
A pergunta que não quer calar quando lemos Vida e Destino é: como um homem que conhecia tão bem o sistema soviético acreditou que poderia publicar algo tão herético a ponto de entregar a obra a uma editora oficial? Não há nada sutil ou disfarçado na crítica de Grossman ao stalinismo. Ele segue o conselho que se dá a quem quer fazer literatura: não explique, mostre! Ele mostra que o campo de concentração alemão é igual ao campo de trabalho soviético. Ele mostra a estupidez e insanidade da burocracia. Ele mostra Hitler passando a espada do anti-semintismo a Stálin, uma alusão à perseguição aos judeus na década de 1950. Ele faz uma crítica arrepiante ao culto à personalidade, quando Victor atende um telefonema e é o próprio Stálin do outro lado da linha. Ele fala do colaboracionismo com o exército alemão. Da participação dos ucranianos no holocausto. Mostra o comunista exemplar Krymov ser preso sem saber o motivo, como aconteceu com milhares. Segundo Robert Chandler, o poder de outros escritores dissidentes - Solzhenitsyn, Nadehzda Mandelstam, Pasternak - decorre de suas posições de outsiders. Já o poder de Grossman deriva de seu íntimo conhecimento de cada nível da sociedade soviética. Então, como ele pode acreditar que Vida e Destino passaria?
Em outubro de 1960, contrariando o conselho de seus amigos Semyon Lipkin e Yekaterina Zabolotskaya, Grossman entregou o manuscrito aos editores do Znamya. Era a época do “degelo” de Krushchev e Grossman realmente acreditava que Vida e Destino poderia ser publicada. Em fevereiro de 1961, três funcionários da KGB invadiram o apartamento do escritor para confiscar o manuscrito e materiais correlatos. Até o papel carbono e os tipos da máquina de escrever foram recolhidos. Essa foi uma das ocasiões em que as autoridades soviéticas “prenderam um livro” ao invés de prender uma pessoa. Somente Arquipélago Gulag foi julgado tão perigoso. Grossman se recusou a assinar uma declaração para não revelar a visita da KGB, mas de resto colaborou com os agentes dando o nome do seu primo e de dois datilógrafos que possuíam cópias. Mas a KGB falhou em descobrir que havia duas outras cópias: uma com Semyon Lipkin e outra com Lyolya Dominikina, uma amiga do tempo de estudante, sem relação com o mundo literário.
Muitos julgam ter sido Grossman insanamente ingênuo ao acreditar que seria possível publicar Vida e Destino na União Soviética. Havia, de fato, na época, uma atmosfera de esperança desde que Krushchev denunciou os crimes de Stálin em 1956. Mas Chandler considera que não foi ingenuidade de Grossman: foi simplesmente cansaço de acomodar suas ideias às demandas das autoridades. Ele sabia que poderia ser preso e não contou nem para Lipkin que deixara uma cópia do livro com Dominikina.
Grossman continuou insistindo na publicação. Mikhail Suslov, importante ideólogo do partido comunista nos anos Krushchev e Brehznev, declarou a que obra não seria publicada em duzentos ou trezentos anos.
Temendo a perda do seu trabalho, Grossman entrou em depressão. Lipkin disse: “Grossman envelheceu diante dos nosso olhos. Tornou-se grisalho e calvo. Sua asma retornou.“ Nas palavras dele: “Eles me estrangularam em uma esquina escura.
Ele relacionava a publicação de Vida e Destino à memória de sua mãe. No vigésimo aniversário da morte de Yekaterina, em 1961, ele escreveu uma carta na qual dizia: “Eu sou você, querida mãe, e enquanto eu viver, você viverá também. Quando eu morrer, você continuará vivendo nesse livro, que eu dediquei a você e e cujo destino está ligado ao seu destino”. Com o tempo, ele passou a se referir ao livro como a um ser vivo. Em uma de suas tentativas escreveu em uma carta para Krushchev: ¨Não existe sentido ou verdade na minha situação presente, na minha liberdade física, enquanto o livro ao qual dediquei a minha vida está na prisão. Peço liberdade ao meu livro”.
A liberdade não veio e Grossman, amargurado e desiludido, faleceu em 1964, aos 59 anos. Mas Mikhail Suslov estava enganado: vinte anos depois os russos puderam conhecer esse trabalho extraordinário e corajoso.
Tenho esperança que a excelente Editora Cosac Naify, aproveitando a qualidade dos tradutores brasileiros da língua russa, traga Vida e Destino para os brasileiros. A editora já dispõe de uma catálogo invejável de obras russas, primorosamente traduzidas. Vida e Destino precisa constar nesse catálogo.
Em outubro de 1960, contrariando o conselho de seus amigos Semyon Lipkin e Yekaterina Zabolotskaya, Grossman entregou o manuscrito aos editores do Znamya. Era a época do “degelo” de Krushchev e Grossman realmente acreditava que Vida e Destino poderia ser publicada. Em fevereiro de 1961, três funcionários da KGB invadiram o apartamento do escritor para confiscar o manuscrito e materiais correlatos. Até o papel carbono e os tipos da máquina de escrever foram recolhidos. Essa foi uma das ocasiões em que as autoridades soviéticas “prenderam um livro” ao invés de prender uma pessoa. Somente Arquipélago Gulag foi julgado tão perigoso. Grossman se recusou a assinar uma declaração para não revelar a visita da KGB, mas de resto colaborou com os agentes dando o nome do seu primo e de dois datilógrafos que possuíam cópias. Mas a KGB falhou em descobrir que havia duas outras cópias: uma com Semyon Lipkin e outra com Lyolya Dominikina, uma amiga do tempo de estudante, sem relação com o mundo literário.
Muitos julgam ter sido Grossman insanamente ingênuo ao acreditar que seria possível publicar Vida e Destino na União Soviética. Havia, de fato, na época, uma atmosfera de esperança desde que Krushchev denunciou os crimes de Stálin em 1956. Mas Chandler considera que não foi ingenuidade de Grossman: foi simplesmente cansaço de acomodar suas ideias às demandas das autoridades. Ele sabia que poderia ser preso e não contou nem para Lipkin que deixara uma cópia do livro com Dominikina.
Grossman continuou insistindo na publicação. Mikhail Suslov, importante ideólogo do partido comunista nos anos Krushchev e Brehznev, declarou a que obra não seria publicada em duzentos ou trezentos anos.
Temendo a perda do seu trabalho, Grossman entrou em depressão. Lipkin disse: “Grossman envelheceu diante dos nosso olhos. Tornou-se grisalho e calvo. Sua asma retornou.“ Nas palavras dele: “Eles me estrangularam em uma esquina escura.
Ele relacionava a publicação de Vida e Destino à memória de sua mãe. No vigésimo aniversário da morte de Yekaterina, em 1961, ele escreveu uma carta na qual dizia: “Eu sou você, querida mãe, e enquanto eu viver, você viverá também. Quando eu morrer, você continuará vivendo nesse livro, que eu dediquei a você e e cujo destino está ligado ao seu destino”. Com o tempo, ele passou a se referir ao livro como a um ser vivo. Em uma de suas tentativas escreveu em uma carta para Krushchev: ¨Não existe sentido ou verdade na minha situação presente, na minha liberdade física, enquanto o livro ao qual dediquei a minha vida está na prisão. Peço liberdade ao meu livro”.
A liberdade não veio e Grossman, amargurado e desiludido, faleceu em 1964, aos 59 anos. Mas Mikhail Suslov estava enganado: vinte anos depois os russos puderam conhecer esse trabalho extraordinário e corajoso.
Tenho esperança que a excelente Editora Cosac Naify, aproveitando a qualidade dos tradutores brasileiros da língua russa, traga Vida e Destino para os brasileiros. A editora já dispõe de uma catálogo invejável de obras russas, primorosamente traduzidas. Vida e Destino precisa constar nesse catálogo.
Muito bom seu post. Não conhecia essa obra de Grossman, depois de ler seu blog dei uma pesquisada e realmente trata-se de um livro obrigatório para se entender o stalinismo.
ResponderExcluirEnviei um e-mail a Cosac Naify sugerindo a tradução da obra. Quem sabe dá certo?
Parabéns pelo excelente blog.
Obrigada, Alysson. Também já mandei um e mail para a Cosac sugerindo. Nunca me responderam. Mas quem sabe com mais gente interessada eles não se mexem. O livro é magnífico. Fiquei apaixonada por ele.
ExcluirMeu blog está meio parado, pois estou fazendo doutorado. Mas assim que terminar, no próximo ano, vou retomar a regularidade das postagens.
Obrigada pelo comentário e um abraço. Cíntia.