segunda-feira, 30 de maio de 2011

O Pai Goriot (setembro de 1834) - 2ª parte

Personagens: senhora Vauquer, senhora Couture, Victorina Taillefer, senhorita Michonneau, pai Goriot, Vautrin (Jacques Collin), cozinheira Sílvia, Eugênio de Rastignac, criado Cristóvão, senhor Poitet, Horácio Bianchon, Conde de Restaud, Anastácia (condessa de Restaud, née Goriot), conde Máximo de Trailles (amante de Anastácia), senhora de Beauséant, Marquês d´Ajuda Pinto, senhorita de Rochefilde, Delfina (baronesa de Nuncigen, née Goriot), barão de Nuncigen, senhor de Marsay (ex-amante de Delfina).

A história se passa entre novembro de 1819 e 21 de fevereiro de 1820.
A abertura de O Pai Goriot é a típica descrição balzaquina. Estamos na pensão Vauquer, um verdadeiro laboratório do mundo, lócus onde se cruzam os que desceram e os que irão subir. Na hora da refeição, em novembro de 1819, se reunem os três personagens que conduzirão a história.
O senhor Goriot era um ancião de 69 anos. Fora comerciante de massas e enriquecera durante a Revolução. Em 1813, abandonou os negócios e foi morar na Casa Vauquer - Pensão Burguesa para os dois sexos e outros. Inicialmente bem aquinhoado atraiu o interesse da senhora Vauquer, que achava-se ainda interessante para atrair um marido. Mas logo sua roupa fina, suas pratas, seus pertences caros começaram a desaparecer. Ele foi então rebaixado na pensão, em todos os sentidos, e passou a ser chamado o Pai Goriot. Uma das teorias que circulava a respeito do velho era a de que gastava seu dinheiro sustentando mulheres jovens, já que damas muito bem vestidas foram vistas algumas vezes em seus aposentos. Era verdade: ele mantinha mulheres muito jovens - eram suas filhas Anastácia e Delfina. Goriot investiu toda a sua fortuna nas filhas, pelas quais tinha uma paixão quase carnal. Providenciou bons dotes para que casassem com homens ricos: Anastácia casou-se com o Conde de Restaud, e Delfina, com o barão de Nuncigen.
Eugênio de Rastignac era um jovem do interior de uma família nobre empobrecida que foi a Paris estudar direito. Queria desesperadamente ingressar na alta sociedade. Para isso, obteve a proteção da senhora de Beauséant, sua prima. Esta descobriu que seu amante, o senhor d´Ajuda Pinto, por quem deixara o marido, estava de casamento marcado com a senhorita de Rochefilde.
Vautrin era o falso nome de Jacques Collin, condenado às galés que escapara e trabalhava como uma espécie de banqueiro dos condenados. Vautrin empenhou-se em “arranjar” as coisas para que a jovem Victorina Taillefer, moradora da pensão que fora renegada pelo pai, fosse reconsiderada tornando-se uma herdeira rica. Vautrin percebeu que Victorina estava apaixonada por Eugênio e incentivou o estudante a investir na moça para enriquecer. O irmão de Victorina foi então morto em um duelo e a jovem tornou-se única herdeira do pai, muito abastado.
Anástacia de Restaud era amante do dandy e jogador Máximo de Trailles. Além de pegar jóias da família para pagar dívidas de jogo de Máximo - episódio narrado em Gobseck - Anastácia recorria ao Pai Goriot.
A senhora de Beausénant, antes de ir se enterrar na província, para esquecer a traição de d´Ajuda Pinto, apresentou Eugênio a Delfina de Nuncigen. Eles se tornaram amantes e o Pai Goriot emprestou dinheiro para que a filha alugasse e mobiliasse um apartamento para o rapaz.
Vautrin foi preso na pensão Vauquer, tendo sido denunciado pela solteirona Michonneau.
Goriot adoeceu seriamente e nenhuma das duas filhas foi sequer vê-lo. Morreu na miséria e foi cuidado e enterrado por Rastignanc e pelo estudante de medicina Horácio Bianchon.
Em poucos dias, a pensão Vauquer se esvaziou completamente. Vautrin foi preso; Poiret e a senhorita Michonneau foram expulsos, depois de denunciar o fugitivo; Victorina e a mãe partiram para uma vida mais folgada; Rastignac foi morar no apartamento pago por Delfina; e Goriot faleceu.
No primeiro parágrafo de O Pai Goriot, Balzac escreve que “é tudo verdade”. De fato, anotações de Balzac fazem supor que ele ouviu alguma história de filhas que depois de ganhar de tudo, abandonaram o pai. Há outras narrativas no mesmo sentido, mas a referência natural é Rei Lear, sendo que Goriot não possuía uma Cordélia para consolá-lo. O crítico Bellessort, citado por Paulo Rónai, comentou que Goriot não inspira a mesma piedade que Lear, uma vez que não respeita o pai em si mesmo sendo cúmplice do adultério de Delfina.
Vautrin teve também um modelo real, um galeriano chamado Vidcoq que publicou suas memórias em 1828. Vautrin é um Mefistófoles cínico e pragmático, capaz de operar nas sombras e atuar como um deus corrigindo as desigualdades e realizando desejos. Ele lê Rastignac com perfeição, percebe que bastará pouco para que o estudante abandone os escrúpulos e apanhe com as duas mãos o que quer. Balzac insinua uma atração homossexual de Vautrin por Rastignac, algo extremamente sutil e velado, mas que muito humaniza essa notável figura.
Por fim, o puro Eugênio que se angustia em ter que sujar de lama seu único par de botas. O Pai Goriot é o romance de formação de Eugênio de Rastignac. Ele chegou a Paris decidido a estudar e vencer na vida. Mas percebeu que os vencedores não frequentam a cátedra, mas os salões elegantes. Para tanto precisa de uma amante rica e bem relacionada. Ao mesmo tempo, observa os destinos de Goriot, de Victorina, da senhora de Beauséant. “Em Rastignac há muitos traços de Balzac, de muito daquilo que Balzac desejava ser. As lutas de Rastignac com a pobreza e suas transigências com a consciência constituem um quadro da mocidade do próprio escritor. Não fosse sua identificação com Rastignac, e não poderíamos compreender essa insistência - quase irritante - com que pretende dá-lo como puro, quando o sabemos mantido pela amante e cúmplice taciturno de um assassínio”. O dilema de Eugênio é escolher um lado. Quando, após o enterro de Goriot, Rastignac contempla Paris do alto da colina do Père-Lachaise e diz a sua frase: “A nous deux maintenant!”, sabemos o que ele escolheu.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Senhorita Else


Senhorita Else. Arthur Schnizler. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Tradução de Marijane Lisboa.

Senhorita Else é uma curta novela de Arthur Schinizler publicada em 1924 em monólogo interior.
Else é uma jovem vienense de dezenove anos, filha de um renomado advogado, que é viciado em jogo e vive afundado em dívidas. Ela está em um hotel em São Martino, na Itália, com a abastada tia Emma e seu primo Paul. No hotel também estão a senhora Cissy Mohr, uma mulher casada que está tendo um caso com Paul, e o senhor Dorsday, um velho conhecido do pai de Else.
Else recebe então uma carta de Viena na qual sua mãe, desesperada, revela que, caso seu pai não pague uma quantia de trinta mil florins, em poucos dias, será recolhido à prisão. A mãe sugere que, sabendo que o senhor Dorsday se encontra no mesmo hotel de Else, a moça peça a quantia a ele. Else hesita, mas acaba fazendo o pedido. Dorsday, então, propõe uma troca: ele manda o dinheiro ao credor de seu pai em troca de vê-la nua em seu quarto ou em uma clareira no bosque. A jovem, cada vez mais confusa, começa a pensar em suicídio, já que possui várias cápsulas do remédio veronal em seu quarto. Nesse meio tempo, chega um telegrama da mãe informando que a dívida passou para cinquenta florins. Else se despe, veste um casaco por cima e se dirige à sala de música do hotel, onde há diversos hóspedes, entre eles um jovem com quem vinha flertando e Dorsday. Ela despe o casaco e desmaia. Seu primo Paul, que é médico, a leva para o quarto. Lá, em um momento de distração de Paul e de Cissy, Else toma o veronal e morre.
Os temas são os tradicionais de Schniztler: hipocrisia, desejo e morte. A mãe de Else, quando faz o pedido, sabe que Dorsday pedirá uma contrapartida à filha. A vergonha da prisão é menor do que o comércio da moça. Else, por sua vez, fica enojada com o pedido do velho, mas também envaidecida. O tempo todo se compara com Cissy, a amante do Paul, percebendo ser mais atraente. E sente óbvio prazer em se despir e sair despida debaixo do casaco. E a morte está presente desde o início. Desde que recebe a carta, Else pensa na morte do pai e em sua morte como solução para o problema. O interessante é que mesmo que a narrativa se encaminhe para o óbvio - Else fala o tempo todo que quer morrer, chega a imaginar o próprio velório, sonha com a morte, fala no veronal repetidas vezes - nos surpreendemos com o desfecho, graças à habilidade de Schniztler.
Para quem se interessa por estilos narrativos, Senhorita Else é um ótimo exemplo de monólogo interior.

terça-feira, 24 de maio de 2011

O Pai Goriot (setembro de 1834) - 1ª parte

Volume IV: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Privada (lido entre 4 de abril e 22 de julho de 2010).

Personagens: senhora Vauquer, senhora Couture, Victorina Taillefer, senhorita Michonneau, pai Goriot, Vautrin (Jacques Collin), cozinheira Sílvia, Eugênio de Rastignac, criado Cristóvão, senhor Poitet, Horácio Bianchon, Conde de Restaud, Anastácia (condessa de Restaud, née Goriot), conde Máximo de Trailles (amante de Anastácia), senhora de Beauséant, Marquês d´Ajuda Pinto, senhorita de Rochefilde, Delfina (baronesa de Nuncigen, née Goriot), barão de Nuncigen, senhor de Marsay (ex-amante de Delfina).

A história se passa entre novembro de 1819 e 21 de fevereiro de 1820.

O Pai Goriot é a “joia da coroa”. Balzac começou a escrever bons romances por volta de 1830. Em 1833, teve seu primeiro sucesso de público e crítica com Eugênia Grandet. Um ano depois, apresentou, com O Pai Goriot, a grande inovação da Comédia Humana - a recorrência de personagens. É sobre ela que falaremos nesse primeiro post.
Existe uma espécie de lenda sobre a forma como Balzac teve a ideia de fazer seus personagens retornarem nos romances. Laure Surville, irmã de Balzac, escreveu uma biografia do escritor em 1858. Laure conta que em um ocasião Balzac chegou à sua casa no faubourg Poissonnière com o rosto iluminado e declarou: “Me dêem as boas vindas, pois estou prestes a me tornar um gênio”. Balzac teria tido uma epifania enquanto caminhava para a casa de Laure: “Por que não ligar os personagens entre si para formar uma sociedade completa?”. Segundo Stéphane Vachon, tal relato é pouco crível. A “trouvaille” ocorreu em 1833. E Balzac somente a utilizou em meados de 1834 em O Pai Goriot. Com tamanho entusiasmo, Balzac iria esperar um ano para impressionar seu público?
Vachon comenta que a ideia balzaquiana que consiste em fazer circular os personagens de um romance a outro de modo que a justaposição de narrativas constitua a história de uma sociedade inteira foi elaborada progressivamente, por aproximações sucessivas, por tentativas parciais, locais e isoladas, por tentativas pontuais e não premeditadas. “Foi verdadeiramente em O Pai Goriot que Balzac começa a aplicar sistematicamente o procedimento que faz reaparecerem os personagens dos romances anteriores. Essa “invenção” não foi uma simples epifania: ela acompanha uma concepção metódica, ambiciosa e nítida da obra ao mesmo tempo que uma visão global, lógica e precisa da sociedade. Momento decisivo, com efeito, na história e na gênese do grande empreendimento balzaquiano e na história de todo o gênero romanesco, O Pai Goriot une com força e autoridade uma experiência (do mundo), uma técnica (romanesca) e um pensamento (sobre a literatura e seus poderes)”.
São 48 personagens da Comédia Humana que aparecem e reaparecem em O Pai Goriot. A técnica não foi bem recebida pela crítica ao tempo da publicação. O crítico do L´Impartial em 8 de março de 1835 caracterizou a inovação como um “capricho de um homem convencido do valor de suas criações”. Em 21 de outubro de 1838, na Revue de Paris, Amédée Pichot declarou: “ Ah, se M. de Balzac soubesse a imensa chatice que é ver o tempo todo reaparecerem as mesmas figuras com as mesmas manias, os mesmos nomes próprios, seguidos dos mesmos sobrenomes, ele arrancaria de um só golpe a cabeça de todos esses personagens que, depois de sete anos, caminham sem cessar para chegar a lugar algum, discutem o tempo todo sem nada concluir”. Alguns anos depois foi Sainte-Beuve que criticou o achado balzaquiano: “Os personagens que retornam nos romances já figuraram pelo menos uma vez em outros textos de M de Balzac. Quando são personagens interessantes e verdadeiros, creio que reproduzi-los é uma ideia falsa e contrária ao mistério que sempre envolve um romance. (...) Graças a essa multidão de biografias secundárias que se prolongam, retornam e se intercruzam sem cessar, a série de Estudos de Costumes de M. de Balzac parece uma rede de corredores de certas minas ou catacumbas. Ou nos perdemos e não mais nos achamos, ou, se nos achamos, não reconhecemos mais nada”.
Foi outro painelista da sociedade francesa, Marcel Proust, que respondeu à crítica de Sainte-Beuve. Para Proust o crítico não entendeu a “idéia de gênio” de Balzac. “Lançando sobre suas obras um olhar a um só tempo de um estrangeiro e de um pai, dando a esse a pureza de Rafael, a esse outro a simplicidade do Evangelho, Balzac projeta sobre eles uma iluminação retrospectiva de modo que eles estarão melhor representados em um ciclo no qual os mesmos personagens retornam.”.
Houve contemporaneamente a Balzac alguns entusiastas da sua ideia, como Félix Davin, que compreendeu a intenção de Balzac de criar um “afresco social”. É o próprio escritor, contudo, de dá sua explicação em um prefácio à primeira parte das Ilusões Perdidas escrito em fevereiro de 1837: “Cada romance não é nada mais do que um capítulo do grande romance da sociedade. Os personagens de cada história se movem em uma esfera que não possui outra circunspecção que não a da sociedade “.
Claro que isso não era mágico. Balzac, ao começar a por em prática a sua ideia, trocou personagens de seus romances iniciais por outros que figuravam em seus trabalhos mais recentes. Às vezes, bastava mudar o nome, em outras, alterava dados biográficos. Eugênio de Rastignac, por exemplo, era Eugênio de Massiac. Ficaram, naturalmente, incoerências nos textos
O resultado, como já comentamos em outros posts, é que, às vezes, conhecemos um personagem sem que conheçamos seu passado, que nós é apresentado posteriormente. Conhecemos por exemplo o destino de Anastácia de Restaud em Gobseck, mas só descobrimos seu passado em O Pai Goriot. Em A Mulher Abandonada acompanhamos a resistência de Clara de Beausant a Gastão de Nueil, mas é em O Pai Goriot que entendemos seu comportamento pela traição de d´Ajuda Pinto. Em Uma Filha de Eva assistimos a atitude compreensiva de Felix de Vandenesse para com a esposa Maria Angélica, prestes a o trair. A explicação virá em Lírio do Vale. Por sua vez a imaturidade de Maria Angélica é em parte explicada pela história de seus pais em Uma Dupla Família. Há, naturalmente falhas, como o caso de Lady Brandon, de O Romeiral, cujo infeliz destino ficou sem explicação. Mas é digno de nota que os erros e imprecisões temporais sejam muito poucos para um escritor que escrevia freneticamente, não tinha ajudantes e dispunha apenas de sua pena.

As citações foram retiradas do dossiê de Stéphane Vachon da edição de Le Père Goriot da Librairie Générale Française - Le Livre de Poche de 1995 com tradução minha.

sábado, 21 de maio de 2011

O Cortiço


Graças aos audiolivros e aos engarrafamentos de Porto Alegre estou fazendo algo que não faria normalmente - revendo obras que li quando era adolescente
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, é o exemplo maior do gênero naturalista no Brasil. Mas no ensino médio - antigo segundo grau - nos preocupávamos muito em identificar características e deixávamos, muitas vezes, de curtir a leitura. E O Cortiço proporciona uma leitura saborosa, vibrante, viva.
O personagem principal é, de fato, um cortiço construído no bairro do Botafogo entre uma venda e uma pedreira pelo português João Romão. Romão uniu-se à escrava Bertoleza e, explorando a mão de obra abundante na capital do Império após um boom econômico ocorrido na década de 1870, criou um pequeno império. Os trabalhadores moravam nas casinhas, consumiam na venda, trabalhavam na pedreira, alugavam tinas para a lavagem de roupa, de modo que todo o dinheiro que circulava no cortiço acabava com João Romão. Ele, de resto, vivia modestamente e trabalhava sem cessar.
Ao lado do cortiço, havia o sobrado do comerciante Miranda. Miranda enriqueceu com a ajuda do dote da mulher Estela, com quem tinha a filha Zulmira. Estela traia Miranda, mas ele o aceitava por causa do dinheiro e das convenções sociais. Inicialmente, desenvolveu-se uma grande rivalidade entre Romão e Miranda.
Outro personagem importante é o português Jerônimo. Cavouqueiro de profissão, graças às suas qualidades, tornou-se mestre de obras da pedreira de Romão. Instalou-se no Cortiço com a esposa, Piedade de Jesus. O casal mantinha a filha em uma escola de freiras. Era um casal modelo. Ambos viviam para trabalhar, não se envolvendo em festas e bebedeiras.
Mas seguindo a lógica naturalista do determinismo do meio, tudo mudou quando Jerônimo viu a mulata Rita Baiana. Rita era uma lavadeira festeira e sensual, amante do capoeira Firmo. Jerônimo viu Rita dançar em um dos pagodes que ocorriam no cortiço no domingo. Se apaixonou pela mulata e, a partir daí, passou a descuidar do trabalho, rejeitar a mulher, beber. Trocou os hábitos “da terra”, o vinho, o chá, o caldo, pelos tropicais, a cerveja, o café, a comida temperada. Rita passou a simbolizar, para ele, o Brasil, a terra nova: “Naquela mulata estava o grande mistério, as sínteses das impressões que ele recebeu chegando aqui; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era o veneno e o açúcar gostoso”. Envolveu-se em uma briga com Firmo e acabou, com a ajuda de dois amigos, matando o mulato e jogando seu corpo no mar.
Havia também no cortiço a jovem Pombinha. Pombinha era filha de dona Isabel, uma senhora distinta que, por problemas financeiros, teve que ir residir no cortiço. Pombinha era noiva, mas aguardava a vinda das regras para casar.
Com o tempo, Miranda e Romão se aproximaram. Miranda tornou-se barão e Romão, invejando o baronato e a vida de luxos do vizinho, mudou de comportamento: começou a usar terno, beber bons vinhos, frequentar a Rua do Ouvidor. Através do agregado Botelho, articulou o casamento com Zulmira, filha única de Miranda. A fortuna de Romão fazia os Miranda esquecerem os modos grosseiros e a origem humilde do vizinho.
Jerônimo mudou-se com Rita para outro local, abandonando Piedade. A portuguesa começou a beber, perder as freguesas de roupa, deixando até que homens do cortiço abusassem dela quando estava alcoolizada. O português deixou de pagar a escola da filha, que foi expulsa e passou morar no cortiço. Uma futura meretriz que estava se formando.
Pombinha, após “tornar-se moça” (cena que merece ser lida), casou-se com o noivo, mas o enlace não durou. Pombinha traiu o marido e foi morar coma prostituta Léonie, tornando-se também prostituta: “Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perfeita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida.”
João Romão, finalmente, acertou o casamento com Zulmira. Todavia, tinha que livrar-se de Bertoleza. Ele havia, quando se juntou à escrava, falsificado a compra de sua alforria. Agora, chamou a polícia para levar a escrava fugida. Bertoleza, consciente que após uma vida de trabalhos retornaria à escravidão, suicidou-se com um facão. Nesse momento, chegou uma comissão de abolicionistas para trazer a Romão um diploma de sócio benemérito.
Há muitos outros personagens, mas a ênfase é o meio e a forma com as pessoas a ele se adaptam. As descrições são muito ricas, como essa do amanhecer no cortiço: “Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já perder as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casaco. Os homens, esses não se preocupavam em em não molhar o pêlo, ao contrário, metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas das mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas”. Aluísio de Azevedo tem grande talento para construir esses painéis.
O Cortiço é também uma obra rica para os historiadores. Ele acusa o aparecimento dos trabalhadores urbanos no final do século XIX no Brasil. O capital, até então empregado no tráfico de escravos, passou a ser investido em outras atividades. Daí o surgimento no Rio de Janeiro de indústrias, casas comerciais, bancos, empresas de transporte, serviços de luz e gás. E o pessoal que se empregava nessas funções era justamente os moradores desse tipo de habitação, barata e não muito distante dos locais de trabalho. Ao longo do enredo, inclusive, ocorre uma mudança. No início, moram no cortiço lavadeiras, pedreiros, soldados rasos. No final, esse público foi substituído por professores, servidores públicos, estudantes.
Sem querer propor nenhuma tese feminista extemporânea, é interessante o tratamento que Azevedo dá às mulheres. Aparecem na obra mulheres nada passivas, mulheres que escolhem, que impoẽm aos homens a sua vontade. Estela, mulher de Miranda, traia o marido. Esse não só não a deixou, mas também tornou-se sexualmente dependente dela. Rita não obedecia Firmo, nem Jerônimo. Ela ficava com eles enquanto lhe convinha. Leocádia, uma das lavadeiras do cortiço, foi apanhada por Bruno, seu marido, o traindo com o estudante Henrique. Depois de mandá-la embora, Bruno a chamou de volta, quase implorando por seu retorno ao lar. Pombinha não aceitou casar com um funcionário e ter uma vida sem luxos ou prazeres. Identificava seu noivo, e todos os homens, como fracos, dominados pelas mulheres, escravos do desejo sexual. É um traço interessante em uma obra publicada em 1890.
Um coisa estranha e, em minha opinião, desnecessária: a versão de O Cortiço que ouvi, da Universidade Falada, possui, após palavras difíceis, pouco usadas, uma “tradução”. Além de quebrar o andamento da narrativa, retira do leitor/ouvinte a obrigação e curiosidade de buscar o dicionário.

terça-feira, 17 de maio de 2011

A Mulher de Trinta Anos (1844)

Personagens: Júlia d´Aiglemont, Vítor, pai de Júlia, Arthur, Carlos de Vandenesse, Helena, Carlos, Abel, Gustavo, Moina.

A história se passa entre 1813 e 1844.

É lamentável que A Mulher de Trinta Anos seja o livro mais famoso de Balzac. Quem nunca leu Balzac e começar por esse livro não compreenderá a fama do seu autor.
Júlia d'Aiglemont casou-se com Vítor. Logo, porém, percebeu ter cometido um erro. Apaixonou-se, então, por Artur, mas ele morreu antes que a paixão dos dois se concretizasse. Após, Júlia tornou-se amante de Carlos de Vandenesse. Helena, filha de Júlia e Vítor, descobriu o segredo da mãe. Um sucessão de reveses levou a morte três filhos de Júlia (e de Carlos): o pequeno Carlos morreu em um acidente; Gustavo, de cólera; e Abel, na guerra. Helena, revoltada com a mãe, fugiu com “o Parisiense”, assassino e corsário. Depois de alguns anos reencontrou o pai, Vítor. Estava feliz e com quatro filhos. Após um naufrágio, perdeu o marido e três filhos. Depois, doente, reencontrou Júlia e terminou morrendo com a criança que restou. No final, Júlia lamentava a sorte de Moina, sua filha que restou: embora casada com um homem de boa situação, tornou-se amante do filho de Vandenesse. Amargurada, Júlia faleceu.
O resumo já demostra a confusão que é o romance. Episódios melodramáticos, mortes, acidentes, naufrágios. Paulo Rónai explica na introdução: A Mulher de Trinta Anos é a justaposição de seis contos diversos. Eles chegaram a ser publicados separadamente em épocas diferentes e depois fundidos na mesma história. Ocorre que a fusão resultou em uma “colcha de retalhos” na qual os personagens mudam de personalidade - Vítor ora parece frívolo e desagradável, ora, um bom pai e marido - a até o narrador, onisciente na maior parte do relato, aparece como testemunha de um episódio (a morte do pequeno Carlos em um acidente). O episódio da fuga de Helena com um corsário é bizarro para dizer o menos. A moça, criada na alta sociedade francesa, foge de forma inexplicável com um homem que viu uma única vez e vai viver no meio de piratas! Aqui há uma lembrança de Balzac antes da Comédia Humana: ele publicou diversos romances de qualidade duvidosa, inspirados na subliteratura inglesa da época.
Enfim, talvez A Mulher de Trinta Anos tenha servido para chamar a atenção do público para as mulheres maduras (embora outros romances, como A Mensagem, também o tenham feito). Reproduzo aqui uma citação de Gabriel Hanotaux e Georges Vicaire, que escreveram sobre o romance de Balzac com a senhora de Berny, bem mais velha do que ele: “Balzac prestou às mulheres um serviço imenso, que elas nunca lhe poderão agradecer suficientemente, pois duplicou para elas a idade do amor. Antes dele, todas as namoradas de romance tinham vinte anos. Ele prolongou até os trinta, até os quarenta anos sua vida ativa, pleiteando em seu favor, a causa da natureza, da verdade. Curou o amor do preconceito da mocidade... Multiplicou senão a alegria humana, pelo menos a consciência desta alegria”.

domingo, 15 de maio de 2011

O Caminho para a liberdade


O Caminho para a liberdade. Arthur Schnitzler. Editora Record. 2011. tradução: Marcelo Backes.

Lido entre 15 de 29 de abril de 2011.

A melhor definição para O caminho para a liberdade de Arthur Schnitzler foi dada pelo tradutor Marcelo Backes: um antirromance de formação.
O protagonista, barão Georg von Wergenthin perdeu a mãe aos 18 anos e o pai, recentemente, aos trinta e poucos. Vive em Viena com seu irmão Felician. É compositor de música erudita e pretende tornar-se regente de orquestra. Recém terminou um romance com uma moça que é apenas citada . Frequenta diversas casas: a dos Ehrenberg, onde flerta com Else e Sissy e a dos Rosner, onde paquera Anna. Também frequenta os irmãos Leo e Therese Golowski: ele, sionista; ela, ativista política. Também mostra interesse por Therese. Georg torna-se amigo do escritor Henrich Bermann. O pai de Heinrich fora um político judeu importante, mas se encontrava em um sanatório com problemas mentais.
A história se passa entre o fim de setembro de 1898 e fim de outubro de 1899. Os únicos não judeus citados são o protagonista, os Rosner e Sissy.
Georg torna-se então amante de Anna. Ela engravida. Eles viajam um tempo juntos. Depois ele a instala em uma casa nos arredores de Viena, onde ela fica aos cuidados da senhora Golowski. Ele continua sua vida despreocupada na cidade, enquanto a criança cresce na barriga de Anna. Ele a visita diariamente, mas só se instala na casa pouco antes do bebê nascer. Depois de um parto longo e difícil, o menino nasce morto.
Georg recebe então uma proposta para ser regente em uma orquestra em uma pequena cidade na Alemanha. Incentivado por Anna, ele vai. Quando retorna para uma visita, o relacionamento termina, ou termina de terminar.
Eis um antirromance de formação. Num romance de formação, o protagonista começa em lugar e termina em outro. Penso em dois, um clássico, Os Anos de Aprendizagem de William Meister, e em uma contemporâneo, Invisible, de Paul Auster. O herói de Schnitzler não vai a lugar algum. Ele circula entre casas, restaurantes, teatros. Tem ideias para composições que nunca se concretizam. Torna-se amante de Anna, não por amor, afinidade ou atração, mas por que ela deu a ele oportunidade. Poderia ter sido Else, Sissy ou Therese. Encara a gravidez da moça com leviandade: todos esperam, Anna mais do que todos, a proposta de casamento e Georg, quando pensa no assunto, deixa a decisão para depois. A morte de filho - é digna de nota a beleza da cena em que Goorg vê o bebê morto - não mudou Georg em nada. Ele recebeu a decisão de Anna de deixá-lo com alívio, der Weg ins Frei.
Georg é um doutor Gräsler - o médico das termas - mais jovem.
A questão do judaísmo no Império Austro-Húngaro permeia toda a narrativa. Schnizler era amigo de Theodor Herzl, fundador do sionismo moderno que em 1897, num congresso em Basileia, na Suiça, postulou a criação de um Estado judeu na Palestina. Em um trecho há uma grande discussão entre Leo Golowski e Bermann, no qual o primeiro defende a migração para a Palestina e o segundo, a assimilação. Há uma passagem premonitória quando Leo exclama “Hum, mas e quando as fogueiras medievais voltarem a ser acesas?”. Ao que Heinrich responde: “Nesse caso, e me comprometo solenemente a isso, vou seguir exatamente o que o senhor indicar”. E Georg completa: “Oh, mas esses tempos jamais voltarão”.
O contexto político, com os alemães-nacionalistas e sociais-democratas também aparece no livro, embora de forma mais sutil.
Convém lembrar ainda as recorrências de Schnitzler. A loucura, representada pelo pai de Bermann, as narrativas dos sonhos, o personagem médico, as ruas de Viena. Os nomes Therese, Sissy, Else. Há também utilização de episódios auto-biográficos. O principal é a perda do filho. Em 1887, Schnizler teve um relacionamento com a cantora Marie Reinhard. Ela engravidou e a criança nasceu morta nos arredores de Viena.
Finalmente, para quem se interessa em construção da narrativa, Arthur Schnitzler é um narrador primoroso. Narra com aquela naturalidade que nos faz esquecer que estamos diante de ficção. E é ótimo na construção de diálogos.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Gobseck (1830)

Personagens: Viscondessa de Grandlieu, Camila, senhor de Restaud, Derville, João Ester van Gobseck, Fanny Malvaut, senhora de Restaud, Máximo de Trailles.

A história se passa entre 1829 e 1830.

Gobseck apresenta ao publico mais um grande personagem de Balzac e confirma o talento do escritor para criar personagens torpes e de moral duvidosa. A história da traição de Anastácia de Restaud é eclipsada por um personagem fascinante: o avarento Gobseck. Como afirma Paulo Rónai, Balzac cria um avarento que não é um tipo esquematizado, é uma personagem rica e cheia de individualidade.
O advogado Derville, ao ver que Camila estava interessada em Ernesto de Restaud, contou uma história a ela e sua mãe por ele presenciada. Anastácia de Restaud, mãe de Ernesto, pediu dinheiro e empenhou jóias ao agiota Gobseck para pagar dívidas de um amante, Máximo de Trailles. Seu marido descobriu, pagou a dívida para preservar seu nome, mas fez um acordo com o avarento: passou todos os seus bens para o nome de Gobseck que, quando chegasse a hora, os passaria para Ernesto.
A história de Anastácia está relacionada a outra história da Comédia Humana: Anastácia é uma das desalmadas filhas do Pai Goriot. Seu fim infeliz, provavelmente, deve-se mais à crueldade com que tratou o pai do que ao adultério.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Diário da Queda


Lido entre 26 de março e 15 de abril de 2011.

Michel Laub é um dos melhores escritores brasileiros produzindo no momento. Não tenho medo de afirmar isso, apesar de ser Laub ainda muito jovem. Em Longe da água e no belíssimo Segundo Tempo, ele nos mostrou do que é capaz. Agora volta no mesmo estilo confessional e direto com Diário da Queda.
O narrador é um jovem escritor, que estudou Direito e depois jornalismo, “de quase quarenta anos” que deixou Porto Alegre e se estabeleceu em São Paulo e é de origem judaica. Laub sempre trabalha com traços auto-biográficos, mas nunca houve tantas coincidências como em Diário da Queda.
O narrador, alcoolista e no terceiro casamento, conta de forma alternada fatos de sua vida, da vida de seu avô, e da de seu pai. O avô foi o único sobrevivente de uma família do campo de concentração de Auschwitz. Migrou para o Brasil, mais precisamente para Porto Alegre. Casou-se com uma jovem de família alemã que rompeu com os pais e se converteu ao judaísmo. Montou uma loja de máquinas de costura. Teve um filho, o pai do narrador. Morreu quando o menino tinha quatorze anos.
O pai começou a trabalhar logo após a morte do avô e transformou a loja de máquinas de costura em um “império em miniatura”. Aos dezenove anos, conheceu a mãe do narrador em um baile num clube judaico e casou-se depois de um tempo. Ao contrário do avô, que nunca mencionava questões judaicas, o pai era extremamente preocupado, via perseguição e antissemitismo em toda a parte.
Para o narrador, tudo começou com um acidente ocorrido em uma festa quando ele tinha treze anos. Ele estudava em um colégio judaico, que quem mora em Porto Alegre bem pode imaginar qual é, e havia feito seu Bar Mitzvah. Um colega, não judeu, gói, bolsista, filho de um cobrador de ônibus que já havia sido visto vendendo algodão-doce, resolveu comemorar os seus treze anos com uma festa, já que os colegas faziam festas depois do Bar Mitzvah (em hotéis de luxo). A festa de João - o único personagem do livro que tem nome - foi no salão de festa de um prédio sem elevador nem porteiro. Os meninos faziam uma brincadeira que consistia em jogar o anversariante para cima treze vezes, o segurando na queda, como numa rede de bombeiros. Na décima terceira vez em que João caiu, a rede se abriu e ele caiu de costas no chão. A festa terminou de forma melancólica. João fraturou uma vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico e fazer fisioterapia por longo tempo.
A partir desse momento, o narrador se aproximou de João, ajudando-o a recuperar as aulas perdidas e o levando para estudar em sua confortável casa. Com a descoberta por parte da coordenação da escola de que o incidente na festa não fora um acidente, a permanência do narrador no colégio ficou insustentável. Ele, então, resolveu acompanhar João na troca para uma escola não judaica.
Seu pai se opôs de forma veemente, afirmando que em uma escola em que ele fosse o único judeu seria naturalmente apontado, “eles sempre esfregarão isso na sua cara”. Houve uma grande briga. O narrador falou ao pai que não estava nem aí para o judaísmo e para o que ocorrera com o seu avô. O pai se descontrolou e, pela primeira vez, bateu nele. Ele revidou. No dia seguinte, o pai contou tudo sobre o avô e a paz se fez. O pai concordou com a mudança de escola e o narrador deixou de ser leviano em relação ao judaísmo.
Finalmente, o narrador recebe a notícia de que o pai está com Alzheimer e partir disso faz um inventário sobre a sua vida: os três casamentos e o alcoolismo.
Ora, quem leu o livro sabe que a história não é essa que eu contei. Que ela é contada em camadas, que voltamos várias vezes a cada cena e a cada vez descobrimos mais coisas. É estilo de Laub, conhecido de Longe da água e no Segundo Tempo.
Laub explora a questão do judaísmo em dois níveis. No primeiro, a herança judaica para o avô, para o pai e para o narrador. Para avô, a destruição física da família, a migração para o desconhecido e negação da realidade expressa nos diários que ele escrevia meticulosamente e nos quais o filho, depois de mandá-los traduzir após a sua morte, descobriu não haver nenhuma palavra sobre o nazismo, Auschwitz, chegada ao Brasil, sua mãe ou ele mesmo. Era um narrativa “da vida como deveria ser”. Para o pai, o medo, a insegurança, o mergulho no trabalho. Para o narrador, o preconceito de sinais trocados na escola judaica e a vingança de João na nova escola.
Mas em outro nível, o judaísmo e Auschwitz ficam em segundo plano. É um trauma que atravessa as gerações de uma família. Algumas famílias têm feridas que atravessam os anos. Pode ser um campo de concentração, um assassinato, um suicídio, um abandono, uma doença, uma adoção. O alcoolismo do narrador é uma consequência de Auschwitz, do suicídio do avô, do silêncio do pai, da queda de João, dos desenhos de Adolf Hitler que apareciam na sua mochila. A notícia do Alzheimer do pai (bem como simbolismo, já que essa é uma doença que produz o esquecimento) é a senha para que o narrador rompa com o ciclo da dor. Ele, que está prestes a perder a mulher amada, deixa de beber e descobre que será pai. E o diário se revela um diário para o filho que irá nascer (mas que é ao mesmo tempo o diário da queda de João, os diários fantasiosos do avô, o diário que o pai passa a escrever quando sabe que logo irá tudo esquecer).
Laub cita várias vezes o, em minha opinião, melhor dos memorialistas do Holocausto, o italiano Primo Levi. Levi escreveu tudo o que devia ser escrito sobre Auschwitz e depois de eu já ter lido centenas de livros, visto centenas de filmes e documentários sobre o assunto, é da narrativa dele que sempre lembro. Levi não é citado por acaso. Ele saiu de Auschwitz aos 42 anos. Escreveu vários livros, teve filhos e ficou famoso. Em 1987, aos 68 anos morreu ao cair de uma escada. Tudo indica que não foi um acidente. O suicídio do avô do protagonista foi inconteste. Mas, ao contrário de Levi, ele nunca mencionou ou escreveu nada sobre o tema. Isso me lembra uma passagem de um dos livros de Levi. Ele dizia que depois de ter retornado a Turim, estando em sua casa, em segurança, ele sonhava que estava contando a experiência dele no campo de concentração e que ninguém acreditava. Falar ou calar parece ter sido indiferente.
Laub fala da inviabilidade da experiência humana expressa em Auschwitz, no suicídio do avô, no vício no álcool, nas brigas com a mulher, na queda de João, e de como ter um filho é deixar para trás essa inviabilidade. Escrever um livro, com toda a dor que isso envolve, também é.