quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

A Casa Nuncingen

A Casa Nuncingen (escrito em novembro de 1837)

Personagens: Androche Finot, Emílio Blondet, Couture, Bixiou Rastignac, Nuncingen, Delfina, o narrador, a acompanhante do narrador. 

A história se passa em 1836. 

A Casa Nuncingen é uma novela curta na qual Balzac utiliza um artifício um pouco inverossímil, mas interessante. O narrador, acompanhado por uma dama, ocupa um espaço reservado em um restaurante de Paris, de onde escuta, sem ser notado, a conversa de quatro amigos que jantam no espaço ao lado. Os faladores são Androche Finot, Emílio Blondet, Couture e Bixiou. O tema da conversa eram as fortunas de Rastignac e Nuncingen. 
Descobrimos aqui o enorme conhecimento que Balzac possuía da especulação financeira. Nuncigen, na verdade, enriquecera através de manobras especulativas nas bolsas de valores. Não hesitava em arruinar famílias. E Eugênio de Rastignac, que conhecemos pobre em O Pai Goriot, enriqueceu ajudando e tomando informações para Nuncigen. Com o detalhe de que Rastignac era amante de Delfina, esposa de Nuncigen e née Goriot. 
Segundo Paulo Rónai, Nuncigen era, na verdade, o alter ego do Barão James Rotschild. 
Eu, particularmente, achei a novela um pouco enfadonha. O estilo, que Rónai caracteriza como "nervoso", deixou, na verdade, a narrativa um tanto confusa. 


terça-feira, 1 de setembro de 2015

Émilie, Émilie - a ambição feminina no século XVIII

Émilie, Émilie: a ambição feminina no século XVIII. Elisabeth Badinter. São Paulo: Discurso Editorial, Duna Dueto, Paz e Terra, 2003. 

O que tantos livros sobre mulheres fazem na minha cabeceira, na minha bolsa, no meu leitor Kobo? Quando estava na graduação em História tinha uma certa rejeição por história das mulheres. Não queria fazer parte de uma história categorizada, separada do resto. Ingenuidade da juventude. Era como se diluir a história das mulheres na história da humanidade fosse garantir a igualdade de direitos entre mulheres e homens. Era como acreditar na concretude do caput do artigo 5º da Constituição brasileira. 
Minha busca por conhecer mais sobre a história das mulheres é totalmente pessoal. Preciso entender as opções e escolhas da minha mãe, das minhas três avós (sim, tive três avós). Como essas opções e escolhas me atingiram e atingem a minha filha. Não basta saber a história delas, Teresa, Genny, Haidee, Orfila. Preciso saber o que veio antes. 
Estava pensando em tudo isso, quando conheci Elisabeth Badinter. Filósofa e historiadora francesa é uma das mulheres mais influentes da França (e também mais ricas). Dedica-se à história das mulheres,  do feminismo e da maternidade. Comecei pelo seu livro mais conhecido, Um amor conquistado: o mito do amor materno, sobre o qual ainda vou escrever. Me apaixonei pela clareza e racionalidade do texto. Busquei outros títulos na Estante Virtual. Comprei tudo o que encontrei. Assim, cheguei a Émilie, Émilie
Trata-se da biografia comparada de duas mulheres do século XVIII, Gabrielle Émilie Le Tonnelier de Breteuil, marquesa de Châtelet-Laumont (1706-1749) e Louise Florence Pétronille Tardieu d´ Esclavelles d´Épinay, Madame d´Épinay (1726-1783). Elas foram contemporâneas por vinte e três anos, mas nunca se encontraram. São mais conhecidas como tendo sido amantes de Voltaire (1694-1778) e de Friedrich Melchior von Grimm (1723-1807), respectivamente. Mas foram muito mais do que isso. São suas histórias que Badinter enfrenta em 460 páginas.
As duas pertenciam a classes privilegiadas, mas eram de meios diferentes e incompatíveis na época. Émilie pertencia à alta aristocracia. Louise, à burguesia financeira. Tiveram gostos, caráter e trajetórias diversas. O que tinham em comum, todavia, prevalecia sobre as diferenças, segundo Badinter. E está no título do seu livro: a ambição. "Mulheres em um mundo que reserva a glória apenas aos homens, são estimuladas a uma mesma ambição. Uma e outra escolheram um objetivo preciso para suas vidas, desenvolveram toda a energia de que eram capazes, utilizada até suas últimas forças. Mesmo que os resultados nem sempre tenham estado à altura de suas esperanças, nunca cederam ao desânimo nem depuseram as armas. A não ser o tempo necessário para qualquer ser humano se recobrar. Se o sacrifício e a perseverança são os sinais da ambição, então Madame du Châtelet e Madame d´Épinay foram autênticas ambiciosas. E quase irmãs".
Émilie nasceu em 17 de dezembro de 1706 em Paris, em uma família privilegiada em todos os sentidos, "rica, unida e nobre". Filha de um alto magistrado de Luís XIV, que tinha 58 anos quando ela nasceu, e tinha para com ela "todas a fraquezas de um avô e a ternura de um pai". Ao contrário da maioria das crianças nobres da época, passou quase toda a juventude na casa da família.
Louise nasceu em 11 de março de 1726 na fortaleza de Valenciennes, da qual seu pai era governador. Filha única de pai quase sexagenário e de uma mãe devota, recebeu as maiores atenções dos pais, o que, segundo Badinter, lhe armaram para que sempre tivesse confiança em si mesma.
Émilie foi privilegiada em termos de educação. "Nenhum conhecimento lhe foi proibido, nenhum constrangimento pesou sobre ela por causa do seu sexo". Interessada por línguas, aprendeu latim, italiano e inglês. Aos 17 anos, lia Locke no original. Contudo, original mesmo, era seu gosto por física e matemática. "Fato raríssimo na história da educação de meninas, seu pai a fez tomar aulas dessas duas disciplinas". E foi aí que ela encontrou o foco para a sua ambição.
Louise, segundo Badinter, se assemelhava a Émilie aos dez anos, em disciplina e vontade de saber. Todavia, foi nessa época que faleceu seu pai. Sua mãe tinha uma visão tradicional sobre a educação de meninas: bastava aprender a ler e a escrever. Louise foi confiada a uma tia rica rica, na casa da qual sofreu as humilhações habituais da prima pobre. Conseguiu acompanhar as aulas que a prima tomava com uma governanta, o que logo foi proibido pela tia, que julgava que uma mulher erudita era naturalmente pedante.
"Do século XVII até o fim do século XIX, a mulher erudita é constantemente ridicularizada e tudo se faz para que ela não exista. Quando, no fim do século XIX, as mulheres adquiriram progressivamente o direito de acesso às universidades, são solicitadas a utilizar seu saber para fins altruístas e não egoístas. Para agradar a seus maridos, para serem melhores professoras dos seus filhos, mas nunca para fins pessoais. Uma mulher que ame os estudos por si mesmos comete uma heresia".
Louise voltou a morar com a mãe e, entre 1737 e 1739, foi enviada a um convento,  onde prevalecia a educação religiosa e habilidades como costura e dança. Isso foi tudo o que Madame d´Épinay teve em termos de educação. Aos treze anos, ainda tinha dificuldade para escrever.
Ambas passaram por todas as etapas da vida de uma mulher da época: casaram, tiveram filhos e tiveram amantes. "Entretanto, o século XVIII constitui uma espécie de paradoxo na história das mulheres privilegiadas. Ao mesmo tempo que mantinham para estas a obrigação de casar e de ter filhos, a ideologia dominante lhes concedia direito à negligência. A inconstância conjugal não era um vício. Pode-se mesmo dizer que a fidelidade era considerada um valor fora de moda, quase ridículo, e os cuidados da maternidade não eram considerados dignos das preocupações de uma mulher da alta sociedade".
Para remediar a insignificância da vida feminina, muitas mulheres das classes privilegiadas investiriam na vida social e mundana. "Outras, principalmente depois de 1750, tentaram voltar a dar vida e interesse às preocupações familiares". Madame du Châtelet pertenceu ao primeiro grupo. Madame d´Épinay, ao segundo.
Émilie fez um casamento de conveniência. Louise casou por amor com um primo irmão. "A mais satisfeita das duas foi, no entanto, a primeira. O Sr. du Châtelet revelou-se um marido muito gentil, discreto, cortês e amigo, enquanto o Sr. d´´Epinay foi uma caricatura de esposo execrável. Mas, ambos, não puderam, ou não quiseram, satisfazer suas esposas." Quem o fez foram Voltaire e Grimm, com quem elas formaram pares ligados por sentimentos e interesses. "É incontestável que esses dois homens deram às duas Émilies os trunfos necessários, mas não suficientes, para a realização da ambição delas: a estabilidade afetiva e o respeito do homem admirado, o que lhes dava confiança em si mesmas".
Badinter não foge da questão que nos ocorre nessa altura do texto. Não estamos aqui fazendo o mesmo de sempre, valorizando Émilie e Louise pela sua ligação com homens célebres? "Se fosse preciso expor a ambição masculina no século XVIII e particularmente a de Grimm e de Voltaire, deveríamos evocar suas relações afetivas e delas fazer a condição necessária à sua ambição?". A resposta é não. Voltaire e Grimm já eram conhecidos antes de se ligarem a elas. Não tiveram necessidade de admiração e reconhecimento das companheiras para investir em suas ambições. Já Émilie e Louise nasceram para desempenhar o papel tradicional de esposa, mãe e presença mundana nos salões da elite da época. "O amor, longe de ser uma fonte de alienação, foi a condição de emancipação e autonomia delas. Desde de que se sentiram amadas e respeitadas, elas cessaram de sentir a necessidade de correr atrás do reconhecimento dos outros". Podiam ser elas mesmas e se dedicar a sua ambição.
Émilie foi amante de Voltaire entre 1733 e 1741. Louise foi amante de Grimm entre 1754 e 1773. Ambas foram muito apaixonadas e foram correspondidas. Viveram com seus amantes uma comunhão intelectual, com estudo, leituras e trabalhos conjuntos. Deixaram de ser correspondidas em função de outras paixões, no caso de Voltaire, e, da ambição, no caso de Grimm. Mas nunca romperam a relação de amizade e companheirismo com eles. Ambos sobreviveram a elas.
Mas o que essas mulheres fizeram de extraordinário?
Émilie du Châtelet foi uma das primeiras, senão da primeira mulher Física de história. Escreveu Instituições da Física em 1740, no qual difunde a física newtoniana, pouco conhecida na França da época. E se distingue dos seus pares do século das luzes ao tentar conciliar Newton (1643-1727) com Descartes (1596-1650) e com a metafísica de Leibniz (1646-1716). A partir de 1744, ela se dedicou a traduzir os Principia de Newton para o francês em uma edição comentada. Sua  morte precoce em 1749 a impediu de terminar o trabalho, que foi concluído pelo amigo Alexis Claude de Clairaut (1713-1765). Até hoje é a tradução de Newton que os franceses leem. Voltaire escreveu no prefácio:
"Essa tradução, que os mais talentosos homens da França deveriam ter feito e que os outros devem estudar, um mulher a empreendeu e terminou, para o espanto e a glória do seu país. Gabrielle-Émilie (...) é a autora desta tradução que se tornou necessária a todos que queiram adquirir os profundos conhecimentos que o mundo deve ao grande Newton. (...). Tem-se aí dois prodígios: o primeiro, que Newton tenha escrito estas obra; o outro, que uma mulher a tenha traduzido e esclarecido".
Louise, que foi anfitriã de Rouseeau (1712-1778), se dedicou a escrever sobre educação. Sua obra, Conversações com Émilie de 1774, escrita para a educação de sua neta, Émilie, subverte as instruções de Rousseau no seu Émile. Jean-Jacques, um dos grandes responsáveis pela submissão da mulher na era burguesa, recomendava à Sophie, companheira de Émile:
"Todos os estudos ociosos não levam a nada de bom (...). Que necessidade tem um menina de aprender a ler e escrever tão cedo? Terá ela logo uma casa para administrar? Muito poucas há que, ao invés de apenas abusar, fazem um bom uso dessa ciência fatal (...). ".
Pois nas suas Conversações, Louise construiu uma anti-Sophie: "Quando vós vos empenhais em cultivar a vossa razão, em orná-la com conhecimentos úteis e sólidos, estais abrindo para vós mesmas tantas novas fontes de prazer e de satisfação, tantos meios de embelezar vossa vida, de ter recurso contra o tédio e consolo durante a adversidade, quando conhecimentos e talentos. São bens que ninguém pode roubar-vos, que vos livram da dependência dos outros (...) que, ao contrário, tornam os outros dependentes de vós; pois quanto mais talentos e luzes temos, mais nos tornamos úteis e necessárias à sociedade.". Nas palavras de Badinter: "Rousseau pode prender as mulheres no lar quanto quiser, Madame d´Épinay lhes dá a receita para escapar". Louise escreveu outras obras, mas foram as Conversações que a tornaram célebre. Em 1783, foi premiada pela Academia Francesa.
Hoje as mulheres seguem os caminhos abertos por Émilie e Louise. São cientistas, pedagogas, políticas, intelectuais. Escolhem ter filhos ou não. Mas o baixo número de mulheres que escolhem carreiras científicas e a sombra dos ensinamentos de Jean-Jacques sobre a educação das meninas indicam que as Émilies ainda tem muito o que ensinar. 
Madame du Châtelet

Madame d´Épinay

Tradução francesa do Principia





segunda-feira, 20 de julho de 2015

César Birotteau

A História da grandeza e da decadência de César Birotteau, perfumista, adjunto do Maire do segundo distrito de Paris, cavaleiro da Legião de Honra, etc (escrito em novembro de 1837)

Personagens: César Birotteau, Constança  Birotteau,  Cesarina, Alexandre Crotat (Xandrot), Cláudio José Pilleraut, Anselmo Popinot, sr. e sra. Ragon, Ferdinando Du Tillet, sr. e sra. Roguin, Sara Gobseck (A Bela Holandesa), Carlos Claparon, João Batista Molinaux, sr. Grindot (arquiteto), sra. Madou, sr. Vauquelin, Celestino, Gaudissart, Androche Finot, sr. Lourdois, Francisco  Birotteau, Cayron (comerciante de guarda chuvas), José Lesbas, Francisco Keller, Adolfo Keller, Padre Loraux. 

A história se passa entre 1819 e 1823.

Em uma carta para a escritora Margarete Harkness, escrita em abril de 1888, Friedrich Engels declarou que aprendera mais com Balzac do com todos os historiadores, economistas e estatísticos a respeito do nascimento da sociedade burguesa. Essa observação parece digrida especialmente a César Birotteau, que Paulo Rónai qualifica como um dos romances balzaquianos mais perfeitos. A "burguesia" termo do qual nós, professores de história, abusamos nas aulas, caracteriza algo fluido no tempo e no espaço. Um burguês na França de Balzac não é o mesmo que um burguês no Brasil de hoje. Mas o uso do mesmo termo aproxima e confunde a percepção. Pois Balzac nós dá o burgês de carne e osso, com nome, sobrenome, gostos, conceitos e preconceitos. Assistimos a nova classe tomar conta das relações sociais da França da Restauração, enquanto as demais classes e grupos se acomodam como é possível. 
Nosso burguês se chama César Birotteau. De origem camponesa (é irmão de Francisco Birotteau, o nosso Cura de Tours), foi para Paris aos catorze anos trabalhar como caixeiro na casa dos senhores Ragon, comerciantes de perfumes. Trazia somente seus pobres pertences pessoais e a disposição para o trabalho duro. Apesar do temperamento pacato, envolveu-se na conspiração de 13 vendemiário contra a Convenção, tendo a honra de lutar com Napoleão nas escadarias da Igreja de São Roque. "Se o ajudante de campo de Barras (Napoleão), saiu da obscuridade, Birotteau foi salvo por ela". Acabou esquecido e não foi punido. 
Assumiu a perfumaria dos Ragon e desposou a bela Contança Pilleraut, primeira caixeira da loja Pequeno Marinheiro. Juntos foram fazer fortuna. 
Encontramos os Birotteau, em 1819, como comerciantes prósperos e estabelecidos no mercado. Graças a algumas invenções como a "Dupla Pomada das Sultanas" e a "Água Carminativa", não faltavam pedidos e clientes. Mas faltava um certo glamour, incompatível com a vida no comércio. Então, Birotteau foi condecorado como Cavaleiro da Legião de Honra, em agradecimento a seus serviços à causa realista. Ele resolveu reformar a casa para dar um baile em comemoração à desocupação da França. Para pagar a extravagância, César entrou em um negócio de especulação de terrenos com alguns sócios, dentre os quais Roguin, dono de um cartório. Ocorre que, por detrás de Roguin, estava um dos típicos vilões balzaquianos, Ferdinando Du Tillet. Du Tillet nutria um grande desejo de vingança contra César. Fora seu caixeiro e furtara três mil francos do caixa. Birotteau descobriu e o despediu, mas sem fazer publicidade do caso.  Além disso, cortejara Constança e fora repelido por ela. Pois Du Tillet aproximou-se de Roguin, descobriu-lhe a fraqueza (uma amante dissipadora) e armou um plano para levar César Birotteau à falência. Após o baile na casa de Birotteau, o perfumista enfrentou uma sucessão de quedas que o levaram à falência. Com a ajuda da família e dos amigos, Birotteau conseguiu se reabilitar completamente pagando todos os seus credores, algo tão raro que foi até assinalado em sessão no tribunal pelo procurador do Rei. 
Um resumo, todavia, não dá conta da magnífica construção do romance. O início com o sonho premonitório de Cosntança. O meio, com o acontecimento central, o baile, que marca o auge do perfumista e o início da sua ruína. E no final, o novo baile, esse quase fantasmagórico, ao qual nosso heroi não resistiu. 
Mas o que pode haver de genial na história da falência de uma casa burguesa? Segundo Paulo Rónai, Balzac é genial ao construir personagens em nada extraordinários (para não dizer medíocres) e captar neles a vida real: "Birotteau, repetindo vinte vezes as mesmas palavras para explicar sua distinção com a Cruz da Legião de Honra e julgando-se, mesmo do fundo de sua miséria, superior a Popinot, que foi seu aprendiz; a sra. Birotteau, heroica e amorosa companheira de César, resistindo virtuosamente à sedução de Du Tillet, e, no entanto, guardando-lhe as cartas no seu cofrezinho; (...) Molinaux, tipo monstruoso de proprietário, não tendo outro medo do que ser julgado insuficientemente esperto pelos proprietários do Café David; Cesarina e Anselmo Popinot, os jovens amantes, incapazes, embora solidários com o sofrimento de César, de se arrancarem ao egoísmo do seu amor - eis alguns rasgos de intuição genial que faria Balzac idear um caráter num só bloco e tirar dele tudo o que podia dar". 
Outro feito notável, já conhecido dos leitores da Comédia Humana, é o conhecimento de Balzac sobre os pormenores dos processos e técnicas narrados.Fala da especulação de imóveis como se fosse um corretor ou um especulador. Discorre sobre a falência como um advogado (aqui a sua experiência como auxiliar de tabelião), diz-se que os advogados consultavam César Birotteau quando tratavam de falências. Conhece detalhes da fabricação de produtos de perfumaria. Conhece o funcionamento dos tribunais de comércio. Opina sobre os anúncios de produtos em jornais, uma novidade da época que mudou o comércio no século XIX. Segundo Rónai, dez especialistas seriam necessários para escrever César Biroteau. "mas os dez especialistas e o escritor genial têm o mesmo nome: Balzac". 
Não sei se Engels comentou algo específico sobre César Birotteau, mas algo me diz que era um dos romances no qual ele pensava quando escreveu à senhora Harkness. Segundo Brunetière (citado por Paulo Rónai), em todo livro não se passa quase nada, mas nele cabe a Restauração inteira. 




quarta-feira, 3 de junho de 2015

A menina dos olhos de ouro

A menina dos olhos de ouro (escrito entre março de 1834 e abril de 1835) - terceira história de História dos Treze

Personagens: Henrique de Marsay, Lorde Dudley (pai de Henrique), marquesa de Vordac (mãe de Henrique), padre de Maronis,  Paulo de Manerville, Lourenço (camareiro), Paquita Valdez, Concha Marialva, Cristêmio, mãe de Paquita, don Hijos (marquês de San Real), Margarita Eufêmia Porraberil (marquesa de San Real, filha de lorde Dudley com uma dama espanhola), Ferragus.

A história se passa em 1815.

O personagem principal dessa novela curta já apareceu em diversas histórias como figura lateral: o bon vivant Henrique de Marsay, que, como já sabemos por Ferragus e A Duquesa de Langeais faz parte dos Treze.
Aqui ficamos sabendo que Henrique era filho natural de Lorde Dudley com a Marquesa de Vordac. Dudley casou a moça com o idoso senhor de Marsay  que reconheceu a criança em troca do usufruto de uma renda de cem mil francos. Ignorado por pai e mãe, Henrique foi viver com uma irmã solteirona do senhor de Marsay. Com a magra pensão que recebia, a senhora confiou o menino a um preceptor, o padre de Maronis, De Maronis que "ensinou em três anos ao rapazinho o que só em dez teria este aprendido numa escola" foi verdadeira figura paterna para Henrique.
No início da história, encontramos Henrique em abril de 1815, em plenos Cem Dias, aos 22 anos passeando na Tuleiries. Lá encontrou o recém chegado da província, Paulo de Manerville, já nosso conhecido de O Contrato de Casamento. Henrique comentou com Paulo seu interesse por uma moça exótica, fulva, com olhos dourados. O amigo revelou que a jovem era conhecida como "a menina dos olhos de ouro". Percebendo que seu interesse era recíproco, Henrique com a ajuda do criado Lourenço, descobriu que a moça se chamava Paquita Valdés e morava no palácio do Marquês de San Real. O problema é que Paquita era severamente vigiada pela criada, a senhora Concha Marialva. Henrique e Lourenço conseguiram mandar uma carta a Paquita e marcar três encontros. O primeiro foi num apartamento decadente onde estava presente a mãe de Paquita, uma mulher georgeana que vendera a filha como escrava para os San Real. Apesar dos apelos de Henrique, Paquita não se entregou desta vez. Isso ocorreu nos outros dois encontros, às escondidas, no Palácio de San Real. No terceiro encontro, Paquita deixou escapar um nome. Um nome de mulher. Henrique ficou bravo e pensou em matar a menina, mas foi impedido pelo criado de Paquita, Crescêncio.
Um semana depois, Henrique voltou ao Palácio, dessa vez acompanhado de alguns dos Treze. Lá encontrou uma cena de luta com Paquita morta. A assassina era a marquesa de San Real, cujo nome era Margarita Eufêmia Porraberil, filha de Lorde Dudley com uma dama espanhola. Portanto, irmã de Henrique. Os irmãos se reconheceram. Eufêmia declarou que tinha como encobrir o crime (Crescêncio também fora assassinado) e que iria para a Espanha entrar para um convento. De Marsay voltou para as conquistas.
A quem julgar a história inverosímel, responde Balzac na nota introdutória da primeira edição do romance: "O episódio de A Menina dos Olhos de Ouro, é verdadeiro na maior parte de seus pormenores; a circunstância mais poética, e que lhe forma o nó, a semelhança dos dois  principais personagens é exata. O heroi da aventura que veio contar-lha, pedindo-lhe que a publicasse, decerto estará satisfeito de ver seu desejo atendido, embora o autor, de início, tivesse julgado a empresa impossível; o que parecia sobretudo difícil de fazer crer era essa beleza maravilhosa e meio feminina que distinguia o heroi aos dezessete anos e da qual o autor reconheceu os traços do moço de vinte e quatro. Se algumas pessoas se interessarem pela Menina dos Olhos de Ouro, poderão vê-la após a queda da cortina sobre a peça, como a essas atrizes que, para receberam suas coroas efêmeras, se reerguem bem dispostas após terem sido apunhaladas. Nada tem desenlace poético na natureza. Hoje, a Menina dos Olhos de Ouro está bem murcha...Quanto á Marquesa de San Real, acotovelada este inverno nas Bouffes ou na Ópera por algumas das honradas pessoas que acabam de ler esse episódio, ela tem exatamente a idade que as mulheres não confessam".
Diz também que o desfecho é real, mas aconteceu a outros portagonistas: "A sociedade moderna, nivelando todas as condições, esclarecendo tudo, suprimiu o cômico e o trágico; o historiador dos costumes é forçado, como aqui, a ir buscar onde estão os fatos engendrados pela mesma paixão, mas acontecidos a vários indivíduos, e cosê-los juntos para obter um drama completo". 
Será verdade ou um truque de Balzac para aumentar o interesse em suas histórias, com os leitores especulando quem é quem? Ele diz que "os escritores não inventam coisa alguma"...
Dessa história, que não é a minha preferida de Balzac, comento dois aspectos. A suavidade e a naturalidade com que ele aborda o tema do lesbianismo. No início pensamos que Paquita é amante do Marquês de San Real. São as cartas de Londres e as alusões da menina ("é a mesma voz... e o mesmo ardor") que nos chamam a atenção para a Marquesa. O autor nos diz: "uma paixão terrível ante a qual recuou toda a nossa literatura, que, no entanto não me espanta em nada". Não espanta, pois era comum. E uma relação entre mulheres era mais fácil de dissimular, a pretexto de amizade, do que entre homens. Apesar do desfecho trágico e exagerado, e relação é tratada como se fosse uma relação heterossexual. 
O que prefiro nesse romance é o seu início, intitulado "Fisionomias Parisienses". Aqui, Balzac aparece como o magnífico historiador dos costumes que era fazendo um retrato vivo de Paris. Paulo Rónai nos diz: "Foram essas páginas, como muitas outras de Balzac que fixaram para sempre a imagem mítica de Paris aos olhos do mundo inteiro, e tal imagem nos interessa profundamente, porque a Paris de 1830 era uma prefiguração de todas as metrópoles modernas, inclusive a nossa". A análise das quatro camadas da vida social parisiense: o proletário, o burguês, o profissional liberal e o artista poderia ser utilizada em uma aula de história. Impressiona a vivacidade da descrição. É como se andássemos pela Paris de 1830 com Balzac nos mostrando a cidade. Deve ser por isso que ele dedicou A Menina dos Olhos de Ouro a Eugène Delacroix, pintor. 


Não terminei o doutorado ainda, mas voltei. Não podemos viver sem aquilo sem o qual não podemos viver. 
A Menina dos Olhos de Ouro é a primeira história de Balzac que leio no meu leitor Kobo.