sábado, 13 de junho de 2020

Sarrasine

Sarrasine (setembro de 1830)
Volume IX: Estudos de Costumes - Cenas da Vida Parisiense

Personagens: narrador, senhora de Rochefide (Beatriz), conde de Lanty, condessa de Lanty, Marianina, Filipo, Ernesto João Sarrasine, Edme Bouchardon (1698-1762), Zambinella, Vitgliani, cardeal Cicognara, príncipe Chigi. 
A história ocorre no período em que foi escrita, 1830, mas remete a outra história iniciada em 1758.


Sarrasine está longe de ser o melhor de Balzac. A novela ganhou notoriedade em 1970, quando o crítico literário Roland Barthes publicou o ensaio S/Z no qual faz uma análise pós-estruturalista de Sarrasine. 
Na história, encontramos o narrador, no período da Restauração (o ano não está identificado) em uma festa, observando uma desoladora paisagem de inverno através da janela. Ao voltar-se para o salão, percebe o contraste entre os dois ambientes: 
"Tinha, assim, à minha direita, a sombria e silenciosa imagem da morte; à esquerda, comedidas bacanais da vida; de um lado, a natureza fria, tristonha, de luto; do outro os homens em festa". Sabemos que será uma narrativa marcada pela ambiguidade. 
Descobrimos estar na casa dos Lanty, uma família sui generis. Muito ricos e de admirável cultura - "Todos os seus membros falavam italiano, francês, espanhol, inglês e alemão com tal perfeição que faziam supor se houvessem demorado longos anos entre esses diversos povos" - não  se conhecia a origem de tamanha prosperidade. 
A beleza das mulheres, a condessa de Lanty e sua filha adolescente Marianina, era partilhada pelo filho Filipo ("a imagem viva de Antinoo"), mas não pelo conde que "era baixo, feio e magro, sombrio como um espanhol e fastidioso como um banqueiro". E havia um homem, figura misteriosa, que  aparecera pela primeira vez no salão durante um concerto, atraído pela bela voz de Marianina. Ele era tratado com todo o carinho e deferência pela família, embora ninguém esclarecesse qual era a relação entre eles. 
Na noite em questão, o velho apareceu justamente quando Marianina cantava uma ária da ópera Tancredi. Estava vestido como os homens de posses do século XVIII: calções de seda, rendas, peruca e maquiagem. E seu físico era frágil e decrépito: "Sua magreza excessiva,  a delicadeza de seus membros provavam que suas proporções haviam sido sempre esbeltas". 
A figura assustou a senhora de Rochefide, beldade que acompanhava na festa o narrador. O casal se retirou para uma quarto contíguo ao salão e observou quando Marianina passou com o exótico parente e o encaminhou para o interior da casa. A menina, ao se despedir, recebeu do velho um dos anéis que ele trazia no dedo. No quarto havia uma pintura  de Joseph-Marie Vien representando Adônis estendido sobre uma pele de leão. Beatriz ficou fascinada pela perfeição da imagem e soube pelo narrador que o artista teve por modelo a estátua de uma mulher, talvez um parente da senhora de Lanty. Prometeu, então, contar a história misteriosa à sua acompanhante em sua casa, no dia seguinte, numa negociação que deixa implícita a troca da narrativa por uma noite de amor. 
No dia seguinte, ao pé da amada, o narrador contou a história de João Sarrasine, filho de uma advogado de Besançon, que decepcionou o pai se tornando escultor. Talentoso e discípulo de Edmé Bouchardon, aos 22 anos ganhou um prêmio e foi estudar em Roma. O ano era 1758. Lá, no Teatro Argentina, conheceu uma cantora lírica belíssima chamada Zambinella. Nela o narrador "via reunidas, bem vivas e delicadas, as raras proporções do corpo feminino tão ardentemente desejadas e das quais o escultor é , ao mesmo tempo, o juiz mais severo e mais apaixonado". Foi tomado de amores pela jovem, que passou a cortejar. Passou a desenhá-la e a esculpiu em argila. Dias depois, foi convidado pelo pessoal do teatro a finalmente conhecê-la pessoalmente. O encontro foi em uma alegre ceia com os artistas. O escultor estava confuso, pois a moça, embora estivesse em um ambiente bastante liberal quanto aos costumes, se comportava de forma recatada. No dia seguinte, o grupo foi fazer uma excursão aos arredores de Roma. Zambinella estava ainda mais arredia, e ao ouvir a declaração de amor de Sarrasine, disse não poder ser amada e que logo ela a odiaria. À reiteração do amor de Sarrasine, Zambinella retrucou: "E se eu não fosse mulher?".
No dia seguinte, o escultor preparou-se para raptar a amada que estaria em uma festa. Lá a encontrou cantando vestida de homem. Ao indagar a um ouvinte o motivo da indumentária, veio a verdade:
"De onde vem cavalheiro? Desde quando uma mulher subiu aos palcos em Roma? Não sabe, por acaso, por que criaturas são desempenhados os papéis femininos nos Estados Pontifícios?" 
Chocado, Sarrasine conseguiu que os amigos levassem Zambinella até ele. Com medo de ser morta (morto, Balzac passa a narrar agora no masculino), chorando, ele declara "Só consenti a enganá-lo para satisfazer aos camaradas, que desejavam rir". O escultor, furioso, foi interrompido por homens do cardeal Cicognara, protetor de Zambinella, que o mataram.
Ingenuamente, Beatriz perguntou o que tinha essa história a ver com os Lanty. Ora, Zambinella era o velho parente e sua carreira bem sucedida de cantora era a origem da fortuna da família. A estátua feita por Sarrasine foi modelo para o Adônis. Beatriz ficou desapontada e mandou o narrador embora. Ele não teve o esperado prêmio.
Ao pesquisar um pouco sobre Sarrasine, encontrei muito material em função do já mencionado ensaio de Roland Barthes. Encontrei uma parte inicial do ensaio. Achei chato e pouco elucidativo do texto. Me defendo aqui com a opinião de Paulo Rónai no texto introdutório ao conto de Balzac:
"O resultado de sua investigação [de Barthes] é uma construção mental em que utiliza os materiais mais heterogêneos, às vezes sem ligação nenhuma com a obra escolhida como pretexto. [É] um exemplo típico de certa espécie de crítica universitária extremamente arbitrária e vazada numa linguagem excessivamente artificial". 
No texto de introdução, Rónai nos diz  que o narrador é um personagem da Comédia Humana que Balzac esqueceu de nomear. Mas em um texto de 1972, o próprio Rónai aponta para a onisciência do autor. Como ele saberia o conteúdo das conversas de Zambinella com Sarrasine, que ele reproduz? Mas será que quem conta a história de Sarrasine à marquesa o mesmo que dialoga com ela? Não fica claro. 
Há também o fato do narrador não ser confiável. Ele diz, quando está na festa, que o velho/Zambinella é surdo. Mas diz também que ele foi à sala atraído pela voz de Marianina. Assim, ficamos em dúvida sobre a veracidade da história. 
De resto, a história é um tanto artificial. A riqueza e a beleza dos Lanty, o amor louco e descontrolado, à primeira vista, de Sarrasine por Zambinella, o fato de ele não perceber que ela não é uma mulher, depois de tantas indicações, a ideia do rapto, tudo classifica Sarrasine como uma obra menor. 
Deixo aqui um link sobre os castrati, os meninos que eram castrados para preservar a voz para o canto. A autora Yvonne Noble nos ensina que os castrati, que apareceram no ocidente no século XVI, estavam inseridos numa cultura na qual capacidade sexual não era algo tão valorizado. Afinal, era normal as famílias dedicarem os filhos e filhas à Igreja e ao, pelo menos oficialmente, celibato. E que os castrati vinham, via de regra, de famílias muito pobres. Com uma boa voz, um rapaz poderia ter e proporcionar à família uma vida melhor. E exatamente o caso de Zambinella. Noble também afirma que Balzac (ou seu narrador não confiável) estava pouco informado sobre o assunto. Havia castrati e papéis para eles na época em que Balzac escrevia. Somente em 1870 a castração foi proibida dos Estados Papais e havia um coral deles na Capela Sistina até 1898. 
O desconhecimento de Balzac ocorre, pois os castrati foram mais cedo banidos na França do que em outros países. 
Enfim, Sarrasine não é um grande Balzac, mas é Balzac.

A imagem é o famoso castrato Carlo Scalzi em quadro de Joseph Filipart (1737).
A matéria citada de Paulo Rónai é do Jornal do Brasil. Dossier. Balzac Pretexto e Texto. 2 de dezembro de 1972. Tem digitalizada na hemeroteca da Biblioteca Nacional. 



Nenhum comentário:

Postar um comentário