terça-feira, 16 de agosto de 2011

Tudo o que tenho levo comigo

Tudo o que tenho levo comigo. Herta Müller. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Tradução: Carola Saavedra.

Lido entre 28 de junho e 10 de julho de 2011.

Gosto de descobrir autores novos. Novos aqui têm o significado egoístico de que ainda não li. Até porque é prepotência minha classificar uma autora que ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2009 e é muito conhecida nos países de língua alemã de nova. Mas para mim e no Brasil, Herta Müller é uma autora nova. Tudo o que tenho levo comigo é seu segundo livro traduzido para o português e a tradução é desse ano.
Além da novidade, me interessei pelo livro por ser em alemão - e eu estudo alemão - e por tratar de um tema que me atrai: a União Soviética no século XX.
O ano era 1945 e a Romênia, país natal da escritora, que estivera ao lado dos nazistas até agosto de 1944, estava agora ao lado dos aliados. O acordo do novo governo com os soviéticos previa a deportação de todos os indivíduos entre 17 e 45 anos da minoria alemã para um campo de trabalho na Rússia: já que eram nazistas, agora iriam ajudar na reconstrução da União Soviética.
O personagem que narra em primeira pessoa é Leopold Auberg, homossexual de 17 anos. Ele foi levado da sua cidade natal de Hermannstadt para gulag de Nowo-Gorlowka, na Ucrânia. A ideia de ir para a Rússia até o agradava no início. O homossexualismo era crime na Romênia o o rapaz tinha certeza da rejeição de sua sexualidade pela a família.
A viagem durou 12 dias,  dias de uma certa inconsequência, nos quais os viajantes até desperdiçaram comida. A realidade se apresentou em uma parada, já em território soviético, quando todos tiveram que saltar do trem, baixar as calças e fazer suas necessidades em público e coletivamente: “Talvez naquela noite não eu, mas o horror em mim tenha se tornado adulto de repente. Talvez a unidade só se torne real dessa forma. Pois todos, sem exceção, ao fazer nossas necessidades, dirigíamos nosso rostos automaticamente em direção ao leito do trem. Todos tínhamos a lua nas costas, não tirávamos os olhos da porta aberta do vagão de animais, dependíamos dela como da porta de um quarto. Tínhamos o medo insano de que a porta se fechasse e o trem partisse sem nós”.
A partir daí o narrador descreve o dia a dia no gulag: a fome onipresente, o trabalho escravo, a desumanização, que fez com que com o tempo os prisioneiros perdessem as suas identidades sexuais, a morte dos companheiros.
O campo funcionava como uma cidade. Havia Tur Prikulitsch, o romeno que atuava como preposto dos russos em troca de vantagens. Bea Zakel, amante de Tur pelas mesmas vantagens. Trudi Pelikan, a moça que perdeu os dedos do pé num acidente e foi trabalhar na enfermaria. Konrad Fonn, o acordeonista. Paul Gast, o advogado que comia a sopa de sua esposa até que ela morreu de fome. Oswald Enyeter, o barbeiro, que por sua profissão conseguia sobreviver melhor. Kati-plantão, a alienada mental que passou os cinco anos no campo sem saber onde estava. Dos russos, a únca que merece atenção do narrador é Fenja, a moça feia responsável paor distribuir a ração diária de pão, momento no qual iniciava o grande dilema do dia: seria possível guardar pão para a noite?
Ao final do quarto ano, a situação melhorou. Os prisioneiros passaram a receber salários e mais comida, uma tentativa de encobrir a realidade no retorno.
A única notícia que Leo recebeu de casa foi um cartão postal anunciando o nascimento de um irmão. Ele interpretou isso como um sinal da família de que ele não precisava voltar: havia outro em seu lugar.
Leo retornou então para casa, mas como todos que passam por esse tipo de experiência, não conseguia comunicá-la. Distanciava-se da famíla. Continuava tendo encontros furtivos com homens, mas casou-se com uma moça e mudou-se para Bucareste. Após onze anos, a deixou e mudou-se para a Áustria.
A experiência de Leo Auberg é baseada na do poeta Oskar Pastior. Ele teve diversos encontros com Herta que resultaram em cadernos com anotações. Pretendiam escrever um romance juntos, mas Oskar morreu em 2006, de modo que Herta resolveu escrever o livro sozinha. O tema era importante para a escritora. Sua mãe passou cinco anos em um campo de trabalho na União Soviética e nunca conseguiu falar no assunto.
Marcelo Backes, em artigo no Estado de São Paulo, de 7 de maio de 2011 comentou: “Recentemente, descobriu-se que Oskar Pastior teria espionado outros escritores para a Securitate, um dos quais, Georg Hoprich, acabou se suicidando. Pastior foi chantageado pelo sistema, mas Herta também foi, e ainda assim resistiu. Mircea Dinescu, poeta romeno que pensou sob o mesmo sistema, defendeu Pastior e disse que era bom que ele estivesse morto, não vivenciando seu desmascaramento. Herta Müller se proclamou horrorizada, alegando que se soubesse do fato não teria colaborado com Pastior. Se foi só o acaso que permitiu Tudo o Que Tenho Levo Comigo, nós ganhamos com o acaso mais uma vez...”.
O estilo de Herta é poético e há muitas brincadeiras e jogos de palavras. Talvez o estilo não tenha me agradado, pois é o tipo de texto que só podemos sentir na língua original, embora o trabalho da tradutora seja cuidadoso (e difícil).
E talvez o tema não se preste à poesia (aqui vão me dizer que qualquer tema se presta à poesia). Mas Primo Levi, em É isso um homem? com seu texto direto e tradicional transmitiu a mim muito mais o horror e a singularidade da sua experiência.

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