
Li Memórias de um Sargento de Milícias de Manuel Antônio de Almeida quando estava no segundo grau (atual ensino médio). Lembro ter gostado do livro e o ter achado muito engraçado. Mas da leitura, feita numa época em que lia muita literatura brasileira, ficou uma tênue impressão - quase não lembrava da história. Há pouco, graças aos audiolivros e aos intermináveis engarrafamentos de Porto Alegre, "reli" Memórias.
O livro, em capítulos curtos, conta a vida de Leonardo que se passa "no tempo do rei". Como só houve um rei no Brasil, sabemos que trata-se do periodo joanino - entre 1808 e 1822. Leonardo era filho do meirinho português Leonardo Pataca e da saloia Maria. Numa viagem de navio para o Brasil, eles se conheceram. Depois de trocarem uma pisadela e um beliscão, Maria começou a sentir uns incômodos e deu a luz ao protagonista da história. Poucos anos depois, a inconstante Maria fugiu com o capitão de um navio e Leonardo Pataca deixou o rebento aos cuidados do compadre, um barbeiro que era padrinho do menino. Com a ajuda da comadre, parteira, o compadre passou a zelar pelo futuro do garoto. Queria fazer dele padre, mas o rapaz demostrava pouca inclinação pela batina e por tudo mais que tinha a ver com trabalho e dever. Cresceu e tornou-se um perfeito vadio: "Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queriafazer artista metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma destas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo". Leonardo acabou se apaixonando pela sobrinha de dona Maria, senhora de posses e amiga da comadre, Luisinha, moça pouco graciosa, mas com uma herança para compensar. Mas um ardiloso concorrente, José Manuel, casou com a rapariga. Nessa altura, Leonardo já não estava mais ligando: estava apaixonado por Vidinha, uma mulata bonita e muito namoradeira. Leonardo acabou tornando-se alvo da perseguição do chefe de polícia, o major Vidigal. Depois de muitas peripécias, foi preso pelo major e obrigado a tornar-se soldado. Pregou uma peça no major e foi condenado ao açoite. A comadre e dona Maria procuraram então Maria Regalada, uma senhora que fora amante do major. Com a promessa de Maria Regalada de reatar o romance, Vidigal liberou Leonardo da chibata e ainda o fez sargento de milícias. No mesmo dia, José Manuel teve um ataque e faleceu, deixando Luisinha viúva. Ela e Leonardo se casaram.
A história é uma delícia. Além disso, descrição minuciosa dos costumes da época faz de Memórias de um Sargento de Milícias um livro muito interessante e muito útil para os historiadores. Até porque os personagens situam-se numa camada social pouco explorada: as camadas médias livres. Praticamente não há escravos na história e a única pessoa de classe mais elevada é dona Maria. O resto são barbeiros, parteiras, soldados, padres.
Sabemos que há uma discussão tradicional sobre a classificação literária de Memórias de um Sargento de Milícias. Ele foi escrito no período romântico, mas está fora de todos os parâmetros do romantismo. Foi rotulado por alguns como realismo avant la lettre. mas não tem nada de realista. Também foi nomeado romance de costumes ou picaresco. Antonio Candido definiu-o como romance da maladrangem. Para quem não vai fazer vestibular, essa discussão não tem a menor importância. Se quisermos uma definição, diríamos que é um romance antirromântico, de costumes e da malandragem. Almeida zomba do romantismo. A infidelidade (Maria saloia, a cigana) está presente o tempo todo e o amor sempre é maior se o amado tem uma herança. O final feliz é relativizado por um último parágrafo pouco promissor:
"Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto-final". Depois do casamento, vem a morte dos entes queridos e a vida real, cheia de dissabores. De costumes, não há dúvida. Almeida delicia o leitor narrando procissões, encontros sociais, práticas de quiromancia, com uma riqueza de detalhes que torna-se impressionante pelo fato dele não ter vivido na época em questão (nasceu em 1831 e faleceu precocemente em 1861, em um naufrágio). Com respeito à malandragem, basta dizer que o malandro-mor do Rio de Janeiro tornou-se um agente da lei pelo fato da autoridade máxima da cidade, o major Vidigal, ter feito um trato com sua amante. A ética na narrativa é a do "jeitinho", do compadrismo, da esperteza. O correto compadre, que com a partida de Maria, ficou com o Leonardo e assumiu sua educação - algo nobre e desprendido -, no passado, "arranjou-se". Ele trabalhava em um navio e foi encarregado pelo capitão, moribundo, de entregar uma grande quantia à filha que ficaria orfã. O compadre embolsou o dinheiro sem o menor remorso: "arranjei-me".
Reler Memórias depois de tantos anos foi um prazer. Um prazer diferente do que tive quando era adolescente. O que é bom deve ser lido e relido.
O livro, em capítulos curtos, conta a vida de Leonardo que se passa "no tempo do rei". Como só houve um rei no Brasil, sabemos que trata-se do periodo joanino - entre 1808 e 1822. Leonardo era filho do meirinho português Leonardo Pataca e da saloia Maria. Numa viagem de navio para o Brasil, eles se conheceram. Depois de trocarem uma pisadela e um beliscão, Maria começou a sentir uns incômodos e deu a luz ao protagonista da história. Poucos anos depois, a inconstante Maria fugiu com o capitão de um navio e Leonardo Pataca deixou o rebento aos cuidados do compadre, um barbeiro que era padrinho do menino. Com a ajuda da comadre, parteira, o compadre passou a zelar pelo futuro do garoto. Queria fazer dele padre, mas o rapaz demostrava pouca inclinação pela batina e por tudo mais que tinha a ver com trabalho e dever. Cresceu e tornou-se um perfeito vadio: "Como sempre acontece a quem tem muito onde escolher, o pequeno, a quem o padrinho queria fazer clérigo mandando-o a Coimbra, a quem a madrinha queriafazer artista metendo-o na Conceição, a quem D. Maria queria fazer rábula arranjando-o em algum cartório, e a quem enfim cada conhecido ou amigo queria dar um destino que julgava mais conveniente às inclinações que nele descobria, o pequeno, dizemos, tendo tantas coisas boas, escolheu a pior possível: nem foi para Coimbra, nem para a Conceição, nem para cartório algum; não fez nenhuma destas coisas, nem também outra qualquer: constituiu-se um completo vadio, vadio-mestre, vadio-tipo". Leonardo acabou se apaixonando pela sobrinha de dona Maria, senhora de posses e amiga da comadre, Luisinha, moça pouco graciosa, mas com uma herança para compensar. Mas um ardiloso concorrente, José Manuel, casou com a rapariga. Nessa altura, Leonardo já não estava mais ligando: estava apaixonado por Vidinha, uma mulata bonita e muito namoradeira. Leonardo acabou tornando-se alvo da perseguição do chefe de polícia, o major Vidigal. Depois de muitas peripécias, foi preso pelo major e obrigado a tornar-se soldado. Pregou uma peça no major e foi condenado ao açoite. A comadre e dona Maria procuraram então Maria Regalada, uma senhora que fora amante do major. Com a promessa de Maria Regalada de reatar o romance, Vidigal liberou Leonardo da chibata e ainda o fez sargento de milícias. No mesmo dia, José Manuel teve um ataque e faleceu, deixando Luisinha viúva. Ela e Leonardo se casaram.
A história é uma delícia. Além disso, descrição minuciosa dos costumes da época faz de Memórias de um Sargento de Milícias um livro muito interessante e muito útil para os historiadores. Até porque os personagens situam-se numa camada social pouco explorada: as camadas médias livres. Praticamente não há escravos na história e a única pessoa de classe mais elevada é dona Maria. O resto são barbeiros, parteiras, soldados, padres.
Sabemos que há uma discussão tradicional sobre a classificação literária de Memórias de um Sargento de Milícias. Ele foi escrito no período romântico, mas está fora de todos os parâmetros do romantismo. Foi rotulado por alguns como realismo avant la lettre. mas não tem nada de realista. Também foi nomeado romance de costumes ou picaresco. Antonio Candido definiu-o como romance da maladrangem. Para quem não vai fazer vestibular, essa discussão não tem a menor importância. Se quisermos uma definição, diríamos que é um romance antirromântico, de costumes e da malandragem. Almeida zomba do romantismo. A infidelidade (Maria saloia, a cigana) está presente o tempo todo e o amor sempre é maior se o amado tem uma herança. O final feliz é relativizado por um último parágrafo pouco promissor:
"Daqui em diante aparece o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo-Pataca, e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto-final". Depois do casamento, vem a morte dos entes queridos e a vida real, cheia de dissabores. De costumes, não há dúvida. Almeida delicia o leitor narrando procissões, encontros sociais, práticas de quiromancia, com uma riqueza de detalhes que torna-se impressionante pelo fato dele não ter vivido na época em questão (nasceu em 1831 e faleceu precocemente em 1861, em um naufrágio). Com respeito à malandragem, basta dizer que o malandro-mor do Rio de Janeiro tornou-se um agente da lei pelo fato da autoridade máxima da cidade, o major Vidigal, ter feito um trato com sua amante. A ética na narrativa é a do "jeitinho", do compadrismo, da esperteza. O correto compadre, que com a partida de Maria, ficou com o Leonardo e assumiu sua educação - algo nobre e desprendido -, no passado, "arranjou-se". Ele trabalhava em um navio e foi encarregado pelo capitão, moribundo, de entregar uma grande quantia à filha que ficaria orfã. O compadre embolsou o dinheiro sem o menor remorso: "arranjei-me".
Reler Memórias depois de tantos anos foi um prazer. Um prazer diferente do que tive quando era adolescente. O que é bom deve ser lido e relido.
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