
Graças aos audiolivros e aos engarrafamentos de Porto Alegre estou fazendo algo que não faria normalmente - revendo obras que li quando era adolescente
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, é o exemplo maior do gênero naturalista no Brasil. Mas no ensino médio - antigo segundo grau - nos preocupávamos muito em identificar características e deixávamos, muitas vezes, de curtir a leitura. E O Cortiço proporciona uma leitura saborosa, vibrante, viva.
O personagem principal é, de fato, um cortiço construído no bairro do Botafogo entre uma venda e uma pedreira pelo português João Romão. Romão uniu-se à escrava Bertoleza e, explorando a mão de obra abundante na capital do Império após um boom econômico ocorrido na década de 1870, criou um pequeno império. Os trabalhadores moravam nas casinhas, consumiam na venda, trabalhavam na pedreira, alugavam tinas para a lavagem de roupa, de modo que todo o dinheiro que circulava no cortiço acabava com João Romão. Ele, de resto, vivia modestamente e trabalhava sem cessar.
Ao lado do cortiço, havia o sobrado do comerciante Miranda. Miranda enriqueceu com a ajuda do dote da mulher Estela, com quem tinha a filha Zulmira. Estela traia Miranda, mas ele o aceitava por causa do dinheiro e das convenções sociais. Inicialmente, desenvolveu-se uma grande rivalidade entre Romão e Miranda.
Outro personagem importante é o português Jerônimo. Cavouqueiro de profissão, graças às suas qualidades, tornou-se mestre de obras da pedreira de Romão. Instalou-se no Cortiço com a esposa, Piedade de Jesus. O casal mantinha a filha em uma escola de freiras. Era um casal modelo. Ambos viviam para trabalhar, não se envolvendo em festas e bebedeiras.
Mas seguindo a lógica naturalista do determinismo do meio, tudo mudou quando Jerônimo viu a mulata Rita Baiana. Rita era uma lavadeira festeira e sensual, amante do capoeira Firmo. Jerônimo viu Rita dançar em um dos pagodes que ocorriam no cortiço no domingo. Se apaixonou pela mulata e, a partir daí, passou a descuidar do trabalho, rejeitar a mulher, beber. Trocou os hábitos “da terra”, o vinho, o chá, o caldo, pelos tropicais, a cerveja, o café, a comida temperada. Rita passou a simbolizar, para ele, o Brasil, a terra nova: “Naquela mulata estava o grande mistério, as sínteses das impressões que ele recebeu chegando aqui; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era o veneno e o açúcar gostoso”. Envolveu-se em uma briga com Firmo e acabou, com a ajuda de dois amigos, matando o mulato e jogando seu corpo no mar.
Havia também no cortiço a jovem Pombinha. Pombinha era filha de dona Isabel, uma senhora distinta que, por problemas financeiros, teve que ir residir no cortiço. Pombinha era noiva, mas aguardava a vinda das regras para casar.
Com o tempo, Miranda e Romão se aproximaram. Miranda tornou-se barão e Romão, invejando o baronato e a vida de luxos do vizinho, mudou de comportamento: começou a usar terno, beber bons vinhos, frequentar a Rua do Ouvidor. Através do agregado Botelho, articulou o casamento com Zulmira, filha única de Miranda. A fortuna de Romão fazia os Miranda esquecerem os modos grosseiros e a origem humilde do vizinho.
Jerônimo mudou-se com Rita para outro local, abandonando Piedade. A portuguesa começou a beber, perder as freguesas de roupa, deixando até que homens do cortiço abusassem dela quando estava alcoolizada. O português deixou de pagar a escola da filha, que foi expulsa e passou morar no cortiço. Uma futura meretriz que estava se formando.
Pombinha, após “tornar-se moça” (cena que merece ser lida), casou-se com o noivo, mas o enlace não durou. Pombinha traiu o marido e foi morar coma prostituta Léonie, tornando-se também prostituta: “Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perfeita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida.”
João Romão, finalmente, acertou o casamento com Zulmira. Todavia, tinha que livrar-se de Bertoleza. Ele havia, quando se juntou à escrava, falsificado a compra de sua alforria. Agora, chamou a polícia para levar a escrava fugida. Bertoleza, consciente que após uma vida de trabalhos retornaria à escravidão, suicidou-se com um facão. Nesse momento, chegou uma comissão de abolicionistas para trazer a Romão um diploma de sócio benemérito.
Há muitos outros personagens, mas a ênfase é o meio e a forma com as pessoas a ele se adaptam. As descrições são muito ricas, como essa do amanhecer no cortiço: “Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já perder as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casaco. Os homens, esses não se preocupavam em em não molhar o pêlo, ao contrário, metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas das mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas”. Aluísio de Azevedo tem grande talento para construir esses painéis.
O Cortiço é também uma obra rica para os historiadores. Ele acusa o aparecimento dos trabalhadores urbanos no final do século XIX no Brasil. O capital, até então empregado no tráfico de escravos, passou a ser investido em outras atividades. Daí o surgimento no Rio de Janeiro de indústrias, casas comerciais, bancos, empresas de transporte, serviços de luz e gás. E o pessoal que se empregava nessas funções era justamente os moradores desse tipo de habitação, barata e não muito distante dos locais de trabalho. Ao longo do enredo, inclusive, ocorre uma mudança. No início, moram no cortiço lavadeiras, pedreiros, soldados rasos. No final, esse público foi substituído por professores, servidores públicos, estudantes.
Sem querer propor nenhuma tese feminista extemporânea, é interessante o tratamento que Azevedo dá às mulheres. Aparecem na obra mulheres nada passivas, mulheres que escolhem, que impoẽm aos homens a sua vontade. Estela, mulher de Miranda, traia o marido. Esse não só não a deixou, mas também tornou-se sexualmente dependente dela. Rita não obedecia Firmo, nem Jerônimo. Ela ficava com eles enquanto lhe convinha. Leocádia, uma das lavadeiras do cortiço, foi apanhada por Bruno, seu marido, o traindo com o estudante Henrique. Depois de mandá-la embora, Bruno a chamou de volta, quase implorando por seu retorno ao lar. Pombinha não aceitou casar com um funcionário e ter uma vida sem luxos ou prazeres. Identificava seu noivo, e todos os homens, como fracos, dominados pelas mulheres, escravos do desejo sexual. É um traço interessante em uma obra publicada em 1890.
Um coisa estranha e, em minha opinião, desnecessária: a versão de O Cortiço que ouvi, da Universidade Falada, possui, após palavras difíceis, pouco usadas, uma “tradução”. Além de quebrar o andamento da narrativa, retira do leitor/ouvinte a obrigação e curiosidade de buscar o dicionário.
O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, é o exemplo maior do gênero naturalista no Brasil. Mas no ensino médio - antigo segundo grau - nos preocupávamos muito em identificar características e deixávamos, muitas vezes, de curtir a leitura. E O Cortiço proporciona uma leitura saborosa, vibrante, viva.
O personagem principal é, de fato, um cortiço construído no bairro do Botafogo entre uma venda e uma pedreira pelo português João Romão. Romão uniu-se à escrava Bertoleza e, explorando a mão de obra abundante na capital do Império após um boom econômico ocorrido na década de 1870, criou um pequeno império. Os trabalhadores moravam nas casinhas, consumiam na venda, trabalhavam na pedreira, alugavam tinas para a lavagem de roupa, de modo que todo o dinheiro que circulava no cortiço acabava com João Romão. Ele, de resto, vivia modestamente e trabalhava sem cessar.
Ao lado do cortiço, havia o sobrado do comerciante Miranda. Miranda enriqueceu com a ajuda do dote da mulher Estela, com quem tinha a filha Zulmira. Estela traia Miranda, mas ele o aceitava por causa do dinheiro e das convenções sociais. Inicialmente, desenvolveu-se uma grande rivalidade entre Romão e Miranda.
Outro personagem importante é o português Jerônimo. Cavouqueiro de profissão, graças às suas qualidades, tornou-se mestre de obras da pedreira de Romão. Instalou-se no Cortiço com a esposa, Piedade de Jesus. O casal mantinha a filha em uma escola de freiras. Era um casal modelo. Ambos viviam para trabalhar, não se envolvendo em festas e bebedeiras.
Mas seguindo a lógica naturalista do determinismo do meio, tudo mudou quando Jerônimo viu a mulata Rita Baiana. Rita era uma lavadeira festeira e sensual, amante do capoeira Firmo. Jerônimo viu Rita dançar em um dos pagodes que ocorriam no cortiço no domingo. Se apaixonou pela mulata e, a partir daí, passou a descuidar do trabalho, rejeitar a mulher, beber. Trocou os hábitos “da terra”, o vinho, o chá, o caldo, pelos tropicais, a cerveja, o café, a comida temperada. Rita passou a simbolizar, para ele, o Brasil, a terra nova: “Naquela mulata estava o grande mistério, as sínteses das impressões que ele recebeu chegando aqui; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era o veneno e o açúcar gostoso”. Envolveu-se em uma briga com Firmo e acabou, com a ajuda de dois amigos, matando o mulato e jogando seu corpo no mar.
Havia também no cortiço a jovem Pombinha. Pombinha era filha de dona Isabel, uma senhora distinta que, por problemas financeiros, teve que ir residir no cortiço. Pombinha era noiva, mas aguardava a vinda das regras para casar.
Com o tempo, Miranda e Romão se aproximaram. Miranda tornou-se barão e Romão, invejando o baronato e a vida de luxos do vizinho, mudou de comportamento: começou a usar terno, beber bons vinhos, frequentar a Rua do Ouvidor. Através do agregado Botelho, articulou o casamento com Zulmira, filha única de Miranda. A fortuna de Romão fazia os Miranda esquecerem os modos grosseiros e a origem humilde do vizinho.
Jerônimo mudou-se com Rita para outro local, abandonando Piedade. A portuguesa começou a beber, perder as freguesas de roupa, deixando até que homens do cortiço abusassem dela quando estava alcoolizada. O português deixou de pagar a escola da filha, que foi expulsa e passou morar no cortiço. Uma futura meretriz que estava se formando.
Pombinha, após “tornar-se moça” (cena que merece ser lida), casou-se com o noivo, mas o enlace não durou. Pombinha traiu o marido e foi morar coma prostituta Léonie, tornando-se também prostituta: “Pombinha, só com três meses de cama franca, fizera-se tão perfeita no ofício como a outra; a sua infeliz inteligência nascida e criada no modesto lodo da estalagem, medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida.”
João Romão, finalmente, acertou o casamento com Zulmira. Todavia, tinha que livrar-se de Bertoleza. Ele havia, quando se juntou à escrava, falsificado a compra de sua alforria. Agora, chamou a polícia para levar a escrava fugida. Bertoleza, consciente que após uma vida de trabalhos retornaria à escravidão, suicidou-se com um facão. Nesse momento, chegou uma comissão de abolicionistas para trazer a Romão um diploma de sócio benemérito.
Há muitos outros personagens, mas a ênfase é o meio e a forma com as pessoas a ele se adaptam. As descrições são muito ricas, como essa do amanhecer no cortiço: “Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já perder as saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos braços e do pescoço, que elas despiam suspendendo o cabelo todo para o alto do casaco. Os homens, esses não se preocupavam em em não molhar o pêlo, ao contrário, metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas das mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas”. Aluísio de Azevedo tem grande talento para construir esses painéis.
O Cortiço é também uma obra rica para os historiadores. Ele acusa o aparecimento dos trabalhadores urbanos no final do século XIX no Brasil. O capital, até então empregado no tráfico de escravos, passou a ser investido em outras atividades. Daí o surgimento no Rio de Janeiro de indústrias, casas comerciais, bancos, empresas de transporte, serviços de luz e gás. E o pessoal que se empregava nessas funções era justamente os moradores desse tipo de habitação, barata e não muito distante dos locais de trabalho. Ao longo do enredo, inclusive, ocorre uma mudança. No início, moram no cortiço lavadeiras, pedreiros, soldados rasos. No final, esse público foi substituído por professores, servidores públicos, estudantes.
Sem querer propor nenhuma tese feminista extemporânea, é interessante o tratamento que Azevedo dá às mulheres. Aparecem na obra mulheres nada passivas, mulheres que escolhem, que impoẽm aos homens a sua vontade. Estela, mulher de Miranda, traia o marido. Esse não só não a deixou, mas também tornou-se sexualmente dependente dela. Rita não obedecia Firmo, nem Jerônimo. Ela ficava com eles enquanto lhe convinha. Leocádia, uma das lavadeiras do cortiço, foi apanhada por Bruno, seu marido, o traindo com o estudante Henrique. Depois de mandá-la embora, Bruno a chamou de volta, quase implorando por seu retorno ao lar. Pombinha não aceitou casar com um funcionário e ter uma vida sem luxos ou prazeres. Identificava seu noivo, e todos os homens, como fracos, dominados pelas mulheres, escravos do desejo sexual. É um traço interessante em uma obra publicada em 1890.
Um coisa estranha e, em minha opinião, desnecessária: a versão de O Cortiço que ouvi, da Universidade Falada, possui, após palavras difíceis, pouco usadas, uma “tradução”. Além de quebrar o andamento da narrativa, retira do leitor/ouvinte a obrigação e curiosidade de buscar o dicionário.
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