Lido entre 19 de fevereiro e 6 de março de 2013.
Trata-se da continuação da biografia de Elias Cannetti, A Língua Absolvida. Uma Luz em meu Ouvido cobre o período entre 1921 e 1931, ao fim do qual Canetti tornou-se escritor.
O livro inicia com a chegada de Elias, aos 16 anos a Frankfurt em 1921. Lá, a família, mãe e três filhos, em dificuldades financeiras foi residir na pensão Charlotte. Na pensão, Elias teve contato com uma fauna variada. Alguns eram pessoas de aparência respeitável, mas com uma vida dupla. O autor conheceu o período de crise e inflação que se abateu sobre a Alemanha dos anos 1920. Ele relata o impacto que teve sobre ele ter presenciado na rua uma mulher desmaiar de fome.
Em 1924, Elias foi para Viena com o irmão Georg. Tendo desistido da medicina, optou, sem muita convicção, por estudar química. Ele tinha 19 anos.
Por intermédio da família Asriel, Canetti conheceu, no mesmo dia, duas das pessoas mais importantes de sua vida: Karl Kraus e Veza.
Karl Kraus (1874-1936) não é muito conhecido hoje em dia, mas era uma celebridade na Viena dos anos 1920. Ensaísta, dramaturgo, polemista, escrevia um jornal, Die Fackel (A Tocha), onde atacava o belicismo e a corrupção das elites da época. Escreveu um drama de mais de oitocentas páginas, Os último dias da humanidade, "no qual aparece tudo o que aconteceu na guerra. Quando Karl Kraus fazia leituras de partes do mesmo, ficava-se como que aniquilado. Nada se movia no auditório, mal se ousava respirar. Ele mesmo lia os papéis de todos os personagens, dos aproveitadores e dos generais, dos velhacos e dos pobres-diabos que eram vítimas da guerra. Todos pareciam tão genuínos em sua interpretação como se estivessem à nossa frente. Quem o ouvisse, nunca mais desejaria frequentar um teatro, pois o teatro era enfadonho em comparação a Karl Kraus. Ele sozinho era um teatro inteiro, porém melhor, e este milagre da humanidade, esse monstro, este gênio tinha um nome tão comum como Karl Kraus".
Pois na primeira vez que teve essa incrível experiência, Elias conheceu Veza Taubner-Calderon (1897-1963) com quem se casaria em 1934. Elias e Veza tiveram uma parceria intelectual poderosa que iniciou nessa época, apesar do posterior casamento conturbado - Canetti teve muitas amantes e Veza, uma intensa paixão por Georg, o irmão médico do escritor.
Mas o tom desse período é o mesmo da parte final de A Língua Absolvida: os embates do jovem com a forte personalidade da mãe, Mathilde. Elias data um momento de ruptura, ocorrido em 24 de julho de 1925, quando a mãe o proibiu de fazer uma excursão para as montanhas com um amigo. Ocorreu uma grande crise que marcou o afastamento entre mãe e filho. Mathilde também se opunha ao relacionamento do filho com Veza. É muito engraçado o trecho em que Canetti conta que inventava para a mãe relacionamentos com outras mulheres para desviá-la da seriedade do seu romance com Veza.
Também é desse período a narrativa do trabalho no laboratório de química, de onde saíram alguns modelos para os personagens de Auto de Fé.
Um acontecimento que mudou a vida de Canetti e o levou a dedicar anos ao estudo das massas e à publicação do ensaio Massa e Poder em 1960 ocorreu em 15 de julho de 1927. Tudo começou com um tiroteio alguns dias antes, quando seis operários foram mortos. A corte de justiça inocentou os assassinos, o que provocou uma grande revolta nos trabalhadores de Viena que marcharam para o Palácio da Justiça e o queimaram. Elias Canetti se integrou na massa manifestante, e estudar os movimentos de massa, de turba, a partir daí, passou a ser sua obsessão. Dessa experiência surgiu um dos modelos de Kien, o homem dos livros de Auto de Fé: "Numa rua lateral, não longe do Palácio da Justiça em chamas, logo ao lado, destacando-se nitidamente da massa, estava um homem de braços erguidos, que juntava as mãos por cima da cabeça, em desespero, e bradava em tom lamentoso, uma vez após a outra ´Os arquivos estão queimando!`, ´Todos os arquivos!`, ´Antes os arquivos do que as pessoas!`, disse-lhe eu, mas isso não o interessou, só tinha os arquivos na cabeça".
Elias terminou sua graduação em química, já muito ciente de que jamais trabalharia como químico. Dois períodos em Berlim entre 1928 e 1929 foram fundamentais para sua carreira de escritor e para Auto de Fé.
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George Grosz - Berlin Strasse 1931 |
As maiores influências do período berlinense foram o pintor e desenhista George Grosz (1893-1959) e o escritor russo Isaak Babel (1894-1940). Canetti considera que o trabalho de Grosz teve o mesmo impacto para ele do que o texto de Karl Kraus, mas que por ser uma pessoa verbal e sem talento para o desenho, o admirava mas não o tinha como paradigma. Canetti considera que Babel significou mais para ele do que qualquer outra pessoa que conheceu na época.
Outra figura dos anos 1920 com quem Canetti travou conhecimento foi Bertold Brecht (1898-1956). Elias não esconde sua antipatia por ele, considerado artificial e afetado.
A última parte da narrativa, entre 1929 e 1931, trata da gestação de Auto de Fé. É muito interessante (para mim o mais interessante do livro) ver como um conjunto tão variável de influências resultou nesse romance sui generis. Coisas tão diversas como um quadro de Rembrandt, a Capela Sistina, a senhoria de uma das casas onde Elias morou, Cervantes, o homem que lamentava a queima dos arquivos, A Comédia Humana, a fragmentação das noites berlinenses, os desenhos de Grosz se amalgamaram para a dar origem a Die Blendung - o cegamento, que é o título original de Auto de Fé. Mas Auto de Fé, apesar de ser um capítulo da Comédia Humana dos loucos, como o próprio Elias o definiu, é também uma elegia aos livros, é o amor extremo aos livros, algo que Canetti trazia dentro de si. E eu, modestamente, também. Mas isso já é assunto para outro post.
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Rembrandt - Sansão cegado pelos filisteus 1636 |