terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Auto de Fé (Die Blendung)

Auto de Fé. Elias Canetti. São Paulo: Cosac Naify, 2004. Tradução: Herbert Caro. 

Lido entre 13  março e 18  julho de 2013. 

Como já registrei aqui meu interesse por Elias Canetti surgiu a partir da sua biografia e da peculiaridade dele ter se tornado um mestre em uma língua que não era a sua língua materna, no caso o alemão (Canetti nasceu na Bulgária numa família de judeus sefaratitas, de modo que sua língua materna era o ladino, aparentado ao espanhol). No segundo volume das suas memórias, Uma Luz no meu ouvido, Canetti esclarece como foi gestado seu primeiro e único romance, Auto de Fé. Eu já o possuía na estande há um certo tempo. Chegou a hora de enfrentá-lo. 
Auto de Fé, cujo o título original é Die Blendung, o cegamento, conta a história de Peter Kien, um sinólogo famoso, que vive recluso em sua biblioteca repleta de livros raros. Percebendo o zelo de sua governanta, Therese, para com os livros, Kien resolve casar com ela. Therese, todavia, revela-se uma mulher vulgar, que deseja unicamente, saquear Kien e dispensá-lo. Com a ajuda do zelador, também interessado no dinheiro do sábio, ela acaba expulsando Kien de casa e, nas ruas, ele tem contato com um mundo que não conhece. Conhece uma fauna variada de personagens surrealistas: o anão Fischerle, um cego, um mascate, um limpador de esgotos. No final, o irmão de Kien, Georges, psiquiatra, chega à cidade para ajudá-lo. Mas Kien acaba morrendo com o incêndio de sua biblioteca. 
É um romance complexo e pesado. E, ao contrário de Thomas Mann, cujos primeiros livros, trazem ainda ares de século XIX, Auro de Fé é um romance absolutamente do século XX. Foi publicado em 1935, não por acaso, época em que o nazismo já estava instalado na Alemanha e a guerra se avizinhava. 
Canetti refletiu em uma obra clássica, Massa e Poder, sobre o fenômeno da massa. Isso está presente em vários momentos da narrativa. Não somente a massa como fenômeno, mas também a sociedade de massas. Os personagens convivem, interagem, mas não se comunicam. Eles absolutamente não conseguem compreender o outro. Cada um vive no seu mundo fechado, impermeável ao diálogo, à troca. Até o irmão médico de Kien, Georges, que é mais "normal" do que os outros, não consegue compreender a situação que está vivenciando. Hoje se fala muito que as pessoas, em função da internet e das redes sociais, não convivem, somente interagem. Isso já está em Auto de Fé
O livro tem uma origem complexa, narrada por Canetti em suas memórias e também, de forma resumida, no ensaio O Primeiro Livro, reproduzido na edição da Cosac Naify. Se presta a diversos tipos de análise, inclusive do ponto de vista psicanalítico. Não farei nenhuma análise, apenas comento dois pontos importantes para mim, ou melhor, duas influências presentes na obra que me são caras. 
Kien era, originalmente, o Homem dos Livros. Um personagem para quem os livros eram mais importantes do que a vida e do que as pessoas. A cena na qual, no hotel, ele arruma a biblioteca fictícia é emblemática. O grande Homem dos Livros da literatura ocidental é Dom Quixote de Cervantes ( e Canetti admite a influência). Dom Quixote passa a viver a realidade das novelas de cavalaria, rejeitando a atmosfera sombria da Espanha do século XVII. Já a fixação de Kien é nos livros em si. Às vezes são mencionados alguns temas que ele estuda, mas é a materialidade dos livros que é importante. Mas a dureza da realidade é pesada para ambos. Assim, apesar do fim sombrio de Kien, Auto de Fé é uma declaração de amor aos livros. Canetti é também um Homem dos Livros. 
A segunda é Balzac, influência também revelada. Canetti dizia que o plano original era escrever uma comédia humana de loucos. Havia diversos esboços de personagens, e somente Kien foi desenvolvido. Apesar da diferença de linguagem e de contexto, há Balzac em Auto de Fé. A disputa entre Kien e Therese por espaço lembra O cura de Tours, quando os padres Birotteau e Troubert disputam um quarto mobiliado. E as manobras de Fischerle para tirar dinheiro de Kien lembram os inúmeros trapaceiros que desfilam pela Comédia Humana. 
É um leitura pesada, que não flui facilmente. É preciso desgaste e energia para enfrentar essa obra única. Eu prefiro a prosa mais tradicional de Thomas Mann. Mas, para quem gosta de literatura, é uma obra indispensável.