domingo, 1 de maio de 2022

(Re)lendo Proust

 (Re)lendo Proust

Li "Em busca do Tempo Perdido" em 1993, aos vinte e dois anos. Texto famoso como difícil e que muitos leitores experimentados não conseguem enfrentar, não foi complicado para mim. Não por eu ser especial, nem nada. Sou leitora desde que aprendi a ler. Mas com vinte e dois anos ainda me faltava muita coisa. Sem falar que "Em Busca" traz milhares de referências culturais - música, pintura, arquitetura, filosofia,  literatura  - e em 1993 não existia Internet. Se  eu encontrava o nome de um artista desconhecido, teria de ir à biblioteca da faculdade pesquisar. Logo, perdi a maior parte das referências, que são fundamentais para o texto. 

Creio que a leitura dos sete volumes começou em março e que tenha durado uns sete meses. Rápido demais, penso agora. Mas não li sozinha. Foi a minha primeira e única experiência de leitura conjunta. 

Não lembro como começou, mas eu e o Adriano fazíamos listas dos livros que queríamos ler. Ele era quatro anos mais velho que eu. Pouca coisa, mas em leitura é muito. Foi ele que me falou pela primeira vez de Balzac. Além de ter lido mais, ele tinha livros. Ele era servidor público e tinha dinheiro para os comprar. Imagino que um dia tenhamos decidido ler "Em busca" ao mesmo tempo. Ele comprou, eu peguei meu exemplar na biblioteca do IFCH da UFRGS. E começamos. 

Embora ainda fôssemos colegas na faculdade, não nos víamos todos os dias. Ele trabalhava, tinha namorada, eu era bolsista de pesquisa, fazia mil outras coisas, tinha namorado. Cada um lia em sua casa, na biblioteca. Às vezes líamos juntos, cada qual seu livro, no apartamento dele. Em um mundo sem celular e WhatsApp, usávamos o que havia para coordenar nossa leitura. Eu telefonava para o trabalho dele, ele não tinha telefone em casa. Ele me ligava do orelhão. Às vezes, íamos na casa um do outro e deixávamos um bilhete embaixo da porta. Então nos informávamos sobre até que parte o outro tinha lido. Dependendo, um segurava um pouco a leitura para esperar o outro. 

Estávamos apaixonados pelo livro e por Proust.  Os personagens, os lugares, os trechos nos ocupavam o tempo inteiro. Queríamos saber mais. Sem Internet, livrarias on line e Amazon, pegávamos o que havia na biblioteca. Compramos, em conjunto, a um preço altíssimo para nós, a biografia "Marcel Proust" de George Painter. Lá estão nossos dois nomes a lápis com a data de 10 de julho de 1993. Dessa vez teríamos de dividir a biografia, cada um lendo de uma vez. Houve a exibição de um filme no Centro Municipal de Cultura, baseado no "Em busca", seguido de uma palestra com o Tatata Pimentel, professor de literatura francesa e especialista no tema. Cheguei mais cedo. O filme já havia começado, quando o Adriano chegou. Ele sentou ao meu lado, me deu um beijo no rosto, não era preciso falar nada. Ao final da palestra, fomos falar com o Tatata, creio que foi ele que nos recomendou a biografia do George Painter. "Vocês dois não são jovens demais para ler Proust?", o professor nos perguntou com seu jeito divertido. 

Terminamos o livro. Eu li a biografia, ele leria depois. Havia planos, um tanto grandiosos para a época, de ir à França conhecer os lugares proustianos. Não era nosso único plano de viagem. Havia uma viagem de carro pelos Estados Unidos de costa a costa. O Adriano era apaixonado pela cultura norte-americana - ele que me apresentou a Philip Roth, Raymond Caver, Tom Wolfe, Truman Capote - e dizia que essa viagem descolonizaria a europeia que havia em mim. Como seria isso? Não sabíamos. Tínhamos namorados. O meu, creio que não se importaria que eu viajasse com um homem, mas a dele não iria querer, com certeza. Mas tínhamos todo o tempo do mundo. 

O Adriano morreu no dia 31 de janeiro de 1994. Eu, com meu apego a lembranças e coisas materiais, quis ficar com os exemplares dele da "Busca", mas não consegui. Sei que foram doados para a biblioteca de uma casa do estudante onde ele morou. 

Guardei tudo o que tinha dele, cartões, bilhetes, listas de livros, cartões postais, caderninhos que ele me deu de aniversário, canetas,  em uma caixa, que levei muitos anos para conseguir abrir. Mas a verdadeira caixa, ainda não havia aberto. Tenho todos os exemplares da "Busca", que comprei há algum tempo. Comecei a ler duas vezes nos últimos cinco anos. Mas desistia nas primeiras páginas. 

Ontem, arrumando uns livros, peguei "À sombra das raparigas em flor" e o abri ao acaso. "A imagem de nossa amada, ainda que a julguemos antiga e autêntica, foi muitas vezes retocada por nós. E a cruel recordação não é contemporânea dessa imagem restaurada, mas pertence a outra época; é um dos poucos testemunhos de um passado monstruoso. Mas como esse passado continua a existir, exceto em nós mesmos, por que nos aprouve substituí-lo por um paraíso onde todo mundo se reconciliou, as recordações e as cartas são um aviso da realidade, e com a dor que nos causam devem fazer-nos sentir o quanto nos afastaram dela as loucas esperanças de nosso anelo cotidiano" (PROUST, 2006, p. 248-249). Eu que ainda outro dia estava às voltas com uma carta, mandar ou não mandar, tomei o episódio como um aviso. 

Comecei a ler ontem mesmo e já cheguei à página 80. Será uma leitura diferente da primeira. Com anotações (embora eu tenha algumas anotações antigas), referências, mas fundamentalmente, solitária. Dessa vez, minhas conversas com o Adriano serão mentais e silenciosas, como têm sido desde que ele partiu. Já estou em condições de me reencontrar com ele e com Proust, com a dor e com a beleza do tempo perdido. 

PROUST, Marcel. À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Ed. Globo, 2006. 


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