
Personagens: doutor Rouget, João-Jacques Rouget, Ágata Rouget, Bridau, Felipe Bridau, José Bridau, senhora Descoings (tia de Ágata), Florentina, Giroudeau, Maximiliana Hochon, senhor Hochon, Maxêncio Gilet, Francisco Hochon, Baruch Hochon, Fario, Flora Brazier, Fanchette, Horácio Bianchon, Bixiou.
Começo a falar sobre Um Conchego de Solteirão a me repetir. Se Balzac houvesse apenas produzido esse romance, ele já estaria entre os melhores. Temos aqui um romance em duas partes com núcleos diversos, tanto que Balzac mudou seu nome algumas vezes (pensou em A Gapuiadora e Os Dois Irmãos, mas optou por Um Conchego de Solteirão).
A primeira parte discorre sobre a vida e o caráter dos irmãos Felipe e José Bridau. Felipe e José eram filhos de Ágata Rouget. Ágata e seu irmão, João-Jacques, eram filhos do doutor Rouget da cidade de Issoudun. O doutor, todavia, tinha sérias dúvidas sobre a paternidade de Ágata e enviou a filha a Paris para morar com os parentes da esposa, os Descoings. Ágata conheceu então Bridau, revolucionário girondino. Casaram-se, veio o Diretório e o Império e Bridau tornou-se homem de confiança de Napoleão. Tiveram dois filhos, Felipe e José, criados com facilidades no período napoleônico. Em 1808, Bridau faleceu precocemente. Ágata passou a morar com a tia Descoings e dedicar-se a criar os filhos. Felipe inclinou-se cedo às armas. Era belo e extrovertido, merecendo a preferência da mãe. José, o caçula, tinha pendores artísticos e cedo resolveu que seria pintor de quadros. A mãe desaprovava. Considerava a arte carreira pouco segura e desimportante. A comparação de José com o irmão era desvantajosa para o artista. José era feio, tímido e desajeitado. Desaprecia ao lado do solar Felipe.
Enquanto José se instruía nas artes, Felipe ingressou no exército e foi ajudante-de-ordens de Napoleão na batalha de La Fère-Champenoise. Ao retornar à casa de mãe em 1814, depois da derrota de Waterloo, encontrou a família arruinada: a bolsa de estudos de José e a pensão da senhora Bridau haviam sido suprimidas: “Capitão aos dezenove anos e condecorado, Felipe, tendo servido como ajudante-de-ordens do imperador em dois campos de batalha, lisonjeava imensamente o amor próprio da mãe; assim, embora grosseiro, desordeiro, sem outro mérito além da vulgar bravura do soldado, parecia a seus olhos, um homem genial. Enquanto isso José, pequeno, magro, doentio, com uma fronte selvagem, amando a paz, a tranquilidade, sonhando com a glória artística, só lhe daria, segundo pensava, tormentos e inquietações”. Felipe então começou a mostrar seu caráter. Não trabalhava, passava nos cafés com outros oficiais bonapartistas e servia-se à larga da bolsa da mãe. Em 1817, convenceu Ágata a financiar uma desastrada viagem para os Estados Unidos para juntar-se ao Coronel Lallemand. Retornou em 1819 com dívidas que foram pagas pela estoica mãe. O coronel então entregou-se sem reservas a uma vida de farras. Tornou-se amante de uma dançarina e passou a roubar dinheiro da mãe, irmão e tia para gastar no jogo. Finalmente, roubou o dinheiro que a tia Descoings guardava para jogar na loteria. O número no qual a velha jogaria foi sorteado e ela morreu de desgosto. Ágata, então , o expulsou de casa. Ágata teve de arrumar um emprego e passou a viver modestamente com José, que trabalhava muito para dar à mãe uma existência mais leve. Felipe acabou preso, sob acusação de envolvimento em uma conspiração. Para libertá-lo, seria necessária uma quantia da qual Ágata não dispunha. Nesse ponto, a boa mãe recebeu uma carta da senhora Hochon, sua madrinha em Issoudun. Ela contava que Joâo-Jacques, irmão de Ágata, vivia com uma concubina que o tratava mal, e pretendia deixar toda a herança para a tal mulher, ignorando irmã e sobrinhos. E diz que Ágata devia ir imeditamente à terra natal. Ágata então partiu com José.
A ação se desloca para Issoudun, onde um novo grupo de personagens entra em ação. Há basicamente dois núcleos. A casa dos Hochon, onde Ágata e José ficaram hospedados e, defronte, a casa de Rouget. O talento de Balzac para criar personagens pérfidos é enorme. Na primeira parte, ele faz o terrível Felipe brilhar. Agora surgem Flora Brazier e Maxêncio Gilet. Flora é a tal gapuiadora quase deu o nome ao romance. Certa vez, Balzac viu uma menina no rio em Issoudun gapuaindo, ou seja, revolvendo a água com um galho de árvore para encaminhar os caranguejos para as armadilhas dos pescadores. É exatamente assim que Flora, aos doze anos, aparece na história. Em 1799, o doutor Rouget, pai de Ágata e João-Jacques, encontrou Flora no rio e, encantado com a sua beleza, levou-a para casa, dando uma pequena compensação ao tio da menina. Tudo indica que Rouget tinha intenções libidinosas para com a moça, mas morreu antes de concretizá-las. Flora então ficou na casa e tornou-se criada-amante de João-Jacques, a quem dominava completamente. Max Gilet é um temperamento gêmeo de Felipe Bridau. Contudo, ao contrário de Felipe, Max não teve boa estrutura familiar. Filho da esposa de um tamanqueiro, de beleza singular, com pai desconhecido, Max foi criado solto e alistou-se no exército para escapar de uma acusação de assassinato. Só teve algum brilho, porém, nos Cem Dias. Retornou a Issoudun e, assim como outros oficiais do Império, ficou ocioso. Organizou, então, um grupo de jovens, espécie de confraria, os Cavaleiros da Malandragem, que faziam estripulias de madrugada em Issoudun. Tornou-se amante de Flora que convenceu Rouget a deixá-lo a morar em sua casa. A ideia dos amantes era tomar a fortuna de Rouget e fugir.
Assim, a chegada de Ágata causou um alvoroço na cidade. Flora não deixou que Ágata se aproximasse do irmão e José acabou falsamente acusado de tentar matar Max. Sem sucesso, eles retornaram a Paris. Eis que então Felipe retorna para a história. O coronel foi condenado a cinco anos de vigilância pela polícia política em uma cidade do interior da França. Desroches, tabelião e amigo da família, conseguiu que ele fosse para Issoudun e instiruiu-o a reaver a fortuna de sua família. Aconselhado por Desroches e por Hochon, Felipe, com sua astúcia, teve sucesso onde os bons Ágata e José não tiveram. Conquistou a confiança do tio, dominou Flora e matou Max em um duelo. Terminou por apressar a morte do velho Rouget e casou com Flora. Levou-a a Paris, onde incentivou nela o vício da bebida. Rico e com amigos influentes, prestou obediência aos Bourbon, subiu muito e aguardava a morte da mulher para desposar uma jovem nobre. Virou às costas à mãe e ao irmão. Acabou perdendo a maior parte de sua fortuna na bolsa. Voltou à ativa e foi para a Argélia, onde morreu em combate em 1839.
Ágata faleceu convencida de que prefirira durante toda a vida o filho errado. E José prosseguiu sua carreira de pintor. Acabou ficando, por herança, com os bens que restaram de Felipe, bem como com seu título de nobreza, Conde de Brambourg.
É uma história complexa com personagens marcantes. Muito poderia ser comentado, mas destaco dois temas. Um deles, é a inadequação para a vida civil de temperamentos feitos para a guerra. Balzac conheceu isso muito bem. A França passou 25 anos em guerra quando iniciou o período da Restauração. Milhares de militares retornaram à vida civil apenas para descobrir que não serviam para ela. É o caso de Felipe e de Maxêncio. Homens que pela força, pela desenvoltura e destemor seriam heróis e protagonistas de feitos grandiosos, mas que, longe da espada, tornam-se golpistas mesquinhos e aproveitadores. Assim era o grupo de Felipe em Paris e de Max em Issoudun.
O outro tema é de caráter biográfico. A preferência de Ágata por Felipe em detrimento de José é a preferência de madame Balzac por Henry, seu caçula, em detrimento de Honoré. Anne Charlotte Laure Sallambier casou aos dezoito anos com Bernard-François Balssa (que depois se transformou em Balzac) de cinquenta. Foi um casamento arranjado e Balzac foi o primeiro filho do dever. Dez anos depois, nasceu Henry, filho do amor, que atendia pelo nome de Jean de Margonne (ele legou 200 mil francos em testamento a Henry). Madame Balzac sempre foi rígida e ríspida com o seu primogênito. O manteve fora de casa por quatro anos. Já com Henry, revelou-se uma mãe dedicada e amorosa. Pois, Balzac tornou-se famoso e conhecido, ao passo que Henry teve uma carreira errática nas colônias francesas, vindo a falecer em 1858 empobrecido nas ilhas Comores. Daí o paralelo entre Balzac e José. José também era artista e todos julgavam que escolhera mal a carreira, ao passo que o irmão, militar, parecia fadado à glória. Na época em que Balzac começou a escrever parecia muito mais provável que Henry fosse bem sucedido profissionalmente. Pois Balzac tornou-se mundialmente famoso e passou a sustentar a mulher que o preterira.
Na minissérie Balzac, na qual Gerard Depardieu faz um Balzac bem convincente, há uma cena ótima que resume esse drama. Balzac, com cerca de doze anos, está no colégio interno. Recebe a visita de sua mãe. O garoto corre feliz para abraçá-la. Uma sinistra Jeanne Moreau o afasta, alegando que ele não tinha boas notas, por isso não merecia carinhos. Fazia anos que ele não a via.
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