O mal que ronda a terra: um tratado sobre as insatisfações do presente. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. Tradução: Celso Nogueira.
Conheci Tony Judt quando encontrei em uma livraria a obra Reflexões sobre um século esquecido. É um livro que reproduz resenhas publicadas, em geral, na New York Rewiew of Books. É estranho ler resenhas longas de livros não lidos, pois não lera a maioria dos livros resenhados. Mas as obras eram quase pretextos para revisões excelentes de temas importantes do século XX: a guerra fria, o conflito entre Israel e Palestina, o leste europeu depois do fim do comunismo, a política nos Estados Unidos e na Europa, sem falar nas biografias de intelectuais que marcaram o século passado. Me apaixonei pela clareza do texto de Judt. E, claro, fui buscar outras obras.
Tenho lido muitos textos sobre o mundo depois da guerra fria. E percebo uma certa convergência entre autores que adotam perspectivas teóricas muito diversas. Erik Hobsbawm, Francis Fukuyama, Immanuel Wallerstein, Robert Gilpin consideram que é preciso fazer alguma coisa para controlar os efeitos deletérios da globalização.
Pois, Tony Judt, em O mal que ronda a terra, enfrenta justamente essa questão.
Judt inicia chamando a atenção para o fato de que "do final do século XIX até os anos 1970, as sociedades ocidentais avançadas estavam todas se tornando menos desiguais". Mas "no decorrer dos últimos trinta anos nós jogamos tudo isso fora." Apesar do aumento bruto da riqueza mundial, a desigualdade, ou seja, a distância entre ricos e pobres, aumenta mesmo nos países mais ricos. O autor destaca que a aceitação passiva dessa realidade, como se fosse natural, bem como o caráter materialista e egoísta da vida humana contemporânea datam da década de 1980.
A partir desse ponto, Judt passa a fazer uma revisão histórica para compreender como se chegou a esse ponto. Foram os efeitos da Grande Depressão e seus desdobramentos sinistros que fizeram com que conservadores anti-comunistas como Franklin Roosevelt, Charles de Gaulle e Clement Atlee aceitassem e patrocinassem a intervenção do estado na economia. "Em parte, por que todos temiam as implicações de um retorno aos horrores de um passado recente, e se mostravam dispostos a restringir a liberdade do mercado em nome do interesse público".
O economista que se dedicou a esse desafio foi John Maynard Keynes. Keynes viveu o final da pax britânica e viu o mundo em que vivia (nasceu em 1883) desmoronar, levando vidas, países, riqueza material, ideias em que se baseavam sua cultura e classe social. Ele começou a se dedicar ao estudo da incerteza. E percebeu que um dos maiores atrativos do nazismo e do fascismo eram a autoridade centralizada e o planejamento. Muitos que jamais apoiariam Hitler, o festejaram quando reduziu o desemprego na Alemanha. A grande questão para os políticos do pós segunda guerra era: como evitar uma nova grande depressão e o apelo ao autoritarismo que esse tipo de situação gera? Como evitar a atração do socialismo soviético?
O estado de bem estar social ou de seguridade social foi patrocinado por políticos de diversas orientações partidárias nos diversos países da Europa e dos Estados Unidos. A política do universalismo, que ofereceu à classe média o mesmo acesso a serviços públicos destinados aos pobres, comprometeu-as com as instituições liberais. Foram as classes médias desempregadas e empobrecidas que primeiro apoiaram o fascismo. Elas se tranformaram no esteio da democracia liberal (Francis Fukuyama em texto denominado The Future of History se pergunta se a democracia liberal sobreviverá com o declínio da classe média causado pela globalização).
Mas o tempo passou. E a geraçào que entrou na universidade na década de 1960 só conhecia os horrores do entre guerras de ouvir falar. Eles "só conheceram um mundo de chances maiores, serviços médicos e educacionais generosos, perspectivas otimistas de mobilidade social e - acima de tudo, talvez - uma sensação de segurança indefinível, mas onipresente." Para Judt, o conflito de gerações na década de 1960 transcendeu as questões de classe e nacionalidade. Em função da televisão, dos rádios portáteis e da internacionalização da cultura popular uma grande brecha se abriu entre a geração dos anos 1960 e a geração dos seus pais. A palavra de ordem da época era o individualismo: "a afirmação da exigência pessoal de liberdade privada maximizada e irrestrita para exprimir desejos autônomos, que fossem respeitados e institucionalizados pela sociedade como um todo". Os objetivos comuns da geração anterior foram substituídos por objetivos privados. "Na verdade, muitos radicais dos anos 1960 eram defensores entusiasmados de escolhas impostas, quando elas afetavam povos distantes que pouco conheciam. Em retrospecto, chama a atenção a imensa quantidade de pessoas, na Europa e nos Estados Unidos, que proclamavam seu entusiasmo pela revolução cultural de Mao Tse Tung, ditatorial e unificadora, enquanto definiam a reforma cultural doméstica como a maximização da autonomia e da iniciativa privada".
O autor julga que o marxismo, que era mais retórico do que real, encobria uma postura egoísta da esquerda nessa época: o movimento estudantil estava mais preocupado com o horário do fechamento do portão das universiades e com usar roupas menos formais nas aulas do que com as condições sociais dos trabalhadores.
Judt esclarece de onde vêm as ideias econômicas que prosperam no mundo atual. Os economistas da Universidade de Chicago as retiraram dos textos de economistas da Europa central: Friedrich Hayek, Joseph Shumpeter, Karl Popper e Peter Drucker, entre outros. Esse teóricos se dedicaram a responder a mesma questão de Keynes - como a Europa liberal afundou, dando lugar ao fascismo. Mas deram uma resposta bastante diferente: o único caminho para defender o liberalismo e a sociedade aberta era manter o estado fora da vida econômica. Eles previram o fracasso do estado de bem estar social e, por muito tempo, seus pares (todos emigraram para o ocidente) julgavam que haviam cometido um erro de cálculo. Foi quando o estado social começou a enfrentar dificuldades que eles obtiveram uma plateia.
Na sequência, Judt analisa como essa geração, ao chegar ao poder na década de 1980, desmontou o estado de bem estar social. Fala da privatição descontrolada e usa como exemplo o sistema ferroviário inglês que foi privatizado na era Thatcher. O resutado é um sistema caro, ineficiente, que tem que ser subsidiado pelo Estado e é o mais inseguro da Europa ocidental. Aqui ele levanta a questão dos custos sociais, culturais e ambientais que devem ser levados em conta, juntamente com os econômicos.
O autor considera que uma das piores consequências da demolição do serviço público é a crescente dificuldade de compreender o que temos em comum com as outras pessoas. Por isso, a instituição ícone de nossa época é o condomínio fechado, "símbolo do reconhecimento descarado do desejo de se isolar de outros membros da sociedade, assim como reconhecimento formal da incapacidade ou omissão do Estado (ou do município) em impor sua autoridade sobre um espaço público contínuo". Judt julga que essa perda do senso de interesses em comum não é restrita a propietários ricos: nos Estados Unidos estudantes judeus ou afro-americanos muitas vezes optam por morar em dormitórios exclusivos, comer sepradamente e se matricular em cursos étnicos.
O que fazer diante desse quadro? Tony Judt diz que não podemos esquecer o passado, viver como se o século XX não tivesse existido. Ele defende abertamente o fortalecimento do papel do Estado, ainda que reconheça a ineficiência do mesmo em diversas esferas. E diz que temos que começar a falar sobre todas essas coisas. Por isso, escreveu o livro.
O mal que ronda a terra foi publicado em fevereiro de 2010. Tony Judt faleceu precocemente em agosto do mesmo ano. É uma pena não poder mais contar com seu texto lúcido e coerente. Felizmente, ele deixou uma vasta obra e, principalmente, ideias.
Feliz Ano Novo!
Feliz 2012. Boa sorte com o Balzac, e muitos livros mais, muitas felicidades.
ResponderExcluirAbraços
Eu ouvia agora alguns quartetos do Shostakovich, de modo que sua pergunta "Qual seu primeiro nome?" me pareceu, nesta transição entre a música e a vida, quase sobrenatural. Mas, é claro que não; o A. é de Alexandre, e é assim mesmo, bobo e feio.
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