segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Memórias de uma moça bem comportada

Memórias de uma moça bem comportada. Simone de Beauvoir. Rio de Janeiro: Nova Fonteira,1983. Tradução: Sérgio Milliet.

Lido em setembro de 2011.

Nunca pensei em ler uma biografia de Simone de Beauvoir. Mas duas coincidências me levaram a fazê-lo. Assisti, em agosto, a peça Viver sem Tempos Mortos na qual Fernanda Montenegro apresenta um monólogo a partir de textos das obras e a correspondência de Simone. Gostei muito de algumas passagens, a ponto de pensar como seria bom ter o texto da peça para ler. Algumas semanas depois, fui à biblioteca localizada no clube que frequento. É um biblioteca organizada com doações dos sócios, de modo que há muitos livros antigos. Encontrei o livro e abri na primeira página: “Nasci, às quatro horas da manhã, a 9 de janeiro de 1908, num quarto de móveis laqueados de branco e que dava para o Bulevar Raspali.” Quem resiste a esse início? 
Simone escreveu esse primeiro volume da sua autobiografia (houve diversos outros depois) aos quarenta e oito anos. Ouso dizer que se trata de uma biografia de “formação”. Como nos romances de formação, existe um ponto de partida e um ponto de chegada: esse último é a vida adulta., 
Os primeiros anos são dominados pela família: classe alta, mas não ricos; católicos, o pai , formalmente, a mãe, devota. Simone atribui muito mais influência ao pai do que à mãe em sua personalidade. Ele era um homem culto, gostava de literatura - organizava um caderno com recomendações de livros para Simone - e tinha uma paixão: representar. Simone comenta que ele não desprezaria os preconceitos do seu meio para abraçar uma carreira de ator. Desse modo, se realizava participando de montagens amadoras na casa dos amigos. A mãe era uma católica severa e devota. Simone dá  a impressão de viver um clima de animosidade com Françoise desde muito pequena. Ela atribui às diferenças entre seus pais a origem de seus pendores intelectuais: “(...)o individualismo de papai e sua ética profana contrastavam com a severa moral tradicionalista que mamãe me ensinava. Esse desequilíbrio que me impelia à contestação explica em grande parte que tenha me tornado uma intelectual.”
A religião católica ocupava um local importante na vida de Simone. Ela era devota e participava de todos os rituais: comunhão, novenas, retiros. Chegou a formular um plano secreto de se tornar freira. Mas um sermão do padre de sua igreja  que contava que uma menina que lera livros inadequados, ficou confusa e se suicidou perturbou sua fé.  Mais tarde ela relata a naturalidade da perda de sua fé. A Simone de quarenta e oito anos que escreveu, filosofou a respeito, mas a garota de quinze um dia deu-se conta de que deus não existia. 
A partir desse ponto, a vida de Simone vai se diferenciando da das mulheres de sua geração. Mas não sem percalços. O principal talvez tenha sido a paixão pelo primo Jacques e o sonho acalentado por anos de casar com ele. Aqui a Simone madura hesita em revelar que tenha cultivado tanto esse sonho. Mas a recorrência com que Jacques aparece no relato e o final demonstram que por pouco um dos casais mais famosos do século XX não teria existido. Na última parte do livro Simone declara querer tirar a limpo suas relações com Jacques. Quando ainda estava em um estranho namoro e após uma viagem de Jacques para a Argélia, Simone foi surpreendida pela notícia de que ele havia ficado noivo de uma moça que mal conhecia. Então ela conta que o casamento não deu certo e  que Jacques passou por uma enorme decadência financeira. Encontrou-o vinte anos depois, envelhecido, doente em função do alcoolismo, vestido como um mendigo e vivendo de favores. Ela nos conta que faleceu com quarenta e seis anos. 
Tudo bem que o leitor da biografia precisava saber do namoro de Simone com o primo e do desfecho. Mas a narrativa parece mais uma desforra: viram, ele casou com outra (não me quis) e vejam o que lhe aconteceu?! As feministas são mulheres como todas as outras. 
Teria muito para contar. A biografia é rica, densa. Há a decisão de estudar filosofia, a amiga Zaza, que faleceu aos vinte anos, uma incursão de nossa moça bem comportada pela vida boêmia na Paris dos anos 1920 e, bem no final, o encontro com Jean-Paul Sartre, que será desenvolvido no próximo volume. 
Gostei muito da leitura, pois me identifiquei com alguns pontos. Eu também tive uma educação católica e pensei em ser freira. E, por volta dos doze ou treze anos, deixei de acreditar em deus de uma forma natural. Não li nada, ninguém me falou nada, só passei a sentir que aquilo não fazia sentido. Eu também construí a minha identidade através da leitura e até hoje tenho uma paixão feroz por aprender. Muito do que ela falou sobre isso tem a ver comigo.

4 comentários:

  1. Belo post, gostei. Você já terminou a leitura?
    Eu estive por algum tempo procurando por este livro e, ontem, por sorte, descobri que um sebo a poucas quadras da minha casa, aqui em Porto Alegre, tem este livro. Já liguei e reservei :)
    Agora é começar a leitura.

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    1. Obrigada, Leonardo. Eu terminei de ler. Gostei muito, não só da parte propriamente biográfica, mas também como testemunho da época em que ela viveu. Também sou de Porto Alegre. Obrigada pelo comentário e um abraço. Cíntia.

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  2. Maravilhosa a sua analise!!
    Nao consigo encontra-lo aqui em sebos, sabe se consigo por meio de Downloads?
    Grande beijo.

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  3. Olá, Beatriz. Obrigada. Creio que tu encontras na Estante Virtual, na internet.

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