sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Os Camponeses

Os Camponeses  (1855 - póstumo)

Volume XIII; Estudos de Costumes: Cenas da Vida Rural (lido entre 18 de junho de 2023 e )

Personagens: srta. Laguerre, Conde de Montcornet, Virgínia de Montcornet (née de Troisville), Emílio Blondet, Francisco (criado de quarto), tio Fourchon (sitiante de Ronquerolles), Mosquito, subprefeito de La-Ville-aux-Fayes, Dr, Gourdon (médico), Francisco Gaubertin (administrador das Aigues no tempo da srta. Laguerre, filho de ex-bailio de Soulanges, foi maire de Blangy), Isaura Gaubertin (née Mouchon), Carlos (escudeiro), padre Brossette, Francisco Tonsard (dono do Grand-I-Vert), srta. Couchet/Soudry (criada de quarto da srta. Laguerre, casou com Soudry ), Soudry (cabo de gendarmetia, furriel de artilharia), Vermiguel (rabequista de Soulanges, porteiro de prefeitura), filha do sitiante de Ronquerolles (que casou com Tonsard), Catarina e Maria Tonsard, velha mãe de Tonsard, Brunet (oficial de justiça de Soulanges), Bonnébaulf, Justino Michaud (guarda geral), Olímpia Michaud, Vatel, dr. Guerbert (juiz de instrução), Adolfo Sibilet (administrator das Aigues, filho mais velho do escrivão do tribunal de La-Ville-aux-Fayes, primo de Gaubertin), Niseron (avô de Genoveva/Pechina), Lupin (tabelião, filho  de intendente de Soulanges), Geni (filha mais velha de Gaubertin), Leclerc (banqueiro, pretendente de Geni), Elisa Gaubertin (filha mais nova de Gaubertin), Claudio Gaubertin (filho de Galbertin, substituto do procurador régio na sede do departamento), Gendrin (cunhado de Gaubertin, presidente do tribunal de La-Ville-aux-Fayes), conde de Soulanges, Sarcus (juiz de paz de Soulanges), sr. Vermut (farmacêutico de Soulanges, irmão mais velho da srta. Sarcus), Adelina Sibiliet (filha dos Sarcus), Courtcuisse (guarda das Aigues), sr. Gourdon (irmão do médico), Guerbet (coletor de Soulanges), Gravelot (comerciantes de madeira de Paris), Groison (suboficial da guarda imperial, guarda campestre em Blangy), Valdoyer (guarda campestre demitido), Langlumé (locatário do moinho do conde), Steingel, Vatel e Galhardo (guardas), Mouchon mais velho (administrador dos Ronquerolles, pai de duas filhas, uma casou com Gendrin e outra com Gaubertin filho), Mouchon segundo (posteiro de Couches, filha casou com granjeiro Guebert), Mouchon mais jovem (padre), Filha mais velha de Sibilet (casou com o professor Hervé), sr. Vigor (posteiro de La-Ville-aux-Fayes), Plisssoud (oficial de justiça), Urbano (antigo soldado empregado de Soudry), Amaury Lupin (filho de Lupin), sra. Lupin, Gregório (antigo beneditino, maire de Blangy), sra. Rigou, Anita (criada de Rigou), João  Tonsard (criado de Rigou e filho mais novo de Tonsar)

A história se passa entre 1823 e 1837. 

A lista de personagens não é exaustiva. Em um certo ponto me perdi com filhos que casam com outros filhos, que são primos de outros personagens... 


                                                Gaubertin, Rigou e Soudry: a "mediocracia" de La-Ville-aux-Fayes 

Os camponeses é um romance incompleto. A primeira parte foi publicada em folhetim em 1844 e foi republicada em 1855, juntamente com a segunda parte, cinco anos após a morte de Balzac. Como o romance estava adiantado, a publicação ficou coerente, ao contrário de Os Pequenos Burgueses e O Deputado de Arcis. Mas Paulo Rónai nos conta que o livro, de acordo com o plano de Balzac, deveria ter o dobro da extensão atual. 

Rónai nos fala da diferença de ritmo entre as duas partes do romance: "enquanto a primeira é uma vagarosa exposição épica, fazendo prever uma narrativa complexa e cheia de episódios, a segunda é um rápido suceder-se de incidentes bruscos, apenas esboçados e, ás vezes, surpreendentes". Ele caracteriza a primeira parte como um romance social no sentido mais amplo da palavra, e a segunda como uma narrativa romanesca do tipo tradicional (BALZAC, 1992, p. 17). 

Um ex-general, filho de um tapeceiro parisiense, que ficou famoso por suas façanhas na Batalha de Essling, feito conde de Montcornet por Napoleão, adquiriu o Château des Aigues e as terras que o cercavam na Borgonha, perto da pequena (imaginária) subprefeitura de La Ville-aux-Fayes. Apaixonado pela velha aristocracia (casou-se com uma "de Troisville" e sonhava ser par da França), o conde gostaria, para agradar a sua esposa, de se reconectar com os esplendores de antes da Revolução, reinando sobre um grande e  próspero domínio com sua autoridade militar.

Montcornet verá toda a sociedade rural unir-se secretamente contra ele, desde os burgueses rurais que são ainda mais vorazes que os burgueses das grandes cidades, até aos arrendatários mais miseráveis, que nunca param de lhe roubar descaradamente. Ao final, o Conde foi derrotado. O guarda Michaud, o único fiel a ele, foi assassinado. O assassino estava protegido pela lei do silêncio. O próprio conde foi ameaçado de morte. Ele vendeu Les Aigues, que seria dividida e o castelo, demolido.

Adaptei esse resumo da Wikipedia em francês de Les Paysans. Os vilões, pelo lado dos camponeses são os Tonsard, a burguesia rural é representada por Gaubertin e pelo avarento Rigou, com todos que os cercam. 

Balzac nos diz no começo da narrativa: 

"Não, o drama aqui não é restrito à vida privada, agita-se mais alto ou mais baixo do que ela. Não esperem paixão; nem por isso a verdade será menos dramática. De resto, o historiador jamais deve esquecer que a sua missão consiste em dar a cada um a sua parte: o rico e o desgraçado são iguais perante a sua pena; para ele o camponês tem a grandeza de suas misérias, como o rico, a pequenez de seus ridículos. Enfim, o rico tem paixões e o camponês, apenas necessidades: esse é, pois, duplamente pobre; e, se do ponto de vista político suas agressões devem ser reprimidas implacavelmente, do ponto de vista humano e religioso ele é sagrado" (BALZAC, 1992, p. 38). 

Balzac nos apresenta uma luta de classes, razão pela qual era um dos escritores favoritos de Engels e Marx. Aliás, Rónai nos diz que talvez seja a primeira obra literária na qual aparece, em 1844, o termo "comunismo": "a audácia com que o Comunismo, essa lógica viva da Democracia, ataca a Sociedade na ordem moral anuncia que a partir de agora o Sansão popular, tornando-se prudente, solapa as colunas sociais no porão em vez de sacudi-las no festim" (BALZAC, 1992, p. 104). Há muitas citações como essa. E interessantíssimas análises da Revolução Francesa, como as padre Brossette ( "A Revolução Francesa foi a vingança dos derrotados", p. 91). 

Os vencedores dessa luta, contudo, não são os mais pobres, são os seus exploradores imediatos: camponeses enriquecidos, taverneiros, usurários rurais, burgueses rurais, funcionários públicos corruptos. 

Todavia, é uma leitura muito complexa. O excesso de personagens, que muitas vezes aparecem e, somente várias páginas depois, são caracterizados, as ligações familiares entre eles, torna a história de difícil compreensão. Já li Guerra e Paz e Vida e Destino, não me assusto com obras com muitos personagens. Mas aqui, me perdi. Balzac exagerou. Creio que o plano da Comédia Humana exigia dele uma apreensão da realidade que, muitas vezes, resultava em confusão. 


A  imagem foi retirada de https://www.cosmovisions.com/textPaysans.htm 

 Acesso em 3 de novembro de 2023

BALZAC, Honore de. A Comédia Humana. Vol. XIII. São Paulo: Globo, 1992. 


domingo, 18 de junho de 2023

Uma Paixão no Deserto

Uma Paixão no Deserto (dezembro de 1830)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar. 

Personagens: narrador, senhora, sr. Martin (domador de leões), soldado provençal.

A história se passa provavelmente em 1830. A história relatada pelo narrador ocorreu entre 1798 e 1799 no Egito. É o segundo livro de Cenas da Vida Militar. 

Antes de mais nada, não deixe de ler esse conto que possui apenas 15 páginas. Um soldado provençal, que participa das guerras napoleônicas no Egito, é feito prisioneiro por berberes. Aproveita uma oportunidade e foge. A sobrevivência no deserto é pouco provável até o encontro do militar com a sua "paixão". Paulo Rónai diz, propriamente, que "o conto inspira medo, ou antes, uma sensação indefinida de curiosidade e mal estar". De fato, é com ansiedade que lemos esse texto curto. 

Aqui Balzac está longe de seu familiar universo urbano e se sai muito bem. Segundo Rónai, alguns consideram seu melhor conto. Para quem ler e se interessar recomendo o ótimo trabalho de Maria Braga Barbosa: Uma paixão no deserto: o conto de Balzac como metáfora do choque de cultura no colonialismo. A autora apresenta o encontro do soldado com a pantera como uma metáfora do choque de culturas na colonização. Mas não precisamos ver nenhuma metáfora. É uma boa história por si. 

A imagem é do pintor e ilustrador Paul Jouve (1878-1973) que ilustrou uma edição do conto em 1949. 


sábado, 17 de junho de 2023

A Bretanha em 1799

A Bretanha em 1799 (agosto de 1827 ou 1829?)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar. 

Personagens: Comandante Hulot, Gérard (ajudante), Capitão Merle, Pé de Poeira (Pedro), Subtenente Lebrun, Pé Bonito (João Falcon), padre Gudin, Gars-Maruqês de Montauran, Furta Pão (Cibot), Coupiou (condutor), Jacques Pinaud (Orgemont de Fougères), Francine, Maria Natália de Verneuil, Corentin, Sra. do Gua, Barão de Guénic, major Brigaut, Conde de Bauvan, Furta Pão, Barbette, Galopa  Caneca, Cavaleiro do Vissard (Rifoel).

A história se passa em 1799. É o primeiro livro de Cenas da Vida Militar. 


Maria conhece o Gars e Sra. de Gua
A Bretanha em 1799 ou Les Chouans foi o primeiro livro assinado por Balzac. Segundo Paulo Rónai foi quando, pela primeira vez se manifestaram as características do escritor Balzacc como o cuidado em corrigir o livro e a superioridade com que tratou seu editor, Henri de Latouche. É um romance histórico à moda de Walter Scott, em voga na época com o acréscimo de uma intriga amorosa. 
A história diz respeito à denominada Chouannerie, uma revolta de camponeses ocorrida na região da Bretanha contra a Revolução Francesa. Eles usavam táticas de guerrilha e imitavam o grito da coruja (chouin no dialeto bretão). De acordo com a Enciclopédia Britânica, a motivação era menos a devoção à monarquia do que o ressentimento pela interferência da república com o modo de vida dos Chouans, como o fim do contrabando em função da abolição da gabela (imposto sobre o sal), medidas contra o clero e a conscrição obrigatória . 
Acompanhamos um grupo de conscritos bretões escoltados pelo comandante Hulot, conhecido nosso de A Prima Bete. Eles são atacados pelos Chouans. Um líder vendeano, um jovem nobre alcunhado de Gars, o Marquês de Montauran, vem do exterior para unir a Vendeia e a Bretanha. Para detê-lo, José Fouché (1759-1810), que já aparecera em Um Caso Tenebroso , através do nosso já conhecido Corentin (Um Caso Tenebroso, Esplendores e Misérias das Cortesãs) envia uma bela sedutora, Maria de Verneuil. O Gars e Maria se apaixonam no primeiro encontro. Um armadilha de Corentin, porém, faz com que Maria denuncie seu amado. Ela descobre a trama, mas é tarde demais. Eles se casam e morrem juntos na manhã seguinte. 
Como bem destaca Rónai, há muito da primeira fase de Balzac, a qual ele renegou, nesse romance. A história de amor é um tanto mirabolante, há fugas, esconderijos, tesouros. Os personagens são fracos e esquemáticos (segundo críticos, isso pode ser em função de alterações posteriores do romance para se encaixar na Comédia Humana). Mas há também muito de Balzac aí. A história não é real, mas o escritor pesquisou, de modo a nos dar incríveis descrições da paisagem da Bretanha, das casas e do modo de vida dos Chouans. A missa rezada pelo padre Gudin no bosque e o assassinato de Galopa Caneca pelos seus companheiros por uma suposta traição são momentos superiores da obra. 
Aliás, a traição perpassa toda a história. Azuis (republicanos) e Brancos (contrarrevolucionários) se acusam mutualmente de traidores, do rei, no primeiro caso, e da pátria, no segundo. E Maria e Montauran passam por várias possibilidades de traírem um ao outro. No final, acreditando que Montauran a trai com De Gua, Maria o trai, entregando-o aos Azuis. 
Eu confesso que esperava mais, muito em função da fama de A Bretanha em 1799. Minha leitura foi demorada, sem aquela pressa que tenho, aquele não conseguir largar o livro. Sinal de que estou mal acostumada com o meu historiador de costumes!
 


A imagem é de E. Toudouze — Honoré de Balzac, The Chouans. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Z. Marcas

Z. Marcas (1840)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar. 

Personagens: Carlos Rabourdin (narrador, estudante de direito), Justo (estudante de medicina), Zeferino Marcas. 

A história se passa entre 1836 e janeiro de 1838

Paulo Rónai, na introdução desse conto, utiliza a acertada definição de Guyon, em Le Cathécisme Social: "mistura estranha de confidência pessoal, confissão de importância e sátira violenta contra o governo burguês, egoísta e gerontocrata da da Monarquia de Julho". Z. Marcas conta as desventuras de um estrategista político, um autêntico "homem de Estado", traído por políticos medíocres que ele ajudou a colocar no poder. 

Pierre Jean David (David D´Angers), 1843

A história é contada por Carlos Rebourdin, filho de Xavier Rebourdin, de Os funcionários. Carlos e seu colega de quarto, Justo, eram vizinhos de Marcas em uma pensão de estudantes na rue Corneille. Ajudando a mitigar a penúria de Marcas, os jovens escutam suas histórias e passam a admirá-lo. O auxiliam em uma última empreitada que não dá certo e resulta na morte do herói aos 35 anos. 

Rónai aponta o problema do texto. Balzac se identifica com o personagem. Assim Balzac descreve Marcas: "Seus cabelos assemelhavam-se a uma juba, seu nariz era curto, achatado, largo e fendido na ponta, como o de um leão. Tinha a fronte dividida por um sulco profundo, dividida em dois lobos potentes, como a de um leão" (BALZAC, 1991, p. 324). E esses eram seus hábitos: "Trabalhava durante metade da noite. Depois de ter dormido de seis a dez horas, levantava-se paras recomeçar, e escrevia até as três horas. Saía então para ir levar as suas cópias entes do jantar e ia comer na rue Michel-le-Comte, à casa Mizerai, à razão de nove sous por refeição. Voltava depois para deitar-se às seis horas" (BALZAC, 1991, p. 326). É Balzac falando dele mesmo. O problema é que o que é evidente para o autor não o é para o leitor. Onde Balzac vê grandeza e inteligência, nós leitores vemos ambição e vaidade. O texto é grandiloquente e chato. 

Vale a pena destacar ainda que Z. Marcas é uma crítica mordaz da Monarquia de Julho e da sociedade francesa permeada pelo dinheiro: "(...) o Estado, assaltado pelos mais insignificantes postos da magistratura, acabou exigindo dos solicitantes certa fortuna. (...) Hoje o talento precisa  a sorte que faz triunfar a incapacidade; mais ainda, se descura das aviltantes condições que dão êxito à mediocridade rastejante, jamais triunfará" (BALZAC, 1991, p. 322). Mas Balzac mostra isso muito bem em diversos textos. Aqui faz um libelo que está aquém de sua grandeza. 




sexta-feira, 8 de julho de 2022

O deputado de Arcis

O deputado de Arcis (1847)

Volume XII: Estudo de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar

Personagens: sra. Marion, coronel Giguet, Simão Guiget, Grévin (tabelião), Philéas Beauvisage (genro de Grévin), Severina Beauvisage (née Grévin), Varlet filho (médico), Cecília Beauvisage, Francisco Keller (genro do Conde de Gondreville, Malin), Carlos Keller (filho de Francisco), Marechala de Carigliano (filha de Malin), Aquiles Pigoult (tabelião, sucessor de Grévin), Poupard (hospedeiro), João Violette, Antonino Goulard (subprefeito), Olivério Vinet (procurador substituto), Frederico Marest (procurador do Rei), sr. Martener (juiz), sr. Mollot (escrivão), sra. Mollot, srta. Ernestina Mollot, Juliano, Gontardo, Anniette, Paraíso, Marquesa d´Espard, Cavaleiro d`Espard, De Rastignac, Condessa de Rastignac (filha de Delfina de Nuncingen), Máximo de Trailles. 

A história se passa em 1839

O deputado de Arcis é um livro inacabado. Tem somente a primeira parte, A Eleição. Mas, ao contrário de Os pequenos burgueses, lamentamos muito não ter a continuação da história. É o mesmo ambiente e personagens de Um caso tenebroso, 33 anos depois do caso judicial dos Cinq-Cygne. Paulo Rónai nos diz na introdução que que O deputado de Arcis alarga a complexa perspectiva de Um caso tenebroso e "aprofunda em nós a sensação do histórico". 

Philléas Beauvisage

Na parte que conhecemos o protagonista é Simão Giguet, sobrinho da sra. Marion, viúva de Marion, recebedor geral, irmão do Marion que foi testa de ferro de Malin no passado. Simão decide apresentar-se como candidato de oposição nas eleições à Câmara nacional. O posto era, desde 1816, de Francisco Keller, genro do Conde de Gondreville, nosso conhecido Malin. Keller, nomeado par de França, desejava transmitir ao filho Carlos, sua sucessão eleitoral. Mas "eleger o jovem comandante Keller, em 1839, depois de ter eleito o pai durante vinte anos, revelava uma verdadeira servidão eleitoral, contra a qual se revoltava o orgulho de vários burgueses enriquecidos, que julgavam valer tanto como um sr. Malin, Conde de Gondreville, e como os banqueiros Keller irmãos, e os Cinq-Cygne, e até mesmo o rei dos franceses!" (BALZAC, 1991, p. 230). Esse foi o contexto da candidatura de Simão Giguet. 

Há inclusive a insinuação de que Gondreville, aqui com 80 anos, proporia um "filho da terra" como candidato, que cederia seu lugar à Carlos Keller. Há a insinuação de que esse candidato laranja poderia ser Philéas Beauvisage, genro do tabelião Grévin, e filho do granjeiro de Bellache, de Um caso tenebroso. Simão desejava também a mão de Cecília Beauvisage, filha de Philéas (ou filha de um  Visconde de Chargeboeuf que era subprefeito em Arcis na época do seu nascimento). Herdeira rica, faria o sonho da mãe, Severina, de morar em Paris e frequentar à alta sociedade. Mas a jovem, ou melhor, sua família, tinha em vista Carlos Keller para noivo. 

Mas eis que chegou a notícia de que Carlos Keller morreu em guerra na África. Aparentemente o caminho estava livre para Simão. Mas eis que chegou à cidade um nobre desconhecido. "Não há cidade pequena na França na qual, num momento dado, não se represente o drama ou a comédia do forasteiro. Muitas vezes este é um aventureiro que faz vítimas e se vai, levando a reputação de uma mulher ou o dinheiro de uma família" (BALZAC, 1991, p. 276). Não há como não recordar de O Inspetor Geral de Gógol...

O desconhecido não era ninguém menos do que Máximo de Trailles, conhecido dândi, colecionador de mulheres e financeiramente arruinado. Ele vai para Arcis para se candidatar a deputado e garantir a candidatura para a Monarquia de Julho. A decisão foi tomada em Paris, no salão da Marquesa d´Espard, dois meses antes da reunião que abre o romance, que lançou a candidatura de Simão. Sabemos que Máximo manteve conversas com Gondreville e com os Cinq-Cygne, arqui-inimigos em função do caso judicial do passado. E que seus modos finos e a sua equipagem despertaram o interesse de Cecília. Contudo, Balzac parou aqui. 

A trama é tipicamente balzaquiana, com as descrições de ambientes e dos aspectos físicos e psicológicos. O diferencial de O Deputado de Arcis é o proveito que Balzac tira da sua "invenção", de mostrar o passado ou o futuro das sua personagens. O recurso que, em alguns romances, fica um pouco artificial, aqui é utilizado de forma brilhante. Os desfechos iluminam as histórias pregressas. A amizade de Grévin e Malin, a ascensão do filho do granjeiro Beauvisage, o  ministro  De Rastignac, o jovem que olhou Paris do alto da colina do Père-Lachaise no enterro do Pai Goriot

O desfecho seria o sucesso de Máximo de Trailles nas eleições e no coração de Cecília? É o que parece. Mas não esqueçamos que, muitas vezes, Balzac nos surpreende no final. 

BALZAC, Honore de. A Comédia Humana. vol. XII. São Paulo: Globo, 1991. 

Não encontrei a fonte da imagem. O texto é da parte III do romance: "Ele vivia sorrindo a todos. (...) Seus lábios abonecados triam sorrido em um enterro" (BALZAC, 1991, p. 236). 

domingo, 15 de maio de 2022

Um caso tenebroso

Um caso tenebroso (janeiro de 1841)

Volume XII: Estudos de Costumes: Cenas da Vida Política, Cenas da Vida Militar

Personagens: Michu, Marta Michu, mãe de Marta, Francisco Michu, Gaucher (criado de Michu), Mariana (criada de Michu), Marion, Malin (conselheiro de Estado, Conde de Gondreville), Grévin (tabelião em Arcis), Corentin, Peyrade, Violette (granjeiro), Lourença de Cinq-Cygne, Paulo Maria e Maria Paulo Simeuse, sr. e sra. d´Hauteserre, Catarina, Gontardo, padre Goujet, srta. Goujet, Durieu (cozinheiro), Goulard (maire), Roberto d´Hauteserre, Adriano d´Hauteserre (Marquês de Cinq-Cygne), José Fouché, Marquês de Chargeboeuf, Beauvisage (granjeiro de Bellache), juiz Lechesneau, Pigoult  (juiz de paz), Bordin (procurador), sr. de Grandville (advogado), príncipe Talleyrand, Marcehal Duroc, Napoleão Bonaparte, Berta de Cinq-Cygne, Paulo de Cinq-Cygne, Princesa de Cadigan, Marquesa d´Espard, De Marsay, De Rastignac, Jorge de Maufrigneuse.

A história se passa entre 1803 e 1833. 

No Castelo de Cinq-Cygne

Neste romance, que Paulo Rónai acertadamente caracteriza como magnífico e opulento, temos uma amostra do que Balzac teria feito se tivesse vivido mais. Um caso tenebroso é uma história que se passa no período do Consulado (10 de novembro de 1799 a 18 de maio de 1804). Não por acaso, ele está, na Comédia Humana, após Um episódio do Terror ambientado na época da Revolução. Balzac nos deixou títulos não escritos como Os soldados da República, Os Franceses no Egito e Moscou. Sofrimento para o leitor balzaquiano não poder ler essas histórias!

Um caso tenebroso compõe a pré-história da Restauração e da Monarquia de Julho. Segundo Rónai, a história interessava a Balzac como repositório dos germes da época em que ele vivia. Lá ele buscava explicações para o que via e o que retratava.

Em setembro de 1800, o senador Dominique Clément de Ris foi raptado em seu castelo em Beauvais por um bando de ladrões. Dezenove dias depois foi libertado sem ter sofrido nenhum dano. José Fouché, Talleyrand e Clément de Ris haviam tramado um golpe contra Bonaparte, caso ele não fosse bem-sucedido na Itália. Com a vitória de Marengo, Fouché mandou seus homens resgatarem documentos comprometedores no castelo de Beauvais, que, por cautela, raptaram o senador. Porém, Napoleão ordenou a investigação e a punição dos culpados. Fouché fez com que um grupo de jovens realistas, desafetos seus, fossem acusados e executados. Balzac conhecia bem a história, pois o senador fora protetor de seu pai, Bernard-François Balssa.

No romance o senador Clément de Ris é Malin. Os acusados são os gêmeos Simeuse, os irmãos Roberto e Adriano d´Hautserre, e o empregado Michu. Eles, de fato, haviam conspirado contra Napoleão, mas, com o perdão do Cônsul, retornaram à França e, juntamente com o sr. e a sra, d´Hautserre e Lourença de Cinq-Cygne, torciam contra o futuro imperador, mas sem agir. A trama, que contou com a participação dos nossos conhecidos Corentin e Peyrade foi muito bem executada, de modo que os acusados, mesmo com a excelente defesa do advogado Grandville, foram condenados. Os nobres tiveram a pena convertida em ingresso no serviço militar e Michu foi condenado à guilhotina. Paulo Maria, noivo de Lourença, Maria Paulo e Roberto D´Hautserre morreram nas guerras napoleônicas. Uma melancólica Lourença casou com Adriano e teve dois filhos, Paulo e Berta. 

Lourença e Napoleão

Fazia algum tempo que não lia Balzac com tanta ansiedade, sem conseguir parar! Muito interessante os matizes que o autor apresenta dentro do espectro político pós-revolucionário. Temos realistas que se disfarçaram de jacobinos para sobreviver e prosperar, radicais que se acomodaram, realistas que aguardavam a volta do Antigo Regime, conspiradores, conformados, indiferentes - os nossos isentões - enfim - e em um quadro móvel. Com respeito ao Império, vários matizes de atitudes, especialmente da nobreza, da luta armada até a colaboração. Dá para entender por que Balzac recuou no tempo para melhor entender a Restauração.  

Temos uma amostra da justiça durante o Consulado, um sistema inquisitorial no qual "o diretor do júri era, ao mesmo atempo agente da polícia judiciária, procurador do Rei, juiz de instrução e corte real" (BALZAC, 1991, p. 155). Balzac critica o júri com o mesmo argumento que já vi membros do Ministério Público utilizarem: "Por isso, é bem possível que os juízes ofereçam aos acusados mais garantias que os jurados. O magistrado não se fia senão nas leis da razão, ao passo que o jurado se deixa impelir pelas vagas do sentimento" (BALZAC, 1991, p. 155). "A inocência nada mais tem por si do que o raciocínio; e o raciocínio que pode impressionar os juízes é muitas vezes impotente sobre o espírito prevenido dos jurados" (BALZAC, 1991 ,p. 172). 

Então, o próprio Napoleão Bonaparte entra na Comédia Humana. É uma cena curta, mas magnífica. Em 13 de outubro de 1806, no vale do rio Saale, em Jena na Prússia, Lourença consegue alcançar o Imperador para pedir clemência, na véspera de uma das maiores vitórias do Imperador. Lembremos que Balzac dizia que queria "conseguir com a pena o que ele [Napoleão] realizou com a espada", admiração que não impede que nosso autor o retrate de forma complexa. 
Mas "uma vez conhecido o julgamento, acontecimentos políticos da mais alta importância abafaram a lembrança desse processo em que não mais se falou. A sociedade é como o oceano, após um desastre retoma o seu nível e seu ritmo e apaga os vestígios pelo movimento de seus devoradores interesses" (BALZAC, 1991, p. 195). 

É no capítulo final, contudo, que Balzac se revela genial. Aqui, escrevendo ficção, ele nos dá uma lição do que é fazer história. História é uma versão do passado baseada em testemunhos que podem ser escritos, orais ou materiais. O passado não existe por si e é impossível apreendê-lo, pois os testemunhos, por mais numerosos que sejam (veja-se tudo que as redes sociais deixarão para os historiadores do futuro), são limitados. Em 1833, no salão da Princesa de Cadigan, De Marsay ao ver a Marquesa de Cinq-Cygne, Lourença, deixar o salão com a chegada do Conde de Gondreville, Malin, que também se retira, desvenda o mistério, revelando a conspiração de Fouché, Talleyrand e Malin. A narração, todavia, não é exata, "mesmo depois de todas as explicações, permanecem uns cantos obscuros, recurso engenhoso do romancista para fazer sentir a inextricabilidade da história, cujos acontecimentos nunca podem ser integralmente esclarecidos" (RÓNAI, 1991, p. 38). 
É um final que produz um efeito de real assombroso, com um recurso bem diferente do descrito por Roland Barthes. Leiam, por favor!

Fontes da imagens: 

Pierre Vidal — Honoré de Balzac, A Dark Affair. Philadelphia: George Barrie & Son, 1897. 

BALZAC, Honoré. A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 
RÒNAI, Paulo. Introdução - um caso tenebroso. In: A comédia humana. Volume XII. São Paulo: Globo, 1991. 

domingo, 1 de maio de 2022

(Re)lendo Proust

 (Re)lendo Proust

Li "Em busca do Tempo Perdido" em 1993, aos vinte e dois anos. Texto famoso como difícil e que muitos leitores experimentados não conseguem enfrentar, não foi complicado para mim. Não por eu ser especial, nem nada. Sou leitora desde que aprendi a ler. Mas com vinte e dois anos ainda me faltava muita coisa. Sem falar que "Em Busca" traz milhares de referências culturais - música, pintura, arquitetura, filosofia,  literatura  - e em 1993 não existia Internet. Se  eu encontrava o nome de um artista desconhecido, teria de ir à biblioteca da faculdade pesquisar. Logo, perdi a maior parte das referências, que são fundamentais para o texto. 

Creio que a leitura dos sete volumes começou em março e que tenha durado uns sete meses. Rápido demais, penso agora. Mas não li sozinha. Foi a minha primeira e única experiência de leitura conjunta. 

Não lembro como começou, mas eu e o Adriano fazíamos listas dos livros que queríamos ler. Ele era quatro anos mais velho que eu. Pouca coisa, mas em leitura é muito. Foi ele que me falou pela primeira vez de Balzac. Além de ter lido mais, ele tinha livros. Ele era servidor público e tinha dinheiro para os comprar. Imagino que um dia tenhamos decidido ler "Em busca" ao mesmo tempo. Ele comprou, eu peguei meu exemplar na biblioteca do IFCH da UFRGS. E começamos. 

Embora ainda fôssemos colegas na faculdade, não nos víamos todos os dias. Ele trabalhava, tinha namorada, eu era bolsista de pesquisa, fazia mil outras coisas, tinha namorado. Cada um lia em sua casa, na biblioteca. Às vezes líamos juntos, cada qual seu livro, no apartamento dele. Em um mundo sem celular e WhatsApp, usávamos o que havia para coordenar nossa leitura. Eu telefonava para o trabalho dele, ele não tinha telefone em casa. Ele me ligava do orelhão. Às vezes, íamos na casa um do outro e deixávamos um bilhete embaixo da porta. Então nos informávamos sobre até que parte o outro tinha lido. Dependendo, um segurava um pouco a leitura para esperar o outro. 

Estávamos apaixonados pelo livro e por Proust.  Os personagens, os lugares, os trechos nos ocupavam o tempo inteiro. Queríamos saber mais. Sem Internet, livrarias on line e Amazon, pegávamos o que havia na biblioteca. Compramos, em conjunto, a um preço altíssimo para nós, a biografia "Marcel Proust" de George Painter. Lá estão nossos dois nomes a lápis com a data de 10 de julho de 1993. Dessa vez teríamos de dividir a biografia, cada um lendo de uma vez. Houve a exibição de um filme no Centro Municipal de Cultura, baseado no "Em busca", seguido de uma palestra com o Tatata Pimentel, professor de literatura francesa e especialista no tema. Cheguei mais cedo. O filme já havia começado, quando o Adriano chegou. Ele sentou ao meu lado, me deu um beijo no rosto, não era preciso falar nada. Ao final da palestra, fomos falar com o Tatata, creio que foi ele que nos recomendou a biografia do George Painter. "Vocês dois não são jovens demais para ler Proust?", o professor nos perguntou com seu jeito divertido. 

Terminamos o livro. Eu li a biografia, ele leria depois. Havia planos, um tanto grandiosos para a época, de ir à França conhecer os lugares proustianos. Não era nosso único plano de viagem. Havia uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa. O Adriano era apaixonado pela cultura norte-americana - ele que me apresentou a Philip Roth, Raymond Caver, Tom Wolfe, Truman Capote - e dizia que essa viagem descolonizaria a europeia que havia em mim. Como seria isso? Não sabíamos. Tínhamos namorados. O meu, creio que não se importaria que eu viajasse com um homem, mas a dele não iria querer, com certeza. Mas tínhamos todo o tempo do mundo. 

O Adriano morreu no dia 31 de janeiro de 1994. Eu, com meu apego a lembranças e coisas materiais, quis ficar com os exemplares dele da "Busca", mas não consegui. Sei que foram doados para a biblioteca de uma casa do estudante onde ele morou. 

Guardei tudo o que tinha dele, cartões, bilhetes, listas de livros, cartões postais, caderninhos que ele me deu de aniversário, canetas,  em uma caixa, que levei muitos anos para conseguir abrir. Mas a verdadeira caixa, ainda não havia aberto. Tenho todos os exemplares da "Busca", que comprei há algum tempo. Comecei a ler duas vezes nos últimos cinco anos. Mas desistia nas primeiras páginas. 

Ontem, arrumando uns livros, peguei "À sombra das raparigas em flor" e o abri ao acaso. "A imagem de nossa amada, ainda que a julguemos antiga e autêntica, foi muitas vezes retocada por nós. E a cruel recordação não é contemporânea dessa imagem restaurada, mas pertence a outra época; é um dos poucos testemunhos de um passado monstruoso. Mas como esse passado continua a existir, exceto em nós mesmos, por que nos aprouve substituí-lo por um paraíso onde todo mundo se reconciliou, as recordações e as cartas são um aviso da realidade, e com a dor que nos causam devem fazer-nos sentir o quanto nos afastaram dela as loucas esperanças de nosso anelo cotidiano" (PROUST, 2006, p. 248-249). Eu que ainda outro dia estava às voltas com uma carta, mandar ou não mandar, tomei o episódio como um aviso. 

Comecei a ler ontem mesmo e já cheguei à página 80. Será uma leitura diferente da primeira. Com anotações (embora eu tenha algumas anotações antigas), referências, mas fundamentalmente, solitária. Dessa vez, minhas conversas com o Adriano serão mentais e silenciosas, como têm sido desde que ele partiu. Já estou em condições de me reencontrar com ele e com Proust, com a dor e com a beleza do tempo perdido. 

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Ed. Globo, 2006.