Lido entre 11 e 23 de julho de 2011.
Excluindo Balzac, grande parte da literatura estrangeira por mim comentada é de língua alemã. O motivo: estudo alemão e frequento a biblioteca do Instituto Goethe. Tudo de novo que se publica em literatura alemã, no original ou em português, chega cedo na estante de novidades dessa biblioteca que fica num dos meus lugares preferidos em Porto Alegre. Um dia vou poder me exibir aqui com o original, mas por enquanto me contento com as traduções.
Elfriede Jelinek tem algumas coisas em comum com Herta Müller: era pouco conhecida fora dos países de língua alemã quando ganhou o Nobel de Literatura em 2004 e a tradução de seu livro mais conhecido, Die Klavierspielerin - A Pianista, saiu neste ano no Brasil. Mas as semelhanças param por aí. O tema é também a opressão, mas não a política - a opressão internalizada.
Erika Kohut é uma professora da piano de um conservatório de Viena. Está próxima aos quarenta anos e mora com a mãe em um apartamento de dois quartos. Erika foi criada para ser uma grande pianista de carreira internacional, mas não passou pela rigorosa seleção que esse tipo de carreira implica. Sua mãe, um mulher frustrada que se realiza através da filha, a trata como uma criança: controla seus horários, suas compras e dorme junto com ela na cama. A vida social de Erika consiste em concertos particulares em casas de família, sempre junto com a mãe. De resto, as duas passeiam pelos arredores de Viena nos finais de semana e assistem à televisão. É uma relação de co-dependência típica. Numa passagem, logo no início da narrativa, Erika chegou um pouco atrasada. Sua mãe havia, em represália, cortado alguns vestidos novos que ela comprara. Ela agrediu a mãe, arrancando um chumaço de seus cabelos. Depois de se agredirem fisicamente, as duas se abraçaram e pediram desculpas.
Erika não tem namorado. Já teve algumas relações no passado, frustrantes do ponto de vista sexual. A tensão aparece na narrativa quando um jovem de 24 anos, Walter Klemmer, belo e atlético, se aproxima da professora. Ele admira a competência de Erika ao piano, já que também toca o instrumento, com rara maestria para uma amador. Klemmer está francamente interessado em Erika. Quer ter uma experiência com um mulher mais velha. Erika repele as suas atenções, ao mesmo tempo que fica cada vez mais interessada no rapaz. A onipresença da mãe impede que a professora explore seu próprio corpo. Por vezes, ela se tranca no banheiro e corta com um aparelho de gilete que pertencia a seu pai os lábios vaginais. Inventa aulas particulares noturnas e vai a cabines de striptease ou ao Prater assistir aos casais tendo relações sexuais.
Em uma ocasião, em um ensaio coletivo, Erika se vinga de uma estudante que se aproximou de Klemmer colocando cacos de vidro nos bolsos de seus casaco. A menina corta as mãos e fica fora do concerto anual. É nesse dia que Klemmer agarra Erika no banheiro do conservatório. Ela não deixa que ele consume a relação sexual. A partir daí Erika começa um jogo masoquista com Klemmer que culmina quando o rapaz dá-lhe uma surra e a estupra no quarto de sua casa.
São muitos os temas explorados nesse romance. Um dos principais, até porque Elfriede também é formada em música, é o binômio beleza/sofrimento que encerra uma carreira musical. Uma disciplina de horas de estudo por dia para atingir a perfeição não é suficiente. É preciso aquele diferencial chamado talento que poucos têm. Assim, quem se dedica à música e não é um dos escolhidos, ou se entrega ao amadorismo ou estará fadado à frustração. Erika se sente frustrada por não ter atingido o que era dela esperado. Então, sua desforra é humilhar os alunos, chegando até a feri-los fisicamente.
Mas para mim, o tema mais bem trabalhado e que aproxima Jelinek de Schnitzler é a opressão do cotidiano. A autora apresenta um dia a dia brutal, cheio de tristeza e violência, por detrás da fachada de uma existência de classe média. Erika, assim como Georg von Wergenthin, de O Caminho para a Liberdade, e como o doutor Gläser, de O médico das termas, não tem sentimento em sua vida. Sua técnica, como pianista, é perfeita, mas técnica somente produz uma boa professora de piano, não uma boa intérprete.
O trecho em que Erika e sua mãe levam o pai, insano (mais um ponto em comum com Schnitzler, a loucura sempre à espreita), para ser internado em um hospital para doentes mentais numa cidade próxima a Viena é revelador dessa violência do dia a dia: “ O pai não compreende por que está ali, pois ali nunca foi a casa dele. Está proibido de fazer muitas coisas, e em todas as que faz, mesmo as que são proibidas, tampouco é bem visto. Tudo o que ele fizer está errado. Já está acostuma a isso, por sua esposa. Ele já não deve mais tomar nada nas mãos nem se mexer. deve lutar contra a sua agitação e permanecer deitado (...). Mas o pai continua a querer sair, mal acabou de ser colocado no depósito. Ele é apanhado e obrigado a ficar ali. De que outra maneira sua família haveria de se livrar da perturbação? De que outra maneira os proprietários da instituição haveriam de garantir suas riquezas? Para uns é necessário que ele fique longe. Para outros, é preciso que ele permaneça ali. Uns vivem de sua presença. Os outros, de sua ausência. De ele ter ido embora e de não precisarem mais olhar para ele. Aufwiedersehen. Até logo. Foi um prazer. Para tudo há um fim. Quando elas estiverem ido embora, o pai, apoiado num ajudante trajando um avental branco, com ar de má vontade, deverá dar tchauzinho para as duas senhoras.”
É digno de nota que recentemente tenham sido descobertos casos aterradores de violência doméstica justamente na Áustria, por detrás dos muros de casas de classe média.
Houve algo que interferiu na minha leitura: para mim Erika Kohut tem o rosto da talentosíssima atriz francesa Isabelle Huppert que a representou no filme A Pianista de Michael Haneke. Eu havia visto o filme em 2001, no cinema. Agora, o revi. É muito fiel ao livro e não fica devendo a ele como sói ocorrer com adaptações de livros para o cinema.
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