domingo, 27 de novembro de 2011

A Língua Absolvida

A Língua Absolvida. Elias Canetti. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Tradução: Kurt Jahn.

Lido entre 17 de agosto e 12 de setembro de 2011.

Gosto muito de biografias. E não me importa muito se a história é da vida de alguém conhecido ou desconhecido. Sei, pois trabalho como historiadora, o quanto uma biografia pode ser distorcida, especialmente uma autobiografia. Mesmo assim gosto, ainda que reconheça que, via de regra, o que lemos é uma versão do que realmente aconteceu.
A Língua Absolvida me despertou a atenção, pois, além de uma biografia (é o primeiro volume de três), é originalmente escrito em alemão. Mas o que me fez levá-lo para casa, foi um detalhe: Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, era búlgaro de nascimento e sua língua materna não era o alemão, mas o ladino, língua dos judeus sefaradins. Considero um mistério um escritor tornar-se um mestre num idioma que não é o seu. Fiquei assombrada quando soube que Joseph Conrad aprendeu inglês depois dos vinte anos. Canetti aprendeu alemão ainda menino, mas, mesmo assim é algo fascinante A Língua Absolvida cobre o período de 1905, ano de nascimento de Canetti, a 1921.
O autor nasceu em Buschuk na Bulgária em uma grande família de judeus sefaradins. Da infância mais tenra se destacam as lembranças dos dois avós, o Canetti e o Arditti, a casa comunal com as empregadas búlgaras, a visão assustadora e irresistível dos ciganos e a “língua mágica”. Seus pais, quando não queriam ser compreendidos, falavam em alemão, que Canetti considerava uma língua mágica. Foi seu primeiro contato com a língua adotada que se tornaria a sua.
Quando tinha seis anos, seus pais se mudaram para Manchester na Inglaterra. Foi uma decisão de seu pai que queria escapar do jugo paterno. Resolveu ir tabalhar com um cunhado que tinha uma empresa na Inglaterra. O avô Canetti não aceitou a decisão e, ao perceber que era irreversível, amaldiçoou o filho diante de toda a família. O pai de Elias, Jacques, quando jovem, desejou tornar-se ator. Mas o velho Canetti impôs a ele um destino de comerciante. Eis que agora, aos trinta anos, com esposa e três filhos, ele iria viver por sua conta. Cerca de um ano depois, um dia, depois do café da manhã, Jacques Canetti teve um infarto e caiu morto na sala de jantar - a maldição se concretizara.
A família foi, então, residir em Viena. Na verdade, Elias ficou com a mãe, e os irmãos menores foram para um escola na Suíça. A mãe, Mathilde, que segundo Elias, até a morte do pai, não tinha muita importância, passou a ser a figura chave de sua infância. Ela ensinou-lhe alemão, a língua mágica, de forma brutal, mas funcionou. Eles passavam os serões discutindo obras literárias, especialmente teatrais. Elias relata algumas lembranças da guerra - os versinhos ofensivos que os colegas diziam sobre os russos e o quanto isso irritava sua mãe, uma pacifista ferrenha, o racionamento, as filas, o pão feito de estranhas mistura., um triste trem de refugiados.
Em 1916, foram para a Suíça. Lá a mãe trouxe os filhos para a casa e assumiu a rotina sem ajuda. Isso durou dois anos e então ela adoeceu - não tinha estrutura para criar três crianças sozinha.
Então, em 1919, Elias foi morar em uma pensão administrada por solteironas em Tiefenbrunnen na Suíça. Nesse período apaixonou-se por ciência e escreveu sua primeira obra literária. Faz um retrato riquíssimo de seus professores e de alguns colegas. Em maio de 1921, a mãe preocupada com o caráter do filho foi buscá-lo na escola para enviá-lo à Alemanha. Elias não queria ir, mas a mãe estava irredutível.
Se destaca nesse primeiro volume o retrato vívido e honesto de Mathilde. Ela aparece com todas as complexidades: como a mulher que despertava ciúme no marido; pacifista, extremamente afetada pela guerra, mãe recalcitrante, que queria, mas não conseguia cuidar dos filhos sozinha; leitora apaixonada e voraz; vaidosa; frustrada; agressiva. A passagem em que ele revela a fantasia de Mathilde de que um suposto famoso pintor que eles encontraram num hotel queria pintá-la faz com que mulher saia das páginas do livro e saia andando na nossa frente. O homem maduro que escreve a biografia compreendeu que a mulher que sua mãe foi abrira mão de uma vida própria pelos filhos - ela enviuvou jovem, poderia ter se casado novamente, se dedicado aos estudos. Ela se sacrificou, mas não conseguia esconder a frustração.
A história do pai que desejava ser ator, mas tornou-se comerciante, dá o tom do conflito vivido por Elias nesse período da vida. Ele estava se tornando um intelectual e a frase do pai ecoava em seu pensamento: “Você será aquilo que quiser ser. Você não precisará ser comerciante como eu e os tios. Você estudará e escolherá aquilo que mais lhe agradar”. Mas a mãe, também filha de comerciantes, após incentivar nele a leitura e a busca de conhecimento, o chama para a vida prática: “Quem lhe dará dinheiro para isso? (estudar)”. O conflito da vida do pai, chegou à do filho aos dezesseis anos

domingo, 20 de novembro de 2011

Um Conchego de Solteirão - terceira história de Os celibatários (novembro de 1842)

Volume VI: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Provinciana (lido entre 3 de dezembro de 2010 e 11 de julho de 2011).

Personagens: doutor Rouget, João-Jacques Rouget, Ágata Rouget, Bridau, Felipe Bridau, José Bridau, senhora Descoings (tia de Ágata), Florentina, Giroudeau, Maximiliana Hochon, senhor Hochon, Maxêncio Gilet, Francisco Hochon, Baruch Hochon, Fario, Flora Brazier, Fanchette, Horácio Bianchon, Bixiou.

Começo a falar sobre Um Conchego de Solteirão a me repetir. Se Balzac houvesse apenas produzido esse romance, ele já estaria entre os melhores. Temos aqui um romance em duas partes com núcleos diversos, tanto que Balzac mudou seu nome algumas vezes (pensou em A Gapuiadora e Os Dois Irmãos, mas optou por Um Conchego de Solteirão). A primeira parte discorre sobre a vida e o caráter dos irmãos Felipe e José Bridau. Felipe e José eram filhos de Ágata Rouget. Ágata e seu irmão, João-Jacques, eram filhos do doutor Rouget da cidade de Issoudun. O doutor, todavia, tinha sérias dúvidas sobre a paternidade de Ágata e enviou a filha a Paris para morar com os parentes da esposa, os Descoings. Ágata conheceu então Bridau, revolucionário girondino. Casaram-se, veio o Diretório e o Império e Bridau tornou-se homem de confiança de Napoleão. Tiveram dois filhos, Felipe e José, criados com facilidades no período napoleônico. Em 1808, Bridau faleceu precocemente. Ágata passou a morar com a tia Descoings e dedicar-se a criar os filhos. Felipe inclinou-se cedo às armas. Era belo e extrovertido, merecendo a preferência da mãe. José, o caçula, tinha pendores artísticos e cedo resolveu que seria pintor de quadros. A mãe desaprovava. Considerava a arte carreira pouco segura e desimportante. A comparação de José com o irmão era desvantajosa para o artista. José era feio, tímido e desajeitado. Desaprecia ao lado do solar Felipe. Enquanto José se instruía nas artes, Felipe ingressou no exército e foi ajudante-de-ordens de Napoleão na batalha de La Fère-Champenoise. Ao retornar à casa de mãe em 1814, depois da derrota de Waterloo, encontrou a família arruinada: a bolsa de estudos de José e a pensão da senhora Bridau haviam sido suprimidas: “Capitão aos dezenove anos e condecorado, Felipe, tendo servido como ajudante-de-ordens do imperador em dois campos de batalha, lisonjeava imensamente o amor próprio da mãe; assim, embora grosseiro, desordeiro, sem outro mérito além da vulgar bravura do soldado, parecia a seus olhos, um homem genial. Enquanto isso José, pequeno, magro, doentio, com uma fronte selvagem, amando a paz, a tranquilidade, sonhando com a glória artística, só lhe daria, segundo pensava, tormentos e inquietações”. Felipe então começou a mostrar seu caráter. Não trabalhava, passava nos cafés com outros oficiais bonapartistas e servia-se à larga da bolsa da mãe. Em 1817, convenceu Ágata a financiar uma desastrada viagem para os Estados Unidos para juntar-se ao Coronel Lallemand. Retornou em 1819 com dívidas que foram pagas pela estoica mãe. O coronel então entregou-se sem reservas a uma vida de farras. Tornou-se amante de uma dançarina e passou a roubar dinheiro da mãe, irmão e tia para gastar no jogo. Finalmente, roubou o dinheiro que a tia Descoings guardava para jogar na loteria. O número no qual a velha jogaria foi sorteado e ela morreu de desgosto. Ágata, então , o expulsou de casa. Ágata teve de arrumar um emprego e passou a viver modestamente com José, que trabalhava muito para dar à mãe uma existência mais leve. Felipe acabou preso, sob acusação de envolvimento em uma conspiração. Para libertá-lo, seria necessária uma quantia da qual Ágata não dispunha. Nesse ponto, a boa mãe recebeu uma carta da senhora Hochon, sua madrinha em Issoudun. Ela contava que Joâo-Jacques, irmão de Ágata, vivia com uma concubina que o tratava mal, e pretendia deixar toda a herança para a tal mulher, ignorando irmã e sobrinhos. E diz que Ágata devia ir imeditamente à terra natal. Ágata então partiu com José.
A ação se desloca para Issoudun, onde um novo grupo de personagens entra em ação. Há basicamente dois núcleos. A casa dos Hochon, onde Ágata e José ficaram hospedados e, defronte, a casa de Rouget. O talento de Balzac para criar personagens pérfidos é enorme. Na primeira parte, ele faz o terrível Felipe brilhar. Agora surgem Flora Brazier e Maxêncio Gilet. Flora é a tal gapuiadora quase deu o nome ao romance. Certa vez, Balzac viu uma menina no rio em Issoudun gapuaindo, ou seja, revolvendo a água com um galho de árvore para encaminhar os caranguejos para as armadilhas dos pescadores. É exatamente assim que Flora, aos doze anos, aparece na história. Em 1799, o doutor Rouget, pai de Ágata e João-Jacques, encontrou Flora no rio e, encantado com a sua beleza, levou-a para casa, dando uma pequena compensação ao tio da menina. Tudo indica que Rouget tinha intenções libidinosas para com a moça, mas morreu antes de concretizá-las. Flora então ficou na casa e tornou-se criada-amante de João-Jacques, a quem dominava completamente. Max Gilet é um temperamento gêmeo de Felipe Bridau. Contudo, ao contrário de Felipe, Max não teve boa estrutura familiar. Filho da esposa de um tamanqueiro, de beleza singular, com pai desconhecido, Max foi criado solto e alistou-se no exército para escapar de uma acusação de assassinato. Só teve algum brilho, porém, nos Cem Dias. Retornou a Issoudun e, assim como outros oficiais do Império, ficou ocioso. Organizou, então, um grupo de jovens, espécie de confraria, os Cavaleiros da Malandragem, que faziam estripulias de madrugada em Issoudun. Tornou-se amante de Flora que convenceu Rouget a deixá-lo a morar em sua casa. A ideia dos amantes era tomar a fortuna de Rouget e fugir. Assim, a chegada de Ágata causou um alvoroço na cidade. Flora não deixou que Ágata se aproximasse do irmão e José acabou falsamente acusado de tentar matar Max. Sem sucesso, eles retornaram a Paris. Eis que então Felipe retorna para a história. O coronel foi condenado a cinco anos de vigilância pela polícia política em uma cidade do interior da França. Desroches, tabelião e amigo da família, conseguiu que ele fosse para Issoudun e instiruiu-o a reaver a fortuna de sua família. Aconselhado por Desroches e por Hochon, Felipe, com sua astúcia, teve sucesso onde os bons Ágata e José não tiveram. Conquistou a confiança do tio, dominou Flora e matou Max em um duelo. Terminou por apressar a morte do velho Rouget e casou com Flora. Levou-a a Paris, onde incentivou nela o vício da bebida. Rico e com amigos influentes, prestou obediência aos Bourbon, subiu muito e aguardava a morte da mulher para desposar uma jovem nobre. Virou às costas à mãe e ao irmão. Acabou perdendo a maior parte de sua fortuna na bolsa. Voltou à ativa e foi para a Argélia, onde morreu em combate em 1839. Ágata faleceu convencida de que prefirira durante toda a vida o filho errado. E José prosseguiu sua carreira de pintor. Acabou ficando, por herança, com os bens que restaram de Felipe, bem como com seu título de nobreza, Conde de Brambourg.
É uma história complexa com personagens marcantes. Muito poderia ser comentado, mas destaco dois temas. Um deles, é a inadequação para a vida civil de temperamentos feitos para a guerra. Balzac conheceu isso muito bem. A França passou 25 anos em guerra quando iniciou o período da Restauração. Milhares de militares retornaram à vida civil apenas para descobrir que não serviam para ela. É o caso de Felipe e de Maxêncio. Homens que pela força, pela desenvoltura e destemor seriam heróis e protagonistas de feitos grandiosos, mas que, longe da espada, tornam-se golpistas mesquinhos e aproveitadores. Assim era o grupo de Felipe em Paris e de Max em Issoudun.
O outro tema é de caráter biográfico. A preferência de Ágata por Felipe em detrimento de José é a preferência de madame Balzac por Henry, seu caçula, em detrimento de Honoré. Anne Charlotte Laure Sallambier casou aos dezoito anos com Bernard-François Balssa (que depois se transformou em Balzac) de cinquenta. Foi um casamento arranjado e Balzac foi o primeiro filho do dever. Dez anos depois, nasceu Henry, filho do amor, que atendia pelo nome de Jean de Margonne (ele legou 200 mil francos em testamento a Henry). Madame Balzac sempre foi rígida e ríspida com o seu primogênito. O manteve fora de casa por quatro anos. Já com Henry, revelou-se uma mãe dedicada e amorosa. Pois, Balzac tornou-se famoso e conhecido, ao passo que Henry teve uma carreira errática nas colônias francesas, vindo a falecer em 1858 empobrecido nas ilhas Comores. Daí o paralelo entre Balzac e José. José também era artista e todos julgavam que escolhera mal a carreira, ao passo que o irmão, militar, parecia fadado à glória. Na época em que Balzac começou a escrever parecia muito mais provável que Henry fosse bem sucedido profissionalmente. Pois Balzac tornou-se mundialmente famoso e passou a sustentar a mulher que o preterira.
Na minissérie Balzac, na qual Gerard Depardieu faz um Balzac bem convincente, há uma cena ótima que resume esse drama. Balzac, com cerca de doze anos, está no colégio interno. Recebe a visita de sua mãe. O garoto corre feliz para abraçá-la. Uma sinistra Jeanne Moreau o afasta, alegando que ele não tinha boas notas, por isso não merecia carinhos. Fazia anos que ele não a via.

domingo, 13 de novembro de 2011

Comédia em tom menor

Comédia em tom menor. Hans Keilson. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Tradução: Luiz A. de Araujo.

Lido entre 9 e 12 de setembro de 2011.

Foi coincidência Hans Keilson ter falecido poucos dias antes de sua obra, Comédia em Tom Menor, ser lançada no Brasil. O interesse da Companhia das Letras pelo centenário escritor certamente nasceu com sua definição pela articulista do The New York Times, Francine Prose, em 2010, como um dos grandes escritores do mundo.
Keilson nasceu na Alemanha, mas se estabeleceu na Holanda. Judeu, integrou a resistência holandesa durante a Segunda Guerra. Farmacêutico e médico, uma de suas tarefas era visitar crianças judias que haviam sido separadas de seus pais. Essa foi a inspiração para a sua futura especialização em psiquiatria e por seu interesse em traumas de guerra. Seus pais morreram em Auschwitz.
Comédia em Tom Menor é uma novela breve a respeito do tema que ficou mundialmente famoso com o Diário de Anne Frank: as famílias que esconderam judeus durante a Segunda Guerra. 
A história se passa na Holanda. Um jovem casal, Wim e Marie, recebe a proposta de um um conhecido de abrigar um judeu em sua casa. Eles aceitam “cumprir seu dever patriótico” e recebem Nico, caixeiro-viajante, vendedor de perfumes. Determinam que o hóspede ficará em um quarto, do qual só sairá durante a noite. Alguns ajustes devem ser feitos, como reduzir o horário e as tarefas da faxineira para que ela não descubra o visitante. A irmã de Wim, Coba, uma das únicas pessoas que frequenta a casa, é comunicada e o casal se surpreende ao saber que ela também é uma ativista da resistência. Aos poucos se estabelece uma rotina entre os três, quebrada por alguns percalços - o peixeiro que chega na hora errada, a faxineira que surpreende Nico. 
Alguns meses depois, Nico pega uma gripe que se complica. O casal chama um médico conhecido que trata o hóspede. Mas ele piora e acaba falecendo. Wim e o doutor enrolam o corpo em um cobertor e o abandonam em um parque próximo, onde seria encontrado pela polícia e enterrado. Ocorre que Marie vestira o cadáver de Nico com um pijama de Wim e esqueceu de arrancar o número de registro da tinturaria. A polícia poderia descobri-los. Coba os aconselha a se esconder por um tempo. E eis que Wim e Marie assumem o lugar de Nico, se escondendo em uma pensão em uma cidade próxima. Alguns dias depois, o casal recebe a notícia de que o guarda que encontrara o corpo também era da resistência e eliminou a prova antes do chefe de polícia, nazista, chegar.  
Um trabalho de ficção que fale da resistência ao nazismo, por si só é interessante, já que é um tema pouco trabalhado na literatura. Wim e Marie são pessoas comuns, sem maiores opiniões políticas, pouco sabem sobre os judeus. Mas sabem que escondendo Nico e correndo risco de vida por isso, estão fazendo a coisa certa. 
Para mim, o tema principal do livro é mais universal do que a Segunda Guerra e o holocuasto: é o mistério da alteridade. É uma pena que Keilson não o tenha trabalhado melhor. O trecho em que Nico e Marie falam sobre os judeus está, para mim, ligado ao trecho em que o casal, confinado no esconderijo, se estranha mutuamente. “Não havia detectado em Nico absolutamente nada que lembrasse religião. Aliás, nenhum dos dois compreendia, embora o tivessem acolhido em casa, o que afinal era um judeu. Uma pessoa como outra qualquer. Mas... Mas o quê? Nada mais difícil do que lidar com a intimidade com um sujeito, mantê-lo tanto tempo na vida doméstica, sem acabar fazendo uma ou outra pergunta sobre sua vida. Isso não quer dizer que não surjam problemas repentinos e aí seja preciso traçar limites, enquanto esse não era o caso deles, no contato mais afetuoso, pois o tratavam com naturalidade. Mas os dois queriam muito saber por que Nico continuava sendo um judeu para eles. Não porque os outros diziam que ele era, certo? “ (...) Então, olhou para Marie. Também estava arredada na distância, quase inalcançável. Naquela postura, os braços rijamente colados ao corpo, as mãos entrelaçadas no regaço, solitária e cheia de dissabor, já não era sua mulher. Não havia vínculo entre eles. Wim a viu como se fosse pela primeira vez”. 
Receber um estranho em casa e conviver com ele, em situação de quase confinamento, é uma experiência de buscar o semelhante no estranho. Mas numa situação de guerra, de separação e morte iminente, talvez fique mais claro aquilo que a familiaridade do dia dia esconde - todos são estranhos diante da singularidade humana e os rótulos - judeu, árabe, brasileiro, gaúcho - talvez sirvam para aliviar o peso dessa constatação.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O Cura de Tours - segunda história de Os Celibatários (abril de 1832)


Personagens: padre Francisco Birotteau, padre Troubert, padre Chapelaud, Sofia Gamard, Mariana (criada), senhora de Listomère, Barão de Listomère (sobrinho da senhora de Listomère), senhor de Bourbonne.

A história se passa entre 1826 e 1827.

Em Cura de Tours Balzac mostra ao leitor como é possível escrever uma história cheia de emoção e de paixão tendo quase nada como seu objeto.
Birotteau, vigário da igreja de São-Gatien, residia confortavelmente como pensionista da senhorita Gamard, uma circunspecta solteirona que, além de Birotteau, também hospedava o padre Troubert. Birotteau sucedera ao falecido padre Chapelaud na morada da solteirona Gamard. Chapelaud, que lá residira por 12 anos, havia dotado seus aposentos de mobília luxuosa, tapetes caros, quadros de pintores famosos e de uma biblioteca cheia de preciosidades. Birotteau invejou por anos aquele conforto até que, com a morte de Chapelaud, herdou as instalações do amigo. Além do conforto, Birotteau cobiçava a boa comida da senhorita Gamard e os serviços dedicados prestados por ela e pela criada Mariana. Birotteau, que tudo que almejava na vida era conforto e boa comida, estava no céu. Foi quando a senhora Gamard começou a cortar as suas regalias. Eram dois os motivos: Birotteau frustou seus intentos de formar um salão em Tours, ao preferir os serões em casa dos nobres Listomère; e Troubert desejava os aposentos. Sofia Gamard termina por aproveitar uma estada de Birotteau em casa da senhora Listomère para impedir o seu retorno. Convenceu-o a assinar uma desistência. O vigário desconhecia uma cláusula do contrato que dizia que em caso de desistência, a mobília ficaria com ela.
As manobras de Gamard e Troubert acarretaram, incialmente, solidariedade para com Birotteau. O Barão de Listomère ofereceu-se para atuar como seu advogado e sua tia passou a hospedá-lo. Somente o senhor de Bourbonne aconselhou Birotteau a se conformar com a situação. Foi quando o Barão teve negada uma promoção que era dada como certa para um posto da Marinha. Descobriu em Paris que isso ocorrera pela interferência de Troubert. Os Listomère capitularam e abandonaram Birotteau. O infeliz vigário acabou transferido para São Siforiano, arrabalde de Tours. Sofia Gamard faleceu e deixou tudo para Troubert.
É impressionante a habilidade de Balzac de criar conflito com essa trama. Acompanhamos com apreensão os sinais de que Birotteau estava perdendo o seu conforto. Nos exasperamos com a injustiça e a maldade da dupla de celibatários Gamard e Troubert.
Ele criou três personagens memoráveis. Birotteau é o padre gorducho, comilão, cuja maior aspiração é viver confortavelmente. Na noite em que começou a dar-se conta da má vontade de Gamard, “enquanto não vinha o sono, o bom vigário escavava inutilmente o cérebro e, sem dúvida, bem depressa lhe sentiu o fundo, para encontrar uma explicação para a conduta singularmente descortês da senhorita Gamard. Com efeito, tendo sempre agido muito logicamente de conformidade com as leis naturais de seu egoísmo, era-lhe impossível descobrir suas faltas para com a hospedeira. Se as coisas grandes são simples de compreender e fáceis de exprimir, as pequenezas da vida exigem muitas minúcias. Os acontecimentos que constituem, de certo modo, o prólogo deste drama burguês no qual, entretanto, as paixões se mostram tão violentas como se fossem excitadas por grandes interesses reclamavam esta longa introdução (...)”.
Gamard é uma solteirona do time da pérfida Sofia Rogron. Balzac odiava os celibatários em geral, mas odiava muito mais as solteironas do que os padres. Para ele, a existência da mulher estava visceralmente ligada ao amor e aos filhos. Uma solteirona, portanto, não tinha nenhuma serventia. E a amargura de não ter um homem com quem dividir a vida e filhos para criar tornava-as mesquinhas e más. No final, Gamard terminou sendo vítima também de Troubert que a detestava, a usou para afastar Birotteau e ainda ficou com todo o seu patrimônio.
Já Troubert é o padre sinistro. Balzac deixa claro que em outras épocas ele seria um Bórgia ou um Torquemada. Mas na época medíocre em que se passa a história, ele usou suas habilidades para roubar a mobília de um vigário da província.
O Cura de Tours é mais uma história adorável do mestre da Comédia Humana.