1793 e 25 de janeiro de 1794. 

Isidore Stanislas Helman (1743-1809). A morte de Luís XVI

As 15 páginas de Um episódio de terror fazem dele um dos mais breves da Comédia Humana. O texto fez parte da introdução de uma obra - Memórias de Sanson, o carrasco de Paris - escrita por Balzac em conjunto com Lhéritier de l´Ain, quando nosso mestre ainda assinava Lord R´Hoone. Somente em 1846 foi incorporado à Comédia Humana

A chave da novela, que começa com uma cena cinematográfica de suspense,  está na data. Naquele dia frio de inverno, uma mulher já com alguma idade foi a uma padaria, em torno de oito horas da noite. No caminho percebeu estar sendo seguida. No estabelecimento trocou uma moeda de ouro, um luís, por algo que estava dentro de uma caixa de papelão. Ela então retornou ao local onde morava, sendo ainda seguida pelo mesmo desconhecido de antes. Uma vez na na pobre casa, que dividia com outra senhora e com um padre, receberam a visita do perseguidor. Sabemos então que os três são a irmã Marta, a irmã Ágata e o padre Marolles, de famílias aristocratas, e perseguidos pelos revolucionários franceses. Inicialmente, julgaram que seriam presos, especialmente Marolles, que se recusara a jurar a Constituição civil em 1790. Mas eis que o visitante desejava encomendar um missa de réquiem pela "alma de uma pessoa sagrada, cujo corpo jamais repousará em terra santa". Duas horas mais tarde, ocorreu a missa e descobrimos que a caixa de papelão continha hóstias. O desconhecido deu ao padre, em pagamento, uma caixa "extremamente leve" dizendo ser uma relíquia. Prometeu retornar em uma ano para nova missa. Nesse período, os três religiosos passaram a receber lenha e comida , pois "apesar do Terror, uma poderosa mão se estendia sobre eles". Ao fim de um ano, o homem retornou e foi celebrada outra missa, mas ele parecia muito abalado. Quatro dias depois, o padre Marolles, na porta da loja dos Ragon percebeu um tumulto e soube que o carrasco de Luís XVI iria ser guilhotinado. Viu na carreta que se dirigia ao cadafalso o desconhecido. 

Na caixa "extremamente leve" havia um lenço marcado com a coroa real e manchado de suor e sangue. 

Paulo Rónai considera Um episódio de terror uma obra menor, da fase "clandestina" de Balzac. Eu raramente leio textos sobre A Comédia Humana. Não haveria tempo e, em geral, comento as minhas impressões pessoais. Mas dessa vez, procurando ilustrações para essa postagem, encontrei um artigo de Gabriel Moyal, Making the Revolution Private: Balzac's "Les Chouans and Un épisode sous la Terreur. Moyal apresenta esse texto curto de um ponto de vista bastante mais complexo. Não irei detalhar, o artigo está disponível no Jstor. Mas, entre outras coisas, ele discute a visão dinâmica de história contida na Comédia Humana, que não é percebida pelo leitor com sua natural tendência de reificar os fatos históricos. Comenta também o simbolismo das trocas na novela: o luís, com a efígie real, de ouro pelas hóstias, e o lenço pela missa ("Eu coraria se lhe oferecesse um salário qualquer pelo serviço funerário que o senhor acaba de celebrar pelo repouso da alma do rei e pelo descanso da minha consciência. Não se pode pagar uma coisa inestimável a não ser por uma oferenda que também o seja"). E destaca que os personagens e objetos aparecem mais pelo que eles defendem, ou representam do que pelos que  são ou aparecem, como na passagem: "Ali estava toda a monarquia, nas preces de um padre e de duas pobres mulheres; mas, talvez, também estivesse representada a revolução na pessoa daquele homem cujo o semblante traía remorsos bastantes para não se crer que ele satisfizesse os anseios de um imenso arrependimento". 

O nome de Charles-Henri Sanson (1739-1806), carrasco de Luís XVI, não é citado em Um episódio de terror. Rónai nos conta que a irmã de Balzac, Laure, afirmava que o escritor havia entrevistado Sanson. Contudo, seria impossível pela data de falecimento do carrasco. É provável que o entrevistado tenha sido o filho de Sanson que, aliás, herdou seu ofício. 

Já sabemos que Rónai reviu, depois da organização da Comédia Humana"a tese do milagre". Para mim Um episódio de terror já a desmente. 

E. Lampsonius (1822-1871): Charles-Henri Sanson

Moyal, Gabriel. “Making the Revolution Private: Balzac’s ‘Les Chouans’ and ‘Un Épisode Sous La Terreur.’” Studies in Romanticism 28, no. 4 (1989): 601–22. https://doi.org/10.2307/25600809.

sábado, 26 de março de 2022

O avesso da história contemporânea

O avesso da história contemporânea (agosto de 1848)

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Godofredo, sra. de La Chanterie (Barbe Philiberte de Champignelles), sr. Millet, Manon (criada), Frederico Mongenod, Luís Mongenod, sra. Mongenod (mãe de Frederico e Luís), padre de Vèze, sr. Alain, Nicolau (Marquês de Montauran), sr. José ( Lecamus, Barão de Tresnes), Henrique (marido de La Chanterie), Henriqueta Bryond des Tours-Miniere (filha de La Chanterie), Bernardo Bryond (marido de Henriqueta, também conhecido como Contenson), Rifoel du Vissard, Bordin (advogado), Dr. Berton, sr. Bernardo (Barão de Bourlac), Nepomuceno, sr. Barbet, Felicidade, sra. Vauthier, Augusto, Dr. Moisés Halpersohn, sr. Cartier, Vanda, 

A história inicia em 1836

O segundo episódio de O avesso da história contemporânea, O iniciado,  é o último texto escrito por Balzac. Ele foi escrito em dezembro de  castelo de Wierzchownia (Verkhivnia) na Ucrânia, propriedade de Eveline Hanska. Isso explica os personagens poloneses. O Barão de Bourlac era casado com uma polonesa com quem teve uma filha que usa um nome polonês, Vanda. O médico judeu polonês, Moisés Halpersohn, foi provavelmente inspirado no médico de Eveline, o dr. Knothe. 

Aqui nosso historiador dos costumes entra em um terreno no qual tem mais dificuldade: falar da virtude, no caso, a caridade cristã. A pena de Balzac é soberba para narrar os vícios de Paris. Em O avesso da história contemporânea - o título já é alusivo, está se contando o contrário do que se espera - descobrimos a existência de uma confraria de pessoas que, mesmo tendo sofrido terríveis injustiças, se dedicam a fazer o bem sem esperar contrapartida. No mesmo espírito da História dos Treze, mas aqui de forma mais organizada. 

O personagem principal é Godofredo, jovem de origem humilde, mas com pretensões burguesas que, após uma série de atitudes equivocadas, se vê sem perspectiva de futuro. Acabou encontrando uma moradia peculiar onde vivia a sra. de La Chanterie e seus companheiros. Apoiados pelos banqueiros Mongenod eles se ocupavam em procurar pessoas que precisavam de ajuda e ajudá-las financeiramente e com outros meios. Esperavam que essas pessoas, tendo melhorado de vida, restituiriam à confraria o dinheiro utilizado. A  sra. de La Chanterie revelou a Godofredo que somente metade do dinheiro era recuperada. 

A história de La Chanterie é baseada nos episódios dos chauffeurs na época da Revolução Francesa. Chauffeurs eram bandos organizados que assaltavam casas e queimavam os pés das vítimas para que elas revelassem onde estavam seus bens escondidos. A senhora teria se envolvido com o grupo através da sua filha, Henriqueta, e não sabia de seus propósitos criminosos. Henriqueta foi condenada à morte e guilhotinada e a mãe, apesar de inocente, passou vinte anos na prisão, tendo sido libertada por Luís XVIII. Passou então a presidir o grupo de benfeitores para praticar a caridade.

Godofredo se uniu ao grupo e recebeu sua primeira missão: ajudar um pai, sr. Bernardo,  cuja filha, Vanda, sofria de uma doença desconhecida e incapacitante. Ele o o neto viviam em grande pobreza, ainda que proporcionassem à moça uma série de luxos. Godofredo conseguiu que o médico Halpersohn tratasse à jovem. E estava em vias de conseguir que uma obra escrita por Bernardo, Espírito das Leis Modernas, fosse publicada. É quando Godofredo descobriu que Bernardo era o Barão Bourlac, o procurador-geral de Rouen, que condenara a sra. de La Chanterie e a filha. No final, o Barão, com a filha curada e a vida refeita, implorou o perdão da senhora, que o perdoou. 

Não gostei. A história dos crimes que condenaram La Chanterie é confusa, com personagens que possuem mais de um nome e uma série de reviravoltas. O personagem Godofredo não convence. É um jovem ressentido e ambicioso e se torna, rapidamente, um homem piedoso e devotado a La Chanterie. Ela é uma verdadeira santa, sendo modelo de todas as virtudes. A doença de Vanda é totalmente bizarra, parece mais uma espécie de possessão demoníaca. Como nos diz Paulo Rónai, na Introdução, no romance "o leitor facilmente surpreende os defeitos das primeiras obras - grandes concessões aos romantismo, caracteres excessivamente simplificados, estrutura fragmentada - agravados pela presença constante da tendência moralizadora" (BALZAC, 1991, p. 528). O perdão final da sra. La Chanterie não economiza na pieguice: "Por Luís XVI e Maria Antonieta, aos quais vejo no cadafalso, pela sra. Elizabeth, por minha filha, pela sua, por Jesus, perdoo-lhe" (BALZAC, 1991, p. 5).

Mas Balzac é Balzac. Sempre encontramos trechos interessantes. Veja-se esse: "A solidão tem seduções comparáveis à vida selvagem, que nenhum europeu abandonou depois de a ter provado. Isso poderá parecer estranho numa época em que cada um vive tão bem para os outros que todos se preocupam com cada um, e em que a vida privada em breve não existirá mais, de tal forma os olhos do jornal, Argos moderno, se avantajam em ousadia, em avidez" (BALZAC, 1991, p. 558). Eis nosso historiador de costumes antecipando as redes sociais! 


BALZAC, Honore de. A Comédia Humana. vol. XI. São Paulo: Globo, 1991. 

Imagem de Adrien Moreau em Honoré de Balzac, The Other Side of Contemporaneous History. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. Não havia identificação, mas eu vejo a sra. de La Chanterie, e Godofredo se curvando na frente dela. 

sábado, 5 de março de 2022

Os pequenos burgueses

Os Pequenos Burgueses 

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Maria Joana Brígida Thullier,  Luís Jerônimo Thuillier (irmão de Maria Joana),  Métiver Sobrinho (vizinho do lado esquerdo dos Thullier, comerciante de papel), Barbet (vizinho do lado direito dos Thullier, livreiro), Dutocq (escrivão da Justiça de Paz), Colleville, Poiret, Celeste Lemrpun (sra. Thuillier), sra. Lemrpun (mãe de Celeste), Flávia Colleville, Carlos de Grondeville, Keller, Celeste Luísa Carolina Brígida Colleville, Des Lupleaux, Carlos Colleville, Teodoro Colleville, Phellion, Félix Phellion, sra. Barniol (filha de Phellion), Mário Teodoro Phellion (filho de Phellion), Genoveva (cozinheira de Phellion), Dutocq, Minard, Zélia Minard, jovem Minard (advogado), Prudência Minard, mestre Godeschal, Olivério Vinet (substituto do procurador do rei), Teodódio de La Peyrade, Cérizet, Cadenet, sra.Cardinal, Olímpia Cardinal, sr. Poulillier, sr. du Portail, Lídia de La Peyrade. 


Colleville e Flávia Colleville

A história começa em 1839

Só a seriedade do meu projeto de ler toda a Comédia Humana me animou para concluir a leitura de Os Pequenos Burgueses. Trata-se de uma obra inacabada, e que possui uma triste história ligada à Condessa Hanska. Paulo Rónai nos conta na introdução como a viúva de Balzac passou o que ficara escrito a Charles Rabou para que ele concluísse a obra. Afirmava que Balzac assim desejava. Ocorre que Rabou escreveu cinco oitavos da obra final. Balzac deixou uma frase inconclusa. "Cérizet tomou uma...". No final da edição da Globo, que utiliza  a edição da Pléiade, Rónai apresenta um resumo, absolutamente bizarro, do escrito de Rabou. 

Mas em 1843, Balzac escreveu à noiva sobre o plano de Os Pequenos Burgueses, com o exagero habitual, "é dessa obras que deixam tudo pequeno a seu lado". Comenta sobre o projeto em várias cartas e deixa de mencioná-lo em 1844. 

Trata-se  da história de Teodósio de La Peyrade, mencionado como "um jovem, morto de fome de cansaço" no final de Esplendor e Misérias das Cortesãs. Balzac indica nas cartas que La Peyrade é o "Tartufo moderno" que deseja, empregando vigarice a astúcia, obter a mão e o dinheiro da jovem Celeste Colleville. Quase todos os personagens são Os Funcionários que, passados quinze anos, se aburguesaram. A novidade é Brígida Tullier, uma solteirona típica de Balzac, que dirige o irmão, a cunhada e o destino de Celeste, sua protegida. 

Presentes as descrições balzaquianas que são interessantes quando demostram o seu propósito. Aqui, com a obra inconclusa, ficam enfadonhas e repetitivas. Presentes também as negociatas com dinheiro e com juros, capitaneadas aqui pelo usurário Cérizet. 

Creio que o maior problema de Os Pequenos Burgueses é que Balzac, no deslumbre em ter "trazido uma sociedade inteira na cabeça", deixa aparente, com o excesso de personagens e com ligações artificiais entre eles, a urdidura da Comédia Humana. É como se víssemos os bastidores de um espetáculo. Além disso, La Peyrade não é convincente. São muitas tramas e maquinações aceitas com muita ingenuidade por pessoas que, como Brígida, é naturalmente desconfiada, ou como Flávia Colleville, é uma mulher experiente e calculista que já teve muitos amantes.

Enfim, a leitura vale para que quer saber tudo de Balzac. Ou para quem, como eu, tem uma missão. 

Imagem retirada de: Honoré de Balzac, The Petty Bourgeois. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:BalzacPettyBourgeois01.jpg Acesso em 5 de março de 2022.