sexta-feira, 29 de maio de 2020

Facino Cane

Facino Cane (março de 1836)

Volume IX: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Parisiense

Personagens: narrador (estudante, Balzac?), Facino Cane (Marco Facino Cane, Príncipe de Varese)

Em  17 de março de 1836, a revista Chronique de Paris publicou o conto, que, de acordo com a narrativa de Balzac à Eveline Hanska, ele escreveu em uma noite. Que noite para a história da literatura! Facino Cane traz, em onze folhas, o melhor de Balzac. É quase uma síntese de sua obra.
É a história de um jovem, que pode ser o escritor, que vive modestamente e cujo o passatempo é observar a vida dos outros, especialmente dos membros das classes populares de Paris.
"Deixar seus hábitos, tornar-se um outro pela embriaguez das faculdades morais e fazer esse brinquedo à vontade, tal era o meu divertimento. A que devo eu esse dom? Será o da vidência? Será uma dessas qualidades cujo abuso pode levar à loucura? Nunca pesquisei as causas desse poder; possuo-o, e dele me sirvo, eis tudo".
Em uma ocasião, ele aceita o convite da sua criada para comparecer ao casamento de uma de suas irmãs, festa popular na casa de um negociante de vinhos. Lá chamou a sua atenção, um componente de uma orquestra com três cegos do asilo Quinze-Vingts (criado por São Luís em 1260, seu nome refere-se aos 300 leitos, 15 X 20, no sistema vigesimal. Em 1779, foi transferido para a rue de Charenton, onde ocorre a festa relatada pelo narrador, e onde se localiza até hoje).
"(...) quando me aproximei, não sei por quê, todo o resto acabou para mim, o casamento e sua música desapareceram, minha curiosidade se viu excitada ao mais alto grau: minha alma penetrou no corpo do tocador de clarinete."
O narrador comparou-o a Dante, adivinhando sua nacionalidade:
"(...) era um italiano. Havia algo de grande e despótico nesse velho Homero, que guardava em si mesmo uma odisseia condenada ao olvido". Não resistindo ao interesse, foi conversar com o velho. Descobriu que ele tinha 82 anos, era veneziano e seu nome era Marco Facino Cane, Príncipe de Varese. Era descendente de um condottiere homônimo, figura histórica, que viveu entre 1360 e 1412. O jovem foi convidado pelo ancião a acompanhá-lo. Ao saírem da festa, a proposta:
"Quer levar-me a Veneza, guiar-me, ter fé em mim? Ficará mais rico do que as dez mais ricas casas de Amsterdam ou de Londres, mais rico que os Rotschild, enfim, rico como As Mil e Uma Noites".
A história narrada pelo clarinetista era das mais fantasiosas e improváveis. Era rico e poderoso em sua juventude,  e apaixonou-se perdidamente, "como não se ama mais", por uma mulher casada. Por isso, envolveu-se em uma disputa e foi preso. Planejou uma fuga e, através dos muros da prisão, encontrou o tesouro da república de Veneza, milhões em ouro, prata e pedras preciosas. Conseguiu levar uma pequena parte e emplacou mais um capítulo de aventuras. Morou em várias cidades da Europa e acabou perdendo sua fortuna para outra mulher, de família poderosa, com quem pretendia se casar. Perdeu a visão, em função talvez dos anos no cárcere. Terminou pobre e cego no asilo de Quinze-Vignts. Mas, lembrava exatamente como chegar ao local do tesouro. E convidava nosso narrador a levá-lo a Veneza para dele se apoderarem e enriquecerem. O jovem, tocado pela história e pela emoção da narrativa, concordou. "Iremos a Veneza. (...). Assim que tivermos algum dinheiro". O conto termina com a notícia da morte de Facino Cane no inverno seguinte em Quinze-Vignts.
O texto permite uma série de reflexões, especialmente para quem já leu outros textos de Balzac. Vou me fixar em duas questões: quem é o narrador e as duas narrativas em uma em Facino Cane.
Paulo Rónai, no texto de introdução ao conto, afirma que, em Facino Cane, "o eu é verdadeiro e refere-se ao próprio escritor". Balzac, de fato, morou na rue Lesdiguières, como o narrador, quando, aos vinte anos, fez uma espécie de "estágio probatório" para a vida de escritor a pedido da família. Também Balzac teve uma criada, a mãe Vaillant, nessa época, que aparece na história. Foi ela que convidou o narrador para o casamento. Mas principalmente, é o talento de observador dos homens, de historiador de costumes, que o narrador descreve nas primeiras páginas, quando diz que penetrava na existência das pessoas como um dervixe de As Mil e Uma Noites.
Não creio, porém, que o narrador seja, de fato, Balzac. No início do conto, ele diz que "o amor da ciência atirara-me numa mansarda onde eu trabalhava durante a noite, e passava o dia numa biblioteca vizinha, a de Monsieur". É, portanto, um estudante de ciências, não um escritor. Não creio que isso tenha grande importância, mas é a primeira vez que não concordo com Paulo Rónai, conhecedor enciclopédico da Comédia Humana.
Há claramente duas narrativas em Facino Cane: a do narrador e a de Facino Cane. O narrador, sendo ou não Balzac, é nosso conhecido historiador dos costumes que acompanha a vida comezinha do casal de proletários, que sai do teatro, em sua batalha diária pela sobrevivência. O ancião cego chama a sua atenção justamente por ser diferente dos indivíduos populares que o cercavam. Balzac o compara a Dante e Homero. E sua [de Facino Cane] fantástica e inverossímil narrativa é totalmente destoante do que faz Balzac de melhor na Comédia Humana, construir personagens nada extraordinários e captar a vida real. Facino Cane é extraordinário e sua vida não se parece nada real. Talvez seja louco, como insinuam seus colegas de orquestra, quando o chamam de pai Canard, ou um mentiroso.
Embora Balzac julgasse ter um estilo eclético, é considerado um autor realista. Elementos românticos e fantásticos aparecem em sua obra, veja-se Ferragus, A menina dos olhos de ouro, e o personagem Vautrin, por exemplo. Mas o que temos em Facino Cane é um duelo de narrativas, uma balzaquiana ou realista, outra fantástica, romântica. E o autor deixa o leitor curioso para saber qual das duas irá predominar. Quando o trecho final nos revela a morte do velho, é impossível não ter uma sensação de perda. Somos jogados de volta à realidade. Ao frustrar a nossa expectativa, Balzac nos faz antes sentir do que entender por que a literatura é importante. A janela que se abre quando começamos a ler uma história é abruptamente fechada aqui. É o final esperado para o leitor de Balzac. Uma absurda caça ao tesouro faria de Facino Cane uma obra menor. Sua possibilidade, contudo, confirma nossa necessidade de ficção.
Sobre Balzac e caça ao tesouro falarei em outro post.

A imagem é uma ilustração de 1911 que mostra o condottiere Facino Cane, em 1409, convencendo os nobres genoveses a resistirem à dominação francesa durante as guerras italianas.  Esse ilustração é da coleção de figurinhas adesivas da marca Liebig, que produzia extrato de carne. Eram temáticas, colecionáveis e foram produzidas em vários países entre 1872 e 1975.