quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Ressurreição - Liev Tolstói


Lido entre 29 de outubro e 21 de novembro de 2010.

Tolstói escreveu Ressurreição entre 1887 e 1899. Tudo começou em uma conversa com o advogado e escritor Anatóli Koni. Koni contou-lhe que fora procurado por um jovem da nobreza que precisava de um advogado. O caso era o seguinte: convocado para atuar em um júri, o jovem reconheceu em uma acusada uma criada que seduzira e engravidara em casa de uma tia. Grávida e solteira, a moça foi mandada embora pela patroa e tornou-se prostituta. Foi acusada de roubo e presa. O jovem nobre, sentindo-se culpado, quis ajudá-la e até casar-se com ela. Mas a moça morreu de tifo na prisão.
A história trouxe lembranças a Tostói. Ele também seduzira uma criada em casa de uma parente, o que motivara a demissão da moça. E ele possuía um filho bastardo que morava em sua propriedade. Tolstói pediu autorização a Koni para utilizar a história e começou a escrever. Logo abandonou o texto. A motivação para a sua conclusão veio somente em 1898. Tolstói negociou os direitos autorais de uma obra ainda não escrita para auxiliar os membros da seita dos dukhobors a emigrarem para o Canadá. Tratava-se de uma seita que pregava ideias simpáticas ao escritor: negação da propriedade, do governo, do dinheiro, da Igreja, assim como o vegetarianismo e a não violência. O grupo era naturalmente perseguido pelo governo russo. Após a intervenção de Tolstói, já mundialmente famoso na época, o caso teve grande repercussão na imprensa internacional. O governo, então, para evitar o desgaste, concordou com a emigração para o Canadá, que aceitou o grupo. Mas era necessário o dinheiro do transporte. Tolstói, então, que abrira mão dos direitos autorais de sua obra em 1881, vendeu Ressurreição por preço elevado. E finalmente o concluiu.
O princípe Dmítri Ivánovitch Nekhliúdov é um nobre despreocupado que vive das rendas das terras de sua família. Após servir ao exército, retornou a Moscou, onde vive uma vida típica da nobreza da época: jantares, jogos, teatros. Corteja uma moça moça nobre, com quem pensa em se casar. Um dia, Nekhliúdov é convocado para servir como jurado no tribunal. Em um dos processos, reconhece na acusada, a prostituta Máslova, Katiucha: moça que trabalhava para suas tias e que ele seduzira, dez anos antes. Descobre, então, que Máslova, acusada de envenenamento, havia engravidado dele, fora mandada embora pelas tias e tornou-se meretriz. Começa, então, a “ressurreição” de Nekhliúdov.
Por um erro judiciário, Máslova é condenada aos trabalhos forçados. O príncipe então procura um advogado para tentar corrigir a situação. Ele acredita-se culpado pelos infortúnios de Máslova. A partir daí, Nekhliúdov começa a rever a sua vida. Tudo o que era natural passa a ser questionado. Ele decide que a única forma de reparar o erro é casar-se com Máslova. Ele a procura na prisão e declara as suas intenções. Ela o rejeita, ao mesmo tempo em que parece nutrir sentimentos por ele. Ao mesmo tempo, Nekhliúdov entra em contato com a realidade paralela das prisões. Vários prisioneiros, percebendo a sua condição de fidalgo, pedem a sua ajuda. E ele descobre inúmeras injustiças. Da mesma forma, descobre a indiferença dos diretores das prisões, oficiais de justiça, promotores, autoridades em geral, que, mesmo diante da mais flagrante injustiça, ateem-se aos protocolos e regulamentos, ainda que irracionais.
O príncipe resolve acompanhar Máslova-Katiucha para a Sibéria, para onde será deportada. Resolve, então, distribuir suas terras para os camponeses que lá trabalham. Passa a ser visto pela sociedade moscovita como um excêntrico.
Finalmente, com a partida de Máslova, Nekhliúdov acompanha o comboio de prisioneiros que vai para a Sibéria. Consegue com as autoridades que a moça possa acompanhar os presos políticos, que viajam em melhores condições. Durante a viagem, ela conhece Simonson, preso político que se interessa por ela. Simonson propõe-lhe casamento. Ela o aceita para liberar Nekhliúdov do compromisso que ele teima em cumprir. Nesse meio-tempo, Nekhliúdov recebe a resposta do apelo que fizera ao Czar sobre o caso: Máslova recebeu indulto, com a substituição dos trabalhos forçados pelo exílio na região siberiana.
Contar essa história é dizer muito pouco sobre Ressurreição. Assim como é dizer muito pouco, considerá-lo romance de tese, de caráter moral ou religioso.
Tolstói consegue, ao narrar o despertar de Nekhliúdov para a vida real, criar um estranhamento de cunho quase antropológico de quase todas as instituições do mundo ocidental às quais estamos acostumados. Sua descrição dos julgamentos, das prisões, do jantar em casa dos Kortcháguin, dos fidalgos embarcando na primeira classe do trem, nos dão a impressão de estar vendo essas coisas pela primeira vez.
Observemos a sua descrição da missa ortodoxa, muito semelhante à nossa familiar missa católica:
“A missa consistia em que o sacerdote, vestido numa roupa especial, estranha, bordada e muito desconfortável, cortava e arrumava uns pedacinhos de pão num pires e depois os colocava numa taça com vinho, enquanto pronunciava diversos nomes e algumas preces. Enquanto isso, o sacristão não parava de ler, primeiro, e depois começou a cantar, revezando com o coro dos prisioneiros, várias preces em eslavo eclesiástico, em si já quase incompreensíveis, e que se tornavam mais incompreensíveis ainda por causa da velocidade da leitura e do canto. (...) Além disso, o sacristão leu vários versículos dos Atos dos Apóstolos numa voz tão estranha e tensa que não se conseguia entender nada e o sacerdote leu com muita clareza um trecho do Evangelho de Marcos, em que se contava como Cristo, após ressuscitar e antes de subir aos céus e sentar-se à mão direita de seu pai, foi ver primeiro Maria Madalena, de quem expulsou sete demônios, e depois foi ter com os onze discípulos e ordenou-lhes que pregassem os Evangelhos a todas as criaturas, e também anunciou que quem não crê e é batizado será salvo e, além disso, vai expulsar os demônios, vai curar as pessoas com as mãos colocadas sobre elas, vai falar línguas novas, vai apanhar serpentes e, se beber veneno, não vai morrer, continuará sadio. A essência da missa consistia em supor que os pedacinhos de pão partidos pelo sacerdote e colocados no vinho, por efeito de certas manipulações e preces, transformavam-se no corpo e no sangue de Deus. As manipulações consistiam em que o sacerdote levantava igualmente os dois braços e mantinha-os erguidos, a despeito de assim embolar-se todo no saco bordado que vestia, depois cair de joelhos, beijava a mesa e o que estava sobre ela. A ação mais importante acontecia quando o sacerdote, com um guardanapo seguro nas duas mãos, sacudia-o de leve e num movimento ritmado, acima do pires e da taça dourada. Supunha-se que naquele exato instante o pão e o vinho transformavam-se em corpo e em sangue e, por tal motivo, aquele momento da missa era cercado de uma solenidade especial. (...). Depois disso considerava-se que a transformação estava concluída e o sacerdote, após retirar o guardanapo de cima do pires, partiu em quatro um pedaço do meio do pão, colocou primeiro no vinho e depois na boca. Supunha-se que ele comia um pedacinho do corpo de Deus e bebia um gole do seu sangue. Em seguida, o sacerdote puxou para o lado uma cortininha, abriu as portas no meio da cerquinha e, com a taça dourada nas mãos, saiu pelas portas do meio e convidou aos que quisessem também comer o corpo e o sangue de Deus e se aproximar da taça.”
O livro tem momentos de exasperação e denúncia, mas uma descrição como essa tem mais impacto do que qualquer arrazoado político ou filosófico. E são muitas. O leitor estranha o conhecido e a partir desse afastamento compreende e quase acompanha a transformação pela qual passa o personagem.
Sabe-se que Tolstói pesquisou muito para escrever Ressurreição. Leu diversos tratados jurídicos. Visitou prisões e campos de trabalho. Entrevistou prisioneiros, carcereiros, diretores de prisões. Nekhliúdov, depois de visitar Máslova na prisão e conhecer diversos prisioneiros chegou à conclusão que existiam cinco categorias de criminosos: a primeira era formada por pessoas totalmente inocentes, vítimas de erros judiciários; a segunda, formada por pessoas que cometeram crimes em situações excepcionais, como embriaguez, ciúmes, fúria; a terceira era formada por pessoas condenadas por ações que, no entender delas, eram costumeiras e boas, mas que eram criminalizadas, como vender bebida produzida artesanalmente ou pegar lenha em florestas do Estado; a quarta categoria era formada por presos políticos, condenados apenas por se oporem às autoridades constituídas; a quinta era a dos criminosos propriamente ditos. Temos uma discussão complexa sobre Criminogia aqui. Sobre o segundo grupo, por exemplo, Nekhliúdov argumenta a incoerência de prender um homem embriagado que mata outro em uma briga de bar, e não prender um nobre que mata seu oponente em um duelo. Qual seria a diferença entre as duas situações, fora a classe dos envolvidos? A terceira categoria é dos que incorrem no que chamamos de erro de proibição. Ao que parece, num país vasto e repleto de minorias como a Rússia czarista, era comum que pessoas fossem presas e condenadas por praticarem ações costumeiras que eram criminalizadas. O quarto grupo, o dos presos políticos, era enorme. Eram socialistas, líderes de minorias que reivindicavam independência, jornalistas, professores, indivíduos que se opunham à Igreja ortodoxa. O costume de prendê-los e deportá-los para a Sibéria não foi uma invenção dos soviéticos. Era uma tradição czarista. O último grupo, o dos criminosos de fato, Nekhliúdov considerava vítimas da negligência e da crueldade da sociedade. Em alguns, ele reconhece tipos repulsivos e desagradáveis, mas não vê diferença entre esses e outros igualmente desagradáveis que via na sociedade de “fraque, dragonas e rendas”. Ele chega então na questão mais importante: “por que todas aquelas pessoas tão variadas eram mantidas na prisão, enquanto outras pessoas iguais a elas andavam soltas e até as julgavam (...)”. Ele leu Lombroso, Garofalo, Ferri, Maudsley, Tarde e não encontrou a resposta. Achou digressões e debates que pareciam fugir do tema. “Com que direito alguns castigam os outros? Não só não havia essa resposta, como todos os raciocínios destinavam-se a esclarecer e justificar o castigo, cuja necessidade era reconhecida como um axioma”. A ideia da necessidade do monopólio da violência pelo Estado (que ele não menciona, aliás) não o satisfaria, já que ele percebe suas engrenagens - juízes, promotores, diretores, governadores - como autômatos preocupados somente com a manutenção de seus privilégios.
A solução do romance é apressada e pouco convincente. Nekhliúdov encontra as respostas no Evangelho. Estabelece cinco mandamentos a partir do Evangelho de Mateus: não matar, não praticar adultério, não jurar, oferecer a outra face ao agressor e amar os inimigos.
Uma palavra ainda sobre o herói. Nekhliúdov não conquista o leitor. Sua misantropia é irritante. No início do romance, antes do julgamento de Máslova, ele aparece como um egoísta que não se satisfaz com nada e com ninguém. A transformação pela qual ele passa poderia ter ficado muito artificial se Tolstói não tivesse dado a ele aquele toque de vida real que faz de um autor um mestre. Ele oscila. Fica tentado, em vários momentos, a dar para trás: esquecer Máslova e seguir a sua vida. Ele percebe, quando vai a São Petesburgo, o perigo representado pela casa da tia, cheia de luxos e comodidades, e pela beleza de Mariette, que flerta abertamente com ele. Ele luta o tempo todo para trazer à tona o Nekhliúdov que se apaixonou por Katiucha dez anos antes, enquanto o Nekhliúdov que ele se tornou aparece o tempo todo. Ele, apesar de acompanhar o comboio de prisioneiros, nas piores condições, nunca deixa de ser um fidalgo. É um alter-ego de Tolstói, sem dúvida. Mas a forma como Tolstói o retratou faz o leitor vislumbrar as contradições desse homem notável que fugiu de casa aos 82 anos.

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