
Lido entre 26 de março e 15 de abril de 2011.
Michel Laub é um dos melhores escritores brasileiros produzindo no momento. Não tenho medo de afirmar isso, apesar de ser Laub ainda muito jovem. Em Longe da água e no belíssimo Segundo Tempo, ele nos mostrou do que é capaz. Agora volta no mesmo estilo confessional e direto com Diário da Queda.
O narrador é um jovem escritor, que estudou Direito e depois jornalismo, “de quase quarenta anos” que deixou Porto Alegre e se estabeleceu em São Paulo e é de origem judaica. Laub sempre trabalha com traços auto-biográficos, mas nunca houve tantas coincidências como em Diário da Queda.
O narrador, alcoolista e no terceiro casamento, conta de forma alternada fatos de sua vida, da vida de seu avô, e da de seu pai. O avô foi o único sobrevivente de uma família do campo de concentração de Auschwitz. Migrou para o Brasil, mais precisamente para Porto Alegre. Casou-se com uma jovem de família alemã que rompeu com os pais e se converteu ao judaísmo. Montou uma loja de máquinas de costura. Teve um filho, o pai do narrador. Morreu quando o menino tinha quatorze anos.
O pai começou a trabalhar logo após a morte do avô e transformou a loja de máquinas de costura em um “império em miniatura”. Aos dezenove anos, conheceu a mãe do narrador em um baile num clube judaico e casou-se depois de um tempo. Ao contrário do avô, que nunca mencionava questões judaicas, o pai era extremamente preocupado, via perseguição e antissemitismo em toda a parte.
Para o narrador, tudo começou com um acidente ocorrido em uma festa quando ele tinha treze anos. Ele estudava em um colégio judaico, que quem mora em Porto Alegre bem pode imaginar qual é, e havia feito seu Bar Mitzvah. Um colega, não judeu, gói, bolsista, filho de um cobrador de ônibus que já havia sido visto vendendo algodão-doce, resolveu comemorar os seus treze anos com uma festa, já que os colegas faziam festas depois do Bar Mitzvah (em hotéis de luxo). A festa de João - o único personagem do livro que tem nome - foi no salão de festa de um prédio sem elevador nem porteiro. Os meninos faziam uma brincadeira que consistia em jogar o anversariante para cima treze vezes, o segurando na queda, como numa rede de bombeiros. Na décima terceira vez em que João caiu, a rede se abriu e ele caiu de costas no chão. A festa terminou de forma melancólica. João fraturou uma vértebra, teve de ficar de cama dois meses, usar colete ortopédico e fazer fisioterapia por longo tempo.
A partir desse momento, o narrador se aproximou de João, ajudando-o a recuperar as aulas perdidas e o levando para estudar em sua confortável casa. Com a descoberta por parte da coordenação da escola de que o incidente na festa não fora um acidente, a permanência do narrador no colégio ficou insustentável. Ele, então, resolveu acompanhar João na troca para uma escola não judaica.
Seu pai se opôs de forma veemente, afirmando que em uma escola em que ele fosse o único judeu seria naturalmente apontado, “eles sempre esfregarão isso na sua cara”. Houve uma grande briga. O narrador falou ao pai que não estava nem aí para o judaísmo e para o que ocorrera com o seu avô. O pai se descontrolou e, pela primeira vez, bateu nele. Ele revidou. No dia seguinte, o pai contou tudo sobre o avô e a paz se fez. O pai concordou com a mudança de escola e o narrador deixou de ser leviano em relação ao judaísmo.
Finalmente, o narrador recebe a notícia de que o pai está com Alzheimer e partir disso faz um inventário sobre a sua vida: os três casamentos e o alcoolismo.
Ora, quem leu o livro sabe que a história não é essa que eu contei. Que ela é contada em camadas, que voltamos várias vezes a cada cena e a cada vez descobrimos mais coisas. É estilo de Laub, conhecido de Longe da água e no Segundo Tempo.
Laub explora a questão do judaísmo em dois níveis. No primeiro, a herança judaica para o avô, para o pai e para o narrador. Para avô, a destruição física da família, a migração para o desconhecido e negação da realidade expressa nos diários que ele escrevia meticulosamente e nos quais o filho, depois de mandá-los traduzir após a sua morte, descobriu não haver nenhuma palavra sobre o nazismo, Auschwitz, chegada ao Brasil, sua mãe ou ele mesmo. Era um narrativa “da vida como deveria ser”. Para o pai, o medo, a insegurança, o mergulho no trabalho. Para o narrador, o preconceito de sinais trocados na escola judaica e a vingança de João na nova escola.
Mas em outro nível, o judaísmo e Auschwitz ficam em segundo plano. É um trauma que atravessa as gerações de uma família. Algumas famílias têm feridas que atravessam os anos. Pode ser um campo de concentração, um assassinato, um suicídio, um abandono, uma doença, uma adoção. O alcoolismo do narrador é uma consequência de Auschwitz, do suicídio do avô, do silêncio do pai, da queda de João, dos desenhos de Adolf Hitler que apareciam na sua mochila. A notícia do Alzheimer do pai (bem como simbolismo, já que essa é uma doença que produz o esquecimento) é a senha para que o narrador rompa com o ciclo da dor. Ele, que está prestes a perder a mulher amada, deixa de beber e descobre que será pai. E o diário se revela um diário para o filho que irá nascer (mas que é ao mesmo tempo o diário da queda de João, os diários fantasiosos do avô, o diário que o pai passa a escrever quando sabe que logo irá tudo esquecer).
Laub cita várias vezes o, em minha opinião, melhor dos memorialistas do Holocausto, o italiano Primo Levi. Levi escreveu tudo o que devia ser escrito sobre Auschwitz e depois de eu já ter lido centenas de livros, visto centenas de filmes e documentários sobre o assunto, é da narrativa dele que sempre lembro. Levi não é citado por acaso. Ele saiu de Auschwitz aos 42 anos. Escreveu vários livros, teve filhos e ficou famoso. Em 1987, aos 68 anos morreu ao cair de uma escada. Tudo indica que não foi um acidente. O suicídio do avô do protagonista foi inconteste. Mas, ao contrário de Levi, ele nunca mencionou ou escreveu nada sobre o tema. Isso me lembra uma passagem de um dos livros de Levi. Ele dizia que depois de ter retornado a Turim, estando em sua casa, em segurança, ele sonhava que estava contando a experiência dele no campo de concentração e que ninguém acreditava. Falar ou calar parece ter sido indiferente.
Laub fala da inviabilidade da experiência humana expressa em Auschwitz, no suicídio do avô, no vício no álcool, nas brigas com a mulher, na queda de João, e de como ter um filho é deixar para trás essa inviabilidade. Escrever um livro, com toda a dor que isso envolve, também é.
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