sábado, 26 de março de 2022

O avesso da história contemporânea

O avesso da história contemporânea (agosto de 1848)

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Godofredo, sra. de La Chanterie (Barbe Philiberte de Champignelles), sr. Millet, Manon (criada), Frederico Mongenod, Luís Mongenod, sra. Mongenod (mãe de Frederico e Luís), padre de Vèze, sr. Alain, Nicolau (Marquês de Montauran), sr. José ( Lecamus, Barão de Tresnes), Henrique (marido de La Chanterie), Henriqueta Bryond des Tours-Miniere (filha de La Chanterie), Bernardo Bryond (marido de Henriqueta, também conhecido como Contenson), Rifoel du Vissard, Bordin (advogado), Dr. Berton, sr. Bernardo (Barão de Bourlac), Nepomuceno, sr. Barbet, Felicidade, sra. Vauthier, Augusto, Dr. Moisés Halpersohn, sr. Cartier, Vanda, 

A história inicia em 1836

O segundo episódio de O avesso da história contemporânea, O iniciado,  é o último texto escrito por Balzac. Ele foi escrito em dezembro de  castelo de Wierzchownia (Verkhivnia) na Ucrânia, propriedade de Eveline Hanska. Isso explica os personagens poloneses. O Barão de Bourlac era casado com uma polonesa com quem teve uma filha que usa um nome polonês, Vanda. O médico judeu polonês, Moisés Halpersohn, foi provavelmente inspirado no médico de Eveline, o dr. Knothe. 

Aqui nosso historiador dos costumes entra em um terreno no qual tem mais dificuldade: falar da virtude, no caso, a caridade cristã. A pena de Balzac é soberba para narrar os vícios de Paris. Em O avesso da história contemporânea - o título já é alusivo, está se contando o contrário do que se espera - descobrimos a existência de uma confraria de pessoas que, mesmo tendo sofrido terríveis injustiças, se dedicam a fazer o bem sem esperar contrapartida. No mesmo espírito da História dos Treze, mas aqui de forma mais organizada. 

O personagem principal é Godofredo, jovem de origem humilde, mas com pretensões burguesas que, após uma série de atitudes equivocadas, se vê sem perspectiva de futuro. Acabou encontrando uma moradia peculiar onde vivia a sra. de La Chanterie e seus companheiros. Apoiados pelos banqueiros Mongenod eles se ocupavam em procurar pessoas que precisavam de ajuda e ajudá-las financeiramente e com outros meios. Esperavam que essas pessoas, tendo melhorado de vida, restituiriam à confraria o dinheiro utilizado. A  sra. de La Chanterie revelou a Godofredo que somente metade do dinheiro era recuperada. 

A história de La Chanterie é baseada nos episódios dos chauffeurs na época da Revolução Francesa. Chauffeurs eram bandos organizados que assaltavam casas e queimavam os pés das vítimas para que elas revelassem onde estavam seus bens escondidos. A senhora teria se envolvido com o grupo através da sua filha, Henriqueta, e não sabia de seus propósitos criminosos. Henriqueta foi condenada à morte e guilhotinada e a mãe, apesar de inocente, passou vinte anos na prisão, tendo sido libertada por Luís XVIII. Passou então a presidir o grupo de benfeitores para praticar a caridade.

Godofredo se uniu ao grupo e recebeu sua primeira missão: ajudar um pai, sr. Bernardo,  cuja filha, Vanda, sofria de uma doença desconhecida e incapacitante. Ele o o neto viviam em grande pobreza, ainda que proporcionassem à moça uma série de luxos. Godofredo conseguiu que o médico Halpersohn tratasse à jovem. E estava em vias de conseguir que uma obra escrita por Bernardo, Espírito das Leis Modernas, fosse publicada. É quando Godofredo descobriu que Bernardo era o Barão Bourlac, o procurador-geral de Rouen, que condenara a sra. de La Chanterie e a filha. No final, o Barão, com a filha curada e a vida refeita, implorou o perdão da senhora, que o perdoou. 

Não gostei. A história dos crimes que condenaram La Chanterie é confusa, com personagens que possuem mais de um nome e uma série de reviravoltas. O personagem Godofredo não convence. É um jovem ressentido e ambicioso e se torna, rapidamente, um homem piedoso e devotado a La Chanterie. Ela é uma verdadeira santa, sendo modelo de todas as virtudes. A doença de Vanda é totalmente bizarra, parece mais uma espécie de possessão demoníaca. Como nos diz Paulo Rónai, na Introdução, no romance "o leitor facilmente surpreende os defeitos das primeiras obras - grandes concessões aos romantismo, caracteres excessivamente simplificados, estrutura fragmentada - agravados pela presença constante da tendência moralizadora" (BALZAC, 1991, p. 528). O perdão final da sra. La Chanterie não economiza na pieguice: "Por Luís XVI e Maria Antonieta, aos quais vejo no cadafalso, pela sra. Elizabeth, por minha filha, pela sua, por Jesus, perdoo-lhe" (BALZAC, 1991, p. 5).

Mas Balzac é Balzac. Sempre encontramos trechos interessantes. Veja-se esse: "A solidão tem seduções comparáveis à vida selvagem, que nenhum europeu abandonou depois de a ter provado. Isso poderá parecer estranho numa época em que cada um vive tão bem para os outros que todos se preocupam com cada um, e em que a vida privada em breve não existirá mais, de tal forma os olhos do jornal, Argos moderno, se avantajam em ousadia, em avidez" (BALZAC, 1991, p. 558). Eis nosso historiador de costumes antecipando as redes sociais! 


BALZAC, Honore de. A Comédia Humana. vol. XI. São Paulo: Globo, 1991. 

Imagem de Adrien Moreau em Honoré de Balzac, The Other Side of Contemporaneous History. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. Não havia identificação, mas eu vejo a sra. de La Chanterie, e Godofredo se curvando na frente dela. 

sábado, 5 de março de 2022

Os pequenos burgueses

Os Pequenos Burgueses 

Volume XI: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Parisiense

Personagens: Maria Joana Brígida Thullier,  Luís Jerônimo Thuillier (irmão de Maria Joana),  Métiver Sobrinho (vizinho do lado esquerdo dos Thullier, comerciante de papel), Barbet (vizinho do lado direito dos Thullier, livreiro), Dutocq (escrivão da Justiça de Paz), Colleville, Poiret, Celeste Lemrpun (sra. Thuillier), sra. Lemrpun (mãe de Celeste), Flávia Colleville, Carlos de Grondeville, Keller, Celeste Luísa Carolina Brígida Colleville, Des Lupleaux, Carlos Colleville, Teodoro Colleville, Phellion, Félix Phellion, sra. Barniol (filha de Phellion), Mário Teodoro Phellion (filho de Phellion), Genoveva (cozinheira de Phellion), Dutocq, Minard, Zélia Minard, jovem Minard (advogado), Prudência Minard, mestre Godeschal, Olivério Vinet (substituto do procurador do rei), Teodódio de La Peyrade, Cérizet, Cadenet, sra.Cardinal, Olímpia Cardinal, sr. Poulillier, sr. du Portail, Lídia de La Peyrade. 


Colleville e Flávia Colleville

A história começa em 1839

Só a seriedade do meu projeto de ler toda a Comédia Humana me animou para concluir a leitura de Os Pequenos Burgueses. Trata-se de uma obra inacabada, e que possui uma triste história ligada à Condessa Hanska. Paulo Rónai nos conta na introdução como a viúva de Balzac passou o que ficara escrito a Charles Rabou para que ele concluísse a obra. Afirmava que Balzac assim desejava. Ocorre que Rabou escreveu cinco oitavos da obra final. Balzac deixou uma frase inconclusa. "Cérizet tomou uma...". No final da edição da Globo, que utiliza  a edição da Pléiade, Rónai apresenta um resumo, absolutamente bizarro, do escrito de Rabou. 

Mas em 1843, Balzac escreveu à noiva sobre o plano de Os Pequenos Burgueses, com o exagero habitual, "é dessa obras que deixam tudo pequeno a seu lado". Comenta sobre o projeto em várias cartas e deixa de mencioná-lo em 1844. 

Trata-se  da história de Teodósio de La Peyrade, mencionado como "um jovem, morto de fome de cansaço" no final de Esplendor e Misérias das Cortesãs. Balzac indica nas cartas que La Peyrade é o "Tartufo moderno" que deseja, empregando vigarice a astúcia, obter a mão e o dinheiro da jovem Celeste Colleville. Quase todos os personagens são Os Funcionários que, passados quinze anos, se aburguesaram. A novidade é Brígida Tullier, uma solteirona típica de Balzac, que dirige o irmão, a cunhada e o destino de Celeste, sua protegida. 

Presentes as descrições balzaquianas que são interessantes quando demostram o seu propósito. Aqui, com a obra inconclusa, ficam enfadonhas e repetitivas. Presentes também as negociatas com dinheiro e com juros, capitaneadas aqui pelo usurário Cérizet. 

Creio que o maior problema de Os Pequenos Burgueses é que Balzac, no deslumbre em ter "trazido uma sociedade inteira na cabeça", deixa aparente, com o excesso de personagens e com ligações artificiais entre eles, a urdidura da Comédia Humana. É como se víssemos os bastidores de um espetáculo. Além disso, La Peyrade não é convincente. São muitas tramas e maquinações aceitas com muita ingenuidade por pessoas que, como Brígida, é naturalmente desconfiada, ou como Flávia Colleville, é uma mulher experiente e calculista que já teve muitos amantes.

Enfim, a leitura vale para que quer saber tudo de Balzac. Ou para quem, como eu, tem uma missão. 

Imagem retirada de: Honoré de Balzac, The Petty Bourgeois. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:BalzacPettyBourgeois01.jpg Acesso em 5 de março de 2022.