
Lido entre 9 e 12 de setembro de 2011.
Foi coincidência Hans Keilson ter falecido poucos dias antes de sua obra, Comédia em Tom Menor, ser lançada no Brasil. O interesse da Companhia das Letras pelo centenário escritor certamente nasceu com sua definição pela articulista do The New York Times, Francine Prose, em 2010, como um dos grandes escritores do mundo.
Keilson nasceu na Alemanha, mas se estabeleceu na Holanda. Judeu, integrou a resistência holandesa durante a Segunda Guerra. Farmacêutico e médico, uma de suas tarefas era visitar crianças judias que haviam sido separadas de seus pais. Essa foi a inspiração para a sua futura especialização em psiquiatria e por seu interesse em traumas de guerra. Seus pais morreram em Auschwitz.
Comédia em Tom Menor é uma novela breve a respeito do tema que ficou mundialmente famoso com o Diário de Anne Frank: as famílias que esconderam judeus durante a Segunda Guerra.
A história se passa na Holanda. Um jovem casal, Wim e Marie, recebe a proposta de um um conhecido de abrigar um judeu em sua casa. Eles aceitam “cumprir seu dever patriótico” e recebem Nico, caixeiro-viajante, vendedor de perfumes. Determinam que o hóspede ficará em um quarto, do qual só sairá durante a noite. Alguns ajustes devem ser feitos, como reduzir o horário e as tarefas da faxineira para que ela não descubra o visitante. A irmã de Wim, Coba, uma das únicas pessoas que frequenta a casa, é comunicada e o casal se surpreende ao saber que ela também é uma ativista da resistência.
Aos poucos se estabelece uma rotina entre os três, quebrada por alguns percalços - o peixeiro que chega na hora errada, a faxineira que surpreende Nico.
Alguns meses depois, Nico pega uma gripe que se complica. O casal chama um médico conhecido que trata o hóspede. Mas ele piora e acaba falecendo. Wim e o doutor enrolam o corpo em um cobertor e o abandonam em um parque próximo, onde seria encontrado pela polícia e enterrado. Ocorre que Marie vestira o cadáver de Nico com um pijama de Wim e esqueceu de arrancar o número de registro da tinturaria. A polícia poderia descobri-los. Coba os aconselha a se esconder por um tempo. E eis que Wim e Marie assumem o lugar de Nico, se escondendo em uma pensão em uma cidade próxima. Alguns dias depois, o casal recebe a notícia de que o guarda que encontrara o corpo também era da resistência e eliminou a prova antes do chefe de polícia, nazista, chegar.
Um trabalho de ficção que fale da resistência ao nazismo, por si só é interessante, já que é um tema pouco trabalhado na literatura. Wim e Marie são pessoas comuns, sem maiores opiniões políticas, pouco sabem sobre os judeus. Mas sabem que escondendo Nico e correndo risco de vida por isso, estão fazendo a coisa certa.
Para mim, o tema principal do livro é mais universal do que a Segunda Guerra e o holocuasto: é o mistério da alteridade. É uma pena que Keilson não o tenha trabalhado melhor.
O trecho em que Nico e Marie falam sobre os judeus está, para mim, ligado ao trecho em que o casal, confinado no esconderijo, se estranha mutuamente. “Não havia detectado em Nico absolutamente nada que lembrasse religião. Aliás, nenhum dos dois compreendia, embora o tivessem acolhido em casa, o que afinal era um judeu. Uma pessoa como outra qualquer. Mas... Mas o quê? Nada mais difícil do que lidar com a intimidade com um sujeito, mantê-lo tanto tempo na vida doméstica, sem acabar fazendo uma ou outra pergunta sobre sua vida. Isso não quer dizer que não surjam problemas repentinos e aí seja preciso traçar limites, enquanto esse não era o caso deles, no contato mais afetuoso, pois o tratavam com naturalidade. Mas os dois queriam muito saber por que Nico continuava sendo um judeu para eles. Não porque os outros diziam que ele era, certo? “ (...) Então, olhou para Marie. Também estava arredada na distância, quase inalcançável. Naquela postura, os braços rijamente colados ao corpo, as mãos entrelaçadas no regaço, solitária e cheia de dissabor, já não era sua mulher. Não havia vínculo entre eles. Wim a viu como se fosse pela primeira vez”.
Receber um estranho em casa e conviver com ele, em situação de quase confinamento, é uma experiência de buscar o semelhante no estranho. Mas numa situação de guerra, de separação e morte iminente, talvez fique mais claro aquilo que a familiaridade do dia dia esconde - todos são estranhos diante da singularidade humana e os rótulos - judeu, árabe, brasileiro, gaúcho - talvez sirvam para aliviar o peso dessa constatação.
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