segunda-feira, 4 de abril de 2011

Dentro da Baleia e outros ensaios


Lido entre 3 de dezembro de 2010 e 1º de abril de 2011.

Estou convencida de que George Orwell foi uma das pessoas mais inteligentes que já viveu sobre a terra e de que muito está perdendo que conhece apenas a Revolução dos Bichos e 1984. Tudo o que ele escreveu merece ser lido.
Dentro da Baleia e outros ensaios é uma preciosidade: é um exemplar característico do gênero ensaio; e sua riqueza de conteúdo justifica três meses para cerca de 220 páginas.
Na primeira parte da coletânea - organizada por Daniel Piza - há quatro ensaios que versam sobre a atividade de escritor, sua experiência como resenhista profissional, a época em que trabalhou em uma livraria e sobre o que ele denomina “bons livros ruins”, ou seja, livros sem pretensões literárias, mas que sobrevivem ao tempo.
A segunda parte, A Memória na Política, nos brinda com alguns clássicos do denominado jornalismo literário. Em Um enforcamento, Orwell narra uma execução por ele presenciada na Birmânia. Um texto que vale mil manifestos contra a pena de morte: “O cadafalso ficava a uns cinquenta metros. Observei as costas desnudas e morenas do prisioneiro, que caminhava na frente. Andava desajeitadamente com os braços amarrados, mas com bastante firmeza, com aquele modo bamboleado de andar dos indianos, que nunca endireitam os joelhos. A cada passo os músculos deslizavam de volta ao lugar, os cachos de cabelo sobre o couro cabeludo subiam e desciam numa dança, os pés se imprimiam no cascalho molhado. E, uma vez, apesar dos homens que lhe agarravam cada ombro, pisou ligeiramente de lado para desviar de uma poça d´água no caminho. É curioso, mas até aquele momento eu jamais me dera conta do que significava matar um homem saudável e consciente. Quando vi o prisioneiro pisar de lado para desviar da poça d´água, percebi o mistério, a injustiça execrável de interromper uma vida no auge. Aquele homem não estava agonizando, estava tão vivo quanto nós. Todos os órgãos de seu corpo funcionavam - os intestinos digeriam o alimento, a pele se renovava, as unhas cresciam, tecidos se formavam -, todos trabalhavam juntos numa solene sandice. (...). Ele e nós éramos um grupo de homens caminhando juntos, vendo, ouvindo, sentindo, percebendo o mesmo mundo; e em dois minutos, com um estalo súbito, um de nós partiria - uma mente a menos, um mundo a menos”.
Em O abate de um elefante, Orwell conta um espisódio que ocorreu na Birmânia quando ele era policial, segundo ele a única vez na vida em que fora importante o suficiente para ser detestado por um grande número de pessoas. Um elefante descontrolado matara um homem e estava destruindo casas. Ele teve de ir até lá e, contra a sua vontade, incentivado e cobrado pela turba, teve de abater o animal, que, numa enorme tortura, demorou muito para morrer. “Um dia, aconteceu uma coisa que, de maneira indireta, foi esclarecedora. Um incidente insignificante, mas que me deu uma ideia melhor da verdadeira natureza do imperialismo - dos verdadeiros motivos pelos quais os governos despóticos agem”. Depois do abate, houve discussões sobre se fora correto ou não matar o elefante. “Muitas vezes me perguntei se alguém percebeu que fiz o que fiz unicamente para evitar parecer um bobo”. Eis a verdadeira natureza do imperialismo.
Como morrem os pobres é um relato - de leitura obrigatória para qualquer profissional da área médica - sobre o período em que Orwell esteve internado em um hospital em Paris em 1929.
Em Reflexões sobrte Gandhi, Orwell vai na contramão do que se escrevia na época sobre o indiano. Gandhi foi assassinado em janeiro de 1948 e o ensaio foi publicado alguns meses depois. Orwell desafia o senso comum apontando para a vaidade do célebre indiano. Ainda destaca o fundo eminentemente anti-humanista de suas doutrinas: “Anarquistas e pacifistas, em especial, reivindicam-no para si, observando apenas que ele resistia ao centralismo do Estado, porém ignorando a tendência espiritual e anti-humanista de suas doutrinas. Mas penso que devemos compreender que os ensinamentos de Gandhi não estão de acordo com a crença de que o Homem é a medida de todas as coisas e de que nossa tarefa é tornar a vida digna de ser vivida nesse mundo que temos”.
Dentro da Baleia é um longo ensaio sobre o livro Trópico de Câncer de Henry Miller. Nele Orwell discorre sobre um tema caro à sua geração: a influência da política na literatura, tópico que perpassa outros de seus ensaios. Orwell dá-se conta, aqui e também em Escritores e Leviatã, da terceira parte da coletânea, de que criatividade exclui qualquer ortodoxia ou controle pelo Estado: “Qualquer marxista pode demonstrar com a maior facilidade que a liberdade ´burguesa` de pensamento é uma ilusão, mas quando terminar a demonstração restará o fato psicológico de que sem essa liberdade ´burguesa` a capacidade cirativa seca. No futuro poderá surgir uma literatura totalitária, mas será bem diferente de qualquer coisa que possamos imaginar agora. A litaratura como a conhecemos é algo individual, que exige honestidade mental e um mínimo de censura”.
A terceira parte da coletânea denomina-se A política na literatura e traz textos sobre Wells, Jonathan Swift, Mark Twain e Tolstoi. Em Lear, Tolstoi e o Bobo, Orwell ataca um panfleto escrito por Tolstoi no fim da vida no qual o russo critica duramente Shakepeare, afirmando não compreender a notoriedade do bardo inglês. Orwell, em um texto notável, mostra por que Tolstoi pensava assim, por que ele estava errado e toca na questão mais difícil para quem gosta de boa literatura: por que o que é bom é bom?
“Como disse antes, não podemos responder ao panfleto de Tolstoi, ao menos a suas avaliações principais. Não existem argumentos com os quais possamos defender um poema. Ele se defende ao sobreviver, ou é indefensável. E se esse teste tiver validade, penso que o veredicto no caso de Shakespeare deve se ´inocente`. (...) Tolstoi foi talvez o literato mais admirado de sua época, e com certeza não foi o menos competente escritor de panfletos. Concentrou todas as suas forças na denúncia contra Shakespeare (...). E qual foi o resultado? Quarenta anos depois, Shakespeare continua lá, nem um pouco atingido, e da tentativa de demoli-lo nada resta exceto as páginas amareladas de um folheto qu equase ninguém leu e que seria totalmente esquecido se Tolstoi não tivesse sido o autor de Guerra e Paz e Ana Karenina".
Leitura obrigatória para quem gosta de literatura e política. Para mim, leitura obrigatória.

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