domingo, 11 de fevereiro de 2018

Esplendores e Misérias das Cortesãs

Esplendores e Misérias das Cortesãs (1838-1847)

Volume IX: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Parisiense (lido entre dezembro de 2017 e 14 de junho de 2020).

Personagens principais: Luciano Chardon de Rubempré, Ester van Gobsek (Torpedo), Carlos Herrera (Jacques Collin, Vautrin, Engana-Morte), Europa (Eugênia, Prudência Servien), Ásia (Sra. Saint-Estève, Jacqueline Collin), Paccard, Diana de Maufrigneuse (duquesa), Leontina de Sérisy (condessa) marquesa d´Espard, Clotilde de Grandlieu, barão de Nuncingen, Peyrade (tio Canquoelle, Samuel Jonhson), Contenson, Corentin, juiz Camusot, Amélia Camusot (esposa do juiz), Susana du Val-Noble, Eva Séchard (irmã de Luciano), Bibi-Lupin, Conde Granville (procurador geral), Teodoro Calvi (Madalena), La Pouraille (Dannepont), Riganson (Biffon).

A história inicia em 1824 e termina em 1830.

Optei, dessa vez, por elencar os personagens principais, uma vez que figuram nesse romance quase todos os personagens da Comédia Humana. É um dos textos mais longos de Balzac e aqui nos surpreendemos mais uma vez com a capacidade do escritor para trabalhar com tantos personagens e alusões a outras histórias (algumas incrivelmente escritas após).
Esplendores conta com quatro partes escritas e publicadas em épocas diferentes: Como Amam as Cortesãs, Por Quanto o Amor Fica aos Velhos, Aonde os Maus Caminhos Vão Dar e A Última Encarnação de Vautrin. Elas foram publicadas juntas somente em 1869, depois da morte do escritor.
Ajuda ao leitor saber que Esplendores é a continuação de Ilusões Perdidas que, por sua vez, é a continuação de O Pai Goriot.
A história começa com o romance entre a prostituta Ester e Luciano de Rubempré sob a vigilância do padre Carlos Herrera. O padre, enviado do rei da Espanha, tomou Luciano sob sua proteção no final de Ilusões Perdidas. Herrera pretendia fazer de Luciano um grande homem, obtendo para ele um bom casamento. Para isso era preciso de um nome, obtido com a recuperação do "de Rubempré" da família da mãe do jovem com a intercessão do rei. E era preciso uma propriedade no campo. O padre via o relacionamento de Luciano com Ester como uma ameaça ao futuro do rapaz. Ao invés de proibir, ele controlou o romance. Escondeu Ester, de modo que os encontros fossem secretos, enquanto Luciano fazia seu nome junto à grande sociedade. O idílio durou quatro anos. Em 1829, Luciano tinha um bom casamento a vista, com Clotilde de Grandlieu, segunda filha do duque de Grandlieu. Ao mesmo tempo, era amante da condessa de Sérisy. A compra das terras era premente. Quando o barão de Nuncingen viu em um parque, durante a noite, Ester e por ela ficou obcecado, Herrera viu a chance de obter os milhões necessários ao casamento de Luciano. Nuncingen "comprou" Ester através de uma série de tramoias desenvolvidas pelo padre e seus ajudantes, Prudência Servien, Paccard e Jacqueline Collin. Tudo estava encaminhado para o desfecho positivo. Mas Ester, após se entregar ao barão, se suicidou. Nesse meio tempo, Peyrade, Contenson e Corentin, agentes da polícia política, investigavam a vida de Luciano e suas relações com o misterioso padre. Com o suicídio da cortesã, Luciano e o padre Herrera foram presos. Luciano, mantido sem comunicação, confessou sua ligação com o sacerdote e revelou que ele era na verdade o evadido das galés, Jacques Collin, morador da pensão Vauquer em O Pai Goriot sob o nome de Vautrin. A ex e atual amante do jovem, Diana de Maufrigneuse e Leontina de Sérisy, tentaram salvá-lo. Mas Luciano se suicidou na prisão.
Na última parte encontramos Jacques Collin, devastado pela perda de Luciano, tentando dar novo rumo à sua vida. Através de uma série de manobras ele conseguiu salvar da forca um antigo protegido, o jovem Teodoro Calvi, também fugido das galés. E finalmente se tornou agente da polícia política, função que exerceu por quinze anos até se aposentar por volta de 1845.
O resumo é confuso, porque a história é confusa. São, na verdade, quatro histórias diferentes que estão interligadas. Como bem aponta Paulo Rónai: "os dois ambientes principais do livro, o da prostituição e o dos galés, comunicam-se por meio de canais secretos, cujos mistérios Balzac revela, com os meios da alta finança e da aristocracia, ideia esta que o romancista já aproveitou em outros romances, mas do qual tira aqui o melhor partido". Aqui percebemos a coesão do mundo criado por Balzac, um mundo no qual o dinheiro faz as distâncias entre o Faubourg Saint Germain e a Conciergerie mais aparentes que reais.
O ponto fraco de Esplendores é a fraca verossimilhança de certas passagens. O envio de Ester para uma escola de moças e sua transformação, seu relacionamento secreto com Luciano em Paris por quatro anos, as absurdas tramas de Jacques Collin com suas comparsas que sempre dão certo, a facilidade com que um espertalhão como Nuncingen foi enganado, tudo isso compromete a história. Mesmo assim o ritmo é "vertiginoso e avassalador". Mesmo que partes da história sejam pouco críveis, não conseguimos parar de ler.
Os dois grandes personagens do livro são Luciano e Jacques Collin. A morte de Luciano é chocante e recebida com pesar pelo leitor da Balzac. Em passagem conhecida, Oscar Wilde declarou que "umas das maiores tragédias da minha vida é a morte de Luciano de Rubempré. É uma mágoa da qual nunca pude me livrar completamente". O Luciano que aqui aparece é diferente do de Ilusões Perdidas. Aqui Balzac utiliza sua "invenção", o reaparecimento das personagens em diferentes romances, para dar nuances às suas personalidades. (Marcel Proust, admirador de Balzac, faz o mesmo em Em Busca do Tempo Perdido). O jovem que, inspirado por Napoleão, desejava conquistar Paris com a sua literatura (ainda que com dramas de consciência) em Ilusões, aqui aparece como o equivalente masculino da cortesã, sustentado por mulheres em função da sua beleza física. 
Jacques Collin, como já mencionado, teve sua inspiração em François-Eugène Vidcoq (1775-1857), evadido das galés que trabalhou para a polícia. As passagens que o envolvem são as mais inverossímeis. Mesmo assim, é um grande personagem. Sua astúcia e sua força física são humanizadas pelo amor que nutre por Luciano. Colllin, sabendo que não seria possível viver em sociedade, transformou Luciano em seu projeto de vida, dedicando o seu dinheiro (roubado dos galés, a quem ele servia como uma espécie de banqueiro) e seus talentos para ver o rapaz vencer na vida. Mas, ainda que arrasado pelo suicídio do seu "filho", Collin logo articulou uma outra encarnação, "a última encarnação de Vautrin". 
Muito se discute sobre a homossexualidade de Jacques Collin. Ao longo da Comédia ele tem ligação com três jovens, todos fisicamente atraentes: Luciano, Eugênio de Rastignac e Teodoro Calvi. E atribui parte de sua força moral à indiferença às mulheres. Quando foi à casa da condessa de Sérisy com a carta de Luciano para retirá-la da loucura que a morte do amante causara e viu o conde "escapar um gesto de alegria" (mesmo com a consciência de que era traído pela condessa com Luciano) ele pensou:
"Aí estão, pois, esses homens que decidem dos nossos destinos e dos destinos dos povos! (...) Basta o suspiro de uma fêmea para lhes virar a inteligência do avesso. Por um olhar perdem a cabeça! Por causa de uma saia mais arregaçada ou menos arregaçada percorrem Paris desesperados! As fantasias de uma mulher reagem sobre todos os negócios de Estado! Ah! Que força adquire um homem quando se subtrai, como eu, a esta tirania infantil, a estas probidades derrubadas pela paixão, a essas maldades cheias de candura, a estes estratagemas de selvagem! A mulher com o seu gênio de algoz, com o seu talento para a tortura, é e será sempre a desgraça do homem. Procurador-Geral, ministro, ei-los todos obcecados, torcendo tudo por cartas de duquesa ou de menina solteira, ou por causa de uma mulher que será mais maluca com o seu juízo do que o era sem ele". 
Encontrei alguns estudos com discussões bizantinas a respeito de ter ou não sido a relação de Collin com Luciano consumada. Discussão sem sentido, uma vez que o caráter da relação, platônica ou não, não modifica em nada o amor e devoção do bandido pelo jovem . Balzac era delicado ao tratar do tema, veja-se A menina dos olhos de ouro. Aqui não seria diferente. 
Para terminar, algo que me chamou muito a atenção. O conhecimento de Balzac do interior da Conciergerie, prisão na época da Comédia e palácio real entre os séculos X e XIV. Para descrever todos os corredores, as passagens secretas, as entradas e saídas, o pátio, as vistas das janelas, o material do qual eram feitas as grades das janelas (!), ele dever ter ido lá muitas vezes. E não só isso. Ele descreve o palácio real, ou seja, como era a Conciergerie antes de ser uma prisão. Da próxima vez que for a Paris (que seja logo!), vou levar comigo essa descrição.