terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sussurros


Estamos familiarizados com os horrores e atrocidades nazistas. Sessenta e cinco anos se passaram desde o final da Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, todos os anos há filmes, livros, documentários, exposições - no momento há uma grande exposição no Museu Histórico Alemão em Berlim intitulada “Hitler e os Alemães” - alusivos aos horrores do holocausto. Os nazistas documentaram muito bem os seus feitos e, desde a sua derrota em 1945, estudiosos de diversas nacionalidades se dedicaram a estudar o Terceiro Reich sob os mais diversos aspectos. Mais contundente, todavia, foi a publicação de relatos de sobreviventes de campos de concentração. Há milhares de relatos. Me marcaram especialmente os do italiano Primo Levi, É isso um homem?, Afogados e Sobreviventes e o belíssimo A Trégua, no qual conta seu retorno de Auschwitz para a Itália.
Nossa familiaridade com o que ocorreu na Alemanha durante a guerra contrasta com o desconhecimento a respeito da União Soviética. A União Soviética foi a maior responsável pela vitória dos aliados. No cinema vemos sempre o heroísmo norte-americano. Mas quando eles chegaram à Europa em junho de 1944, os soviéticos encaravam os nazistas desde junho de 1941, com seu território invadido, cidades sitiadas e tudo que isso envolve. Sabemos que foram vinte milhões de mortos, um número tão grande que soa vazio. Poderiam ser trinta, quarenta, oitenta milhões.
Esse panorama está mudando. Com o final da União Soviética, em 1991, e a abertura dos arquivos do governo e da polícia política novas fontes históricas foram disponibilizadas para estudo.
Sussurros, do historiador britânico Orlando Figes, trabalha com um tipo muito especial de fonte: arquivos privados, raros num estado policial, e relatos orais. O tema está no subtítulo: a vida privada na Rússia de Stalin. “O livro explora como as famílias reagiam às várias pressões do regime soviético. Como preservavam tradições e crenças e as transmitiam aos filhos se seus valores conflitavam com os objetivos públicos e com a moral do sistema soviético inculcados na geração mais nova por meio de escolas e de instituições como a Komsomol [instituição de jovens comunistas? Como viver em um sistema regido pelo terror que afetava os relacionamentos íntimos? O que as pessoas pensavam quando um marido ou uma esposa, um pai ou uma mãe eram presos de repente como ‘inimigos do povo’ ? Na condição de cidadãos soviéticos leais, como resolviam na própria mente o conflito entre confiar nas pessoas que amavam e acreditar no governo que temiam? Como poderiam os sentimentos e as emoções humanas ter qualquer tipo de força no vácuo moral do regime stalinista? Quais foram as estratégias de sobrevivência, os silêncios, as mentiras, as amizades e as traições, as concessões e acomodações morais que moldaram milhões de vidas?”.
Assim, acompanhamos as histórias de diversas pessoas, desde 1917, até a década de 1990: Antonina Golovina, Konstantin Simonov, a família Laskin, Elizaveta Drabkina, Inna Gaisser e muitos outtros.
No primeiro capítulo “Crianças de 1917 (1917-1928)” nossos personagens reais ainda estão na primeira infância. O autor mostra como a ideia bolchevique a respeito da família modificou a vida de milhões de pessoas. A ideia inicial era de que a família burguesa era um obstáculo ao comunismo e devia ser substituída por uma família social na qual os pais, ao invés de se ocuparem somente dos seus filhos, se ocupassem de todas as crianças. Daí a modificação do espaço privado, com as famílias ocupando quartos voltados para o corredor (o sistema de corredor) e partilhando banheiros e cozinhas (lógico que isso não valia para os altos quadros do partido, que mantinham suas casas e apartamentos e até possuíam “dachas” de verão).
Os ativistas do partido, tanto homens, quanto mulheres levavam a sério a ideia de dedicar-se totalmente à causa, deixando a vida privada em segundo plano. As crianças eram tratadas como pequenos adultos e não recebiam atenção dos pais (não podemos esquecer que no ocidente, até o final do século XVIII, as crianças eram tratadas como pequenos adultos e que, até o século XX, as famílias abastadas pouco se ocupavam dos filhos, deixando-os aos cuidados de babás, governantas e colégios internos). Os bolcheviques, com frequência, abandonavam mulheres (e maridos) e filhos para cumprir as exigências partidárias.
Algo interessante, que irá mudar após com a ascensão da União Soviética como potência industrial, é o asceticismo em relação à decoração doméstica e a aparência pessoal. Mesmo quem tinha condições de possuir mais bens materiais, era encorajado a viver muito modestamente e a se envergonhar de qualquer manifestação de riqueza (isso mudou completamente na era Stálin). O segundo capitulo, “A gande ruptura (1928-1932)”, explora as consequências da chegada de Stalin ao poder. A grande ruptura foi fim da NEP - Nova Política Econômica - implantada por Lênin, que incentivava a economia de mercado para promover a recuperação da guerra civil, e a adoção dos Planos Quinquenais, a partir de 1928. Foi o período da coletivização forçada e da perseguição aos kulacks.
Quando estudei a revolução russa na faculdade de história, aprendi que os kulacks eram camponeses ricos, ou seja, fazendeiros, que não queriam abrir mão da propriedade privada e que, portanto, se opunham aos comunistas. Agora aprendi que tudo isso era bem menos racional. Kulacks eram camponeses que possuíam quase qualquer coisa. Alguns tinham pequenas faixas de terra e, graças ao trabalho familiar, obtinham algum conforto material. Outros tinham apenas uma vaca ou alguns instrumentos de trabalho agrícola. Outros não tinham nada. O governo enviava uma ordem para que, em determinada vila, dez famílias kulacks fossem expropriadas e enviadas para campos de trabalho. Se não havia nenhuma família que possuísse propriedade no local, eles sorteavam entre as famílias quais as dez que seriam deportadas.
As terras e os bens que eram confiscados iram para as fazendas coletivas, os kolkozes. Foi um dos maiores fracassos do sistema comunista. É simples entender. Os agricultores mais qualificados eram justamente os kulacks, que foram enviados para gulags. Sobraram os que nada entendiam de agricultura e que pouco trabalhavam. Além disso, os camponeses, acostumados por séculos com o trabalho nas suas porções de terra como referência, não conseguiam estabelecer nenhuma ligação com uma terra que não lhes pertencia, que não tinha sido trabalhada pelos seus pais, pelos seus avôs. A produtividade dos kolkozes era ínfima perto das das pequenas propriedades. .
Os filhos de kulacks receberam uma marca que lhes acompanhou até a velhice. O rótulo de filhos de “inimigos do povo”. Assim, eles eram humilhados publicamente nas escolas, impedidos de participar de associações de jovens como os “pioneiros” e o Komsomol, e tinham sua matrícula vedada nas melhores universidades e escolas técnicas. Por uma reação psicológica, muitos destes jovens tornaram-se comunistas exemplares. Queriam provar para as autoridades e para eles mesmos que eles tinham valor. .
Outro aspecto sinistro desse período era o encorajamento que o Estado às delações. Um jovem chamado Pavlik Morozov tornou-se um herói nacional por ter denunciado o seu próprio pai como kulack. Milhares de crianças cresceram temendo serem punidas por não delatarem seus pais. E milhares de pais viviam com medo dos filhos.
“A busca da felicidade (1932-1936)” mostra como um sistema desse tipo não se sustenta somente com coerção. Consenso é fundamental. Na década de 1930, a União Soviética começava a colher os frutos da industrialização acelerada. Os russos passaram a ter acesso a alguns bens de consumo e as grandes cidades, como Moscou, tornaram-se vitrines da prosperidade comunista. Nesse período, foi construído o luxuoso metrô de Moscou. Do ponto de vista social, um novo guio emergiu: os “vydvizhentsy”, técnicos formados durante o primeiro plano quinquenal, que tornaram-se o principal apoio do regime stalinista. Esse grupo, ao contrário da maioria do povo soviético, vivia muito bem. Tinha acesso a apartamentos particulares, carros e casas de veraneio. O asceticismo dos primeiros anos foi abandonado. As mulheres voltaram ao lar.
Em “o Grande Medo (1937-1938)” conhecemos a parte mais negra da história da Rússia de Stalin: os expurgos. Já conhecia algo sobre os expurgos de grandes figuras do partido comunista, alguns companheiros de Lênin. Aqui conhecemos o expurgo do soviético comum. Milhares de pessoas passaram a dormir com a mala pronta, esperando que viessem prendê-las. Milhares foram presos sem terem feito absolutamente nada. Alguns eram comunistas exemplares. Qualquer denúncia, mesmo que francamente falsa, levava à prisão. Na melhor das hipóteses, o prisioneiro era enviado a um campo de trabalho na Sibéria. Na pior, era fuzilado, sem direito a julgamento. Muitos ficaram sabendo somente na década de 1990 que seus pais, mães ou maridos havia sido fuzilados.
Os expurgos passaram a ser fundamentais para a economia soviética. O crescimento previsto pelos planos quinquenais só era possível com o trabalho escravo. Milhares de prisioneiros eram enviados para abrir estradas, trabalhar em minas, construir barragens em lugares inabitáveis, com temperaturas de 30 graus abaixo de zero. Muitos eram largados nesses locais sem comida, roupas, nada. Tinham que cavar buracos no chão. Morriam aos milhares.
Havia informantes em toda a parte. Nos apartamentos comunais era perigoso falar, pois a proximidade eliminava a privacidade. As crianças eram ensinadas a ficar de boca fechada. Muitos pais não revelavam aos filhos suas ideias, com medo de prejudicá-los. Quem tinha crenças religiosas, escondia os ícones nas gavetas. Muitos vizinhos faziam denúncias falsas para ficar com os móveis ou quarto do denunciado.
“Resquícios do Terror (1938-1941)” relata a desestruturação das famílias pelos expurgos. Quando um homem era preso, sua esposa era enviada para um campo especial para esposas de traidores. Os filhos, se menores, eram encaminhados para orfanatos. Em geral, separados, pois era uma política de Estado separar as famílias. Muitas pessoas nunca mais viram seus pais, filhos, irmãos. Nas famílias, existia uma grande angústia, pois, em geral, as pessoas acreditavam que quem fora preso havia feito algo errado. Muitos dos presos julgavam que houvera algum engano. Muitos escreviam para Stalin relatando que houvera um equívoco e esperavam que o grande homem desfizesse a injustiça. A maioria só soube muitos anos depois que sua família fora vítima de uma injustiça.
“Espere por mim (1941-1945)” conta os sacrifícios da União Soviética durante a Guerra. Um período de imensas perdas e sofrimentos, mas que, paradoxalmente, é lembrado por muitos soviéticos como um período de ouro. Em razão do esforço de guerra, houve uma desestalinização forçada, já que o Estado não podia exercer vigilância nesse período. Da mesma forma, a lealdade do povo era fundamental, pois havia uma invasão estrangeira. O afrouxamento dos controles criou mais liberdade e até o renascimento do mercado, com pequenas plantações e feiras nas cidades.
O trabalho escravo nos gulags foi fundamental para o esforço de guerra. Muito interessante é que os prisioneiros se sentiam orgulhosos por estarem participando da vitória da União Soviética.
Espere por mim foi um poema de Konstatin Simonov que tornou-o famoso no período da Segunda Guerra.
“Stalinistas Comuns (1945-1953)” narra as dificuldades do pós-guerra. O afrouxamento do controle durante às guerra produziu ondas de descontentamentos. O controle da economia retornou com força total. Houve novas prisões e expurgos. E, para apoiar tudo isso, consolidava-se a criação de uma nova classe média educada baseada na ampliação da educação superior nos anos 1940 e 1950. Essa nova bruguesia era recompensada por empregos seguros, bem pagos e por alguns luxos, como apartamento privados e bens de consumo. “ A capacidade profissional começava a tomar o lugar dos valores proletários nos princípios dominantes da elite soviética. “
Esse capítulo comenta também uma enorme campanha antijudaica que iniciou em 1948. Os judeus eram denominados “cosmopolitas”. Tudo começou com a perseguição de intelectuais. Mas isso ressuscitou o antissemitismo que era secular na Rússia. Os judeus passaram a ser acusados de serem aliados do recém formado Estado de Israel e dos Estados Unidos. “Entre 1948 e 1953, milhares de judeus soviéticos foram presos, demitidos do trabalho, expulsos das universidades ou tirados à força de casa. No entanto, nunca eram informados (e isso jamais era mencionado na papelada) de que a razão para esses atos tinha a ver com suas origens étnicas”. Muitos desses judeus eram assimilados e mal se reconheciam como judeus. Tinham uma identidade soviética urbana e não obedeciam tradições religiosas judaicas.
O irônico é foi justamente a perseguição dos judeus (a conspiração de médicos, que eram, em grande parte judeus), que impediu que Stalin fosse socorrido quando teve um derrame no inicio de março de 1953. O medo de que alguém fosse acusado de espião ou traidor fez com que o Czar Vermelho ficasse cinco dias inconsciente e sem atendimento, até falecer em 5 de março de 1953. O capítulo “Retorno (1953-1956)” conta basicamente o retorno dos soviéticos do campo de trabalho. A alegria do retorno esbarrou na realidade. Muitos homens retornaram casados com outras mulheres. Muitos encontraram suas mulheres casadas com outros homens. As crianças que idealizaram por anos uma mãe amorosa ou um pai amigo encontraram, já adultos, desconhecidos destruídos por anos de trabalho em condições subumanas. Muitos não conseguiram sequer deixar os campos, pois já não sabiam mais como ter uma vida normal. E ocorria com os egressos dos gulags o mesmo que ocorrera com os sobreviventes dos campos de concetração nazistas: a impossibilidade de comunicar aos outros a sua experiência.
“Memória (1956-2006)” dedica-se ao que sobrou desde que Khrushchev revelou, em 1956, os crimes de Stalin (dos quais, aliás, ele participou ativamente). Muitos somente então tiveram certeza da inocência de seus parentes, de que não foram vítimas de nenhum erro. De que, ao contrário do que julgavam, Stalin não era um homem bom que fora enganado por aliados mal intencionados (embora alguns tenham falecido na década de 1990 ou 2000 pensando isso). Nesse capítulo, o mais interessante é a reavaliação de Simonov sobre a sua vida e sua atuação como intelectual orgânico do stalinismo.
Há muito mais. São mais de 800 páginas. E, ao contrário dos números impessoais que estudamos na escola ou na universidade, lá estão os nomes e eles próprios nos olhando das fotografias. É um belo trabalho de pesquisa.
O nome
Sussurros vem do hábito de sussurrar que os soviéticos aprenderam a cultivar nesses anos. “ A língua russa possui duas palavras para um ‘sussurrador - uma para quem sussurra por temer ser ouvido (shepchushchii) e outra para a pessoa que informa ou sussurra pelas costas das pessoas para as autoridades (sheptun). A origem da distinção está no idioma da época de Stalin, quando toda a sociedade soviética era formada por um tipo ou outro de sussurrador”.

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