domingo, 15 de maio de 2022

Um caso tenebroso

Um caso tenebroso (janeiro de 1841)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar

Personagens: Michu, Marta Michu, mãe de Marta, Francisco Michu, Gaucher (criado de Michu), Mariana (criada de Michu), Marion, Malin (conselheiro de Estado, Conde de Gondreville), Grévin (tabelião em Arcis), Corentin, Peyrade, Violette (granjeiro), Lourença de Cinq-Cygne, Paulo Maria e Maria Paulo Simeuse, sr. e sra. d´Hauteserre, Catarina, Gontardo, padre Goujet, srta. Goujet, Durieu (cozinheiro), Goulard (maire), Roberto d´Hauteserre, Adriano d´Hauteserre (Marquês de Cinq-Cygne), José Fouché, Marquês de Chargeboeuf, Beauvisage (granjeiro de Bellache), juiz Lechesneau, Pigoult  (juiz de paz), Bordin (procurador), sr. de Grandville (advogado), príncipe Talleyrand, Marcehal Duroc, Napoleão Bonaparte, Berta de Cinq-Cygne, Paulo de Cinq-Cygne, Princesa de Cadigan, Marquesa d´Espard, De Marsay, De Rastignac, Jorge de Maufrigneuse.

A história se passa entre 1803 e 1833. 

No Castelo de Cinq-Cygne

Neste romance, que Paulo Rónai acertadamente caracteriza como magnífico e opulento, temos uma amostra do que Balzac teria feito se tivesse vivido mais. Um caso tenebroso é uma história que se passa no período do Consulado (10 de novembro de 1799 a 18 de maio de 1804). Não por acaso, ele está, na Comédia Humana, após Um episódio do Terror ambientado na época da Revolução. Balzac nos deixou títulos não escritos como Os soldados da República, Os Franceses no Egito e Moscou. Sofrimento para o leitor balzaquiano não poder ler essas histórias!

Um caso tenebroso compõe a pré-história da Restauração e da Monarquia de Julho. Segundo Rónai, a história interessava a Balzac como repositório dos germes da época em que ele vivia. Lá ele buscava explicações para o que via e o que retratava.

Em setembro de 1800, o senador Dominique Clément de Ris foi raptado em seu castelo em Beauvais por um bando de ladrões. Dezenove dias depois foi libertado sem ter sofrido nenhum dano. José Fouché, Talleyrand e Clément de Ris haviam tramado um golpe contra Bonaparte, caso ele não fosse bem-sucedido na Itália. Com a vitória de Marengo, Fouché mandou seus homens resgatarem documentos comprometedores no castelo de Beauvais, que, por cautela, raptaram o senador. Porém, Napoleão ordenou a investigação e a punição dos culpados. Fouché fez com que um grupo de jovens realistas, desafetos seus, fossem acusados e executados. Balzac conhecia bem a história, pois o senador fora protetor de seu pai, Bernard-François Balssa.

No romance o senador Clément de Ris é Malin. Os acusados são os gêmeos Simeuse, os irmãos Roberto e Adriano d´Hautserre, e o empregado Michu. Eles, de fato, haviam conspirado contra Napoleão, mas, com o perdão do Cônsul, retornaram à França e, juntamente com o sr. e a sra, d´Hautserre e Lourença de Cinq-Cygne, torciam contra o futuro imperador, mas sem agir. A trama, que contou com a participação dos nossos conhecidos Corentin e Peyrade foi muito bem executada, de modo que os acusados, mesmo com a excelente defesa do advogado Grandville, foram condenados. Os nobres tiveram a pena convertida em ingresso no serviço militar e Michu foi condenado à guilhotina. Paulo Maria, noivo de Lourença, Maria Paulo e Roberto D´Hautserre morreram nas guerras napoleônicas. Uma melancólica Lourença casou com Adriano e teve dois filhos, Paulo e Berta. 

Lourença e Napoleão

Fazia algum tempo que não lia Balzac com tanta ansiedade, sem conseguir parar! Muito interessante os matizes que o autor apresenta dentro do espectro político pós-revolucionário. Temos realistas que se disfarçaram de jacobinos para sobreviver e prosperar, radicais que se acomodaram, realistas que aguardavam a volta do Antigo Regime, conspiradores, conformados, indiferentes - os nossos isentões - enfim - e em um quadro móvel. Com respeito ao Império, vários matizes de atitudes, especialmente da nobreza, da luta armada até a colaboração. Dá para entender por que Balzac recuou no tempo para melhor entender a Restauração.  

Temos uma amostra da justiça durante o Consulado, um sistema inquisitorial no qual "o diretor do júri era, ao mesmo atempo agente da polícia judiciária, procurador do Rei, juiz de instrução e corte real" (BALZAC, 1991, p. 155). Balzac critica o júri com o mesmo argumento que já vi membros do Ministério Público utilizarem: "Por isso, é bem possível que os juízes ofereçam aos acusados mais garantias que os jurados. O magistrado não se fia senão nas leis da razão, ao passo que o jurado se deixa impelir pelas vagas do sentimento" (BALZAC, 1991, p. 155). "A inocência nada mais tem por si do que o raciocínio; e o raciocínio que pode impressionar os juízes é muitas vezes impotente sobre o espírito prevenido dos jurados" (BALZAC, 1991 ,p. 172). 

Então, o próprio Napoleão Bonaparte entra na Comédia Humana. É uma cena curta, mas magnífica. Em 13 de outubro de 1806, no vale do rio Saale, em Jena na Prússia, Lourença consegue alcançar o Imperador para pedir clemência, na véspera de uma das maiores vitórias do Imperador. Lembremos que Balzac dizia que queria "conseguir com a pena o que ele [Napoleão] realizou com a espada", admiração que não impede que nosso autor o retrate de forma complexa. 
Mas "uma vez conhecido o julgamento, acontecimentos políticos da mais alta importância abafaram a lembrança desse processo em que não mais se falou. A sociedade é como o oceano, após um desastre retoma o seu nível e seu ritmo e apaga os vestígios pelo movimento de seus devoradores interesses" (BALZAC, 1991, p. 195). 

É no capítulo final, contudo, que Balzac se revela genial. Aqui, escrevendo ficção, ele nos dá uma lição do que é fazer história. História é uma versão do passado baseada em testemunhos que podem ser escritos, orais ou materiais. O passado não existe por si e é impossível apreendê-lo, pois os testemunhos, por mais numerosos que sejam (veja-se tudo que as redes sociais deixarão para os historiadores do futuro), são limitados. Em 1833, no salão da Princesa de Cadigan, De Marsay ao ver a Marquesa de Cinq-Cygne, Lourença, deixar o salão com a chegada do Conde de Gondreville, Malin, que também se retira, desvenda o mistério, revelando a conspiração de Fouché, Talleyrand e Malin. A narração, todavia, não é exata, "mesmo depois de todas as explicações, permanecem uns cantos obscuros, recurso engenhoso do romancista para fazer sentir a inextricabilidade da história, cujos acontecimentos nunca podem ser integralmente esclarecidos" (RÓNAI, 1991, p. 38). 
É um final que produz um efeito de real assombroso, com um recurso bem diferente do descrito por Roland Barthes. Leiam, por favor!

Fontes da imagens: 

Pierre Vidal — Honoré de Balzac, A Dark Affair. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. 

BALZAC, Honoré. A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 
RÒNAI, Paulo. Introdução - um caso tenebroso. In: A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 

domingo, 1 de maio de 2022

(Re)lendo Proust

 (Re)lendo Proust

Li "Em busca do Tempo Perdido" em 1993, aos vinte e dois anos. Texto famoso como difícil e que muitos leitores experimentados não conseguem enfrentar, não foi complicado para mim. Não por eu ser especial, nem nada. Sou leitora desde que aprendi a ler. Mas com vinte e dois anos ainda me faltava muita coisa. Sem falar que "Em Busca" traz milhares de referências culturais - música, pintura, arquitetura, filosofia,  literatura  - e em 1993 não existia Internet. Se  eu encontrava o nome de um artista desconhecido, teria de ir à biblioteca da faculdade pesquisar. Logo, perdi a maior parte das referências, que são fundamentais para o texto. 

Creio que a leitura dos sete volumes começou em março e que tenha durado uns sete meses. Rápido demais, penso agora. Mas não li sozinha. Foi a minha primeira e única experiência de leitura conjunta. 

Não lembro como começou, mas eu e o Adriano fazíamos listas dos livros que queríamos ler. Ele era quatro anos mais velho que eu. Pouca coisa, mas em leitura é muito. Foi ele que me falou pela primeira vez de Balzac. Além de ter lido mais, ele tinha livros. Ele era servidor público e tinha dinheiro para os comprar. Imagino que um dia tenhamos decidido ler "Em busca" ao mesmo tempo. Ele comprou, eu peguei meu exemplar na biblioteca do IFCH da UFRGS. E começamos. 

Embora ainda fôssemos colegas na faculdade, não nos víamos todos os dias. Ele trabalhava, tinha namorada, eu era bolsista de pesquisa, fazia mil outras coisas, tinha namorado. Cada um lia em sua casa, na biblioteca. Às vezes líamos juntos, cada qual seu livro, no apartamento dele. Em um mundo sem celular e WhatsApp, usávamos o que havia para coordenar nossa leitura. Eu telefonava para o trabalho dele, ele não tinha telefone em casa. Ele me ligava do orelhão. Às vezes, íamos na casa um do outro e deixávamos um bilhete embaixo da porta. Então nos informávamos sobre até que parte o outro tinha lido. Dependendo, um segurava um pouco a leitura para esperar o outro. 

Estávamos apaixonados pelo livro e por Proust.  Os personagens, os lugares, os trechos nos ocupavam o tempo inteiro. Queríamos saber mais. Sem Internet, livrarias on line e Amazon, pegávamos o que havia na biblioteca. Compramos, em conjunto, a um preço altíssimo para nós, a biografia "Marcel Proust" de George Painter. Lá estão nossos dois nomes a lápis com a data de 10 de julho de 1993. Dessa vez teríamos de dividir a biografia, cada um lendo de uma vez. Houve a exibição de um filme no Centro Municipal de Cultura, baseado no "Em busca", seguido de uma palestra com o Tatata Pimentel, professor de literatura francesa e especialista no tema. Cheguei mais cedo. O filme já havia começado, quando o Adriano chegou. Ele sentou ao meu lado, me deu um beijo no rosto, não era preciso falar nada. Ao final da palestra, fomos falar com o Tatata, creio que foi ele que nos recomendou a biografia do George Painter. "Vocês dois não são jovens demais para ler Proust?", o professor nos perguntou com seu jeito divertido. 

Terminamos o livro. Eu li a biografia, ele leria depois. Havia planos, um tanto grandiosos para a época, de ir à França conhecer os lugares proustianos. Não era nosso único plano de viagem. Havia uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa. O Adriano era apaixonado pela cultura norte-americana - ele que me apresentou a Philip Roth, Raymond Caver, Tom Wolfe, Truman Capote - e dizia que essa viagem descolonizaria a europeia que havia em mim. Como seria isso? Não sabíamos. Tínhamos namorados. O meu, creio que não se importaria que eu viajasse com um homem, mas a dele não iria querer, com certeza. Mas tínhamos todo o tempo do mundo. 

O Adriano morreu no dia 31 de janeiro de 1994. Eu, com meu apego a lembranças e coisas materiais, quis ficar com os exemplares dele da "Busca", mas não consegui. Sei que foram doados para a biblioteca de uma casa do estudante onde ele morou. 

Guardei tudo o que tinha dele, cartões, bilhetes, listas de livros, cartões postais, caderninhos que ele me deu de aniversário, canetas,  em uma caixa, que levei muitos anos para conseguir abrir. Mas a verdadeira caixa, ainda não havia aberto. Tenho todos os exemplares da "Busca", que comprei há algum tempo. Comecei a ler duas vezes nos últimos cinco anos. Mas desistia nas primeiras páginas. 

Ontem, arrumando uns livros, peguei "À sombra das raparigas em flor" e o abri ao acaso. "A imagem de nossa amada, ainda que a julguemos antiga e autêntica, foi muitas vezes retocada por nós. E a cruel recordação não é contemporânea dessa imagem restaurada, mas pertence a outra época; é um dos poucos testemunhos de um passado monstruoso. Mas como esse passado continua a existir, exceto em nós mesmos, por que nos aprouve substituí-lo por um paraíso onde todo mundo se reconciliou, as recordações e as cartas são um aviso da realidade, e com a dor que nos causam devem fazer-nos sentir o quanto nos afastaram dela as loucas esperanças de nosso anelo cotidiano" (PROUST, 2006, p. 248-249). Eu que ainda outro dia estava às voltas com uma carta, mandar ou não mandar, tomei o episódio como um aviso. 

Comecei a ler ontem mesmo e já cheguei à página 80. Será uma leitura diferente da primeira. Com anotações (embora eu tenha algumas anotações antigas), referências, mas fundamentalmente, solitária. Dessa vez, minhas conversas com o Adriano serão mentais e silenciosas, como têm sido desde que ele partiu. Já estou em condições de me reencontrar com ele e com Proust, com a dor e com a beleza do tempo perdido. 

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Ed. Globo, 2006.